segunda-feira, 20 de novembro de 2017

A legislação patriarcal sobre as mulheres

Por André do Amaral, no site Outras Palavras:

Os acontecimentos recentes no país demonstram que a maioria dos homens insiste em não reconhecer os privilégios herdados socialmente pela brutalidade do patriarcado. Insistem em negar o argumento lúcido das mulheres que se esforçam para lançar luz sobre o sofrimento causado pela cultura machista. Para tal, utilizam argumentos rasos decorados em cartilhas de cronistas conservadores e posicionamentos absurdos, revestidos com o verniz de opinião. Trata-se, contudo, de um movimento social recorrente na história, aqui denominado como a legislação patriarcal sobre o corpo feminino.

A palavra “legislação” está sendo utilizada não somente circunscrita ao campo jurídico, mas em seu sentido amplo, significando um conjunto de normas e leis que, se não são constitucionais, são religiosas, culturais e dizem respeito ao modus operandi de determinado grupo.

A maior parte dos trechos que utilizo no presente texto se encontram no livro “História das mulheres no Brasil” [1] elaborado por diversas autoras, organizado por Mary del Priore e que recomendo fortemente.

Extraí alguns trechos do livro de 1997 e busquei compará-los a acontecimentos atuais, visando demonstrar, por meio da observação do movimento histórico, que a violência sexual contra a mulher é um componente introjetado nas relações sociais de nosso país, desde os tempos coloniais e que perpassa diferentes esferas até culminar na imposição por meio de normatizações diversas que possuem um elemento comum: são definidas por homens.

Num artigo do livro citado, Pryore analisa textos da literatura médica em Portugal, durante os séculos XVI e XVIII. Influenciados pelo pensamento aristotélico que acreditava que o útero (denominado naquele período como madre) era simples receptáculo e que a “alma” era inflada pelo sêmen masculino, os médicos do período tinham extremo desconhecimento sobre o corpo feminino e associavam doenças a castigos divinos, o que levava a tratamentos absurdos, visando conter as inclinações de um corpo que, segundo dizeres do período, era mais inclinado às “tentações diabólicas”.

Todo o conhecimento produzido sobre o corpo da mulher era reduzido à sua capacidade reprodutiva. A pesquisa sobre o funcionamento da madre (útero) era quase uma obsessão masculina. Os “peritos” (doutores e cientistas homens), partindo da visão aristotélica e aliando tal premissa ao pensamento religioso, acreditavam que a mulher não era um ser dotado dos mesmos direitos que o homem e sim, segundo Pryore, “um mecanismo criado por Deus exclusivamente para servir à reprodução (…) ela era só um instrumento passivo do qual seu dono se servia.”

Pasme, a luta por um útero laico no Brasil têm mais de quatrocentos anos. E mesmo após tantos séculos, comissões e leis que impactam diretamente no corpo das mulheres são tomadas por homens que ainda se alicerçam em teorias já refutadas, carregadas pela visão de mundo de teóricos da Inquisição -os mesmos que queimaram diversas mulheres tidas como “bruxas”. Bruxas que buscavam, já naquele período, tratarem umas às outras (primórdios da sororidade), não com sangrias como os doutores que desconheciam o corpo da mulher, mas com ervas e tratamentos naturais que amenizavam as dores. O livro organizado por Pryore relata um caso de processo-crime por feitiçaria movido no século XVIII contra a escrava Maria, moradora de Itu, no Estado de São Paulo que só foi “tolerado” pelo juiz devido à enfermidade do único cirurgião da Vila. O juiz em sua sentença escreveu que era costume de várias mulheres “aplicar alguns remédios aos enfermos curando com ervas e raízes que suas experiências lhes administram, as quais são toleradas pelas justiças pela penúria e falta de médicos [2].”

A história do corpo da mulher demorou para ter participação feminina em seu registro. Tanto laudos médicos e psiquiátricos quanto legislações foram, historicamente, escritas e controladas por homens.

Isso não é coisa de décadas ou séculos passados. O seguinte título estava reportagem publicada pelo UOL (28/04/2016): “Cunha ignora protesto, insiste e Câmara cria comissão da mulher.”

Sim, os homens “ignoram e insistem”.

Sim, a atual comissão da mulher foi criada via manobra de um deputado homem fundamentalista (que também é o autor da PL 5069, que dificulta o acesso legal ao aborto para mulheres vítimas de abuso sexual). Como se não bastasse, a comissão foi presidida pelo PR (partido que possui diversos deputados da chamada bancada evangélica).

Está confusa ou confuso sobre o século que estamos, no que concerne as normas impostas ou brutalmente “sugeridas” às mulheres?

Compare estes excertos, extraídos de diferentes periódicos, em períodos distintos:

Acompanhe-o nas opiniões (…) quanto mais você for gentil, tanto maior será a importância de seu espírito no conceito dele. Esteja sempre ao seu lado, cuidando dele, animando-o (…) reconhecendo seus gestos e desejos.

(Jornal das Moças. 27/10/1955)
A mulher tem uma missão a cumprir no mundo: a de completar o homem. Ele é o empreendedor, o forte, o imaginoso. Mas precisa de uma fonte de energia (…) a mulher o inspira, o anima, o conforta (…) a arte de ser mulher exige muita perspicácia, muita bondade. Um permanente sentido de alerta para satisfazer às necessidades dos entes queridos.

(O Cruzeiro. 15/03/1958)

Marcela Temer é uma mulher de sorte (…) Seus dias consistem em levar e trazer Michelzinho da escola, cuidar da casa, em São Paulo, e um pouco dela mesma também (…) Marcela é o braço digital do vice. Está constantemente de olho nas redes sociais e mantém o marido informado sobre a temperatura ambiente.

(Revista Veja 18/04/2016)
Tais sugestões ao “mundo feminino” (termo utilizado pelo presidente interino) são imposições sobre o estatuto de direitos da mulher. Assim como as mulheres que ousavam utilizar outras técnicas para o tratamento de enfermidades, as mulheres que não obedecem aos padrões impostos por uma sociedade legislada por homens, têm seus direitos negados – e não importa o que ocorreu contra ela, ao se colocar contra o padrão imposto, a mulher irá se deparar com um vasto acervo de deslegitimação de seu comportamento, de seu argumento, de sua versão acerca de um fato e sobretudo, de seu modo de experienciar o próprio corpo.

Eis o ponto central de controle patriarcal: legislar sobre o corpo feminino.

Eis o eixo e o percurso histórico para que um delegado pergunte a uma jovem de 17 anos que está relatando um caso de estupro cometido por 33 homens se ela tinha por hábito fazer sexo em grupo.

A pergunta recai sobre o modo como ela utiliza o próprio corpo – como se suas escolhas corporais e sexuais justificassem ou pior, “validassem” o ato praticado por um grupo de homens.

Eis as bases que alimentam centenas de comentários feitos por homens nas redes sociais, não só no caso da jovem do Rio de Janeiro, como em dezenas de outros casos de violência sexual. Alguns, inclusive, exercem a função de policiais e não se intimidam pelo fato de ser crime previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente a exposição de uma jovem menor de idade.

Assim como não se intimidou um cantor que disse que o Brasil é uma fábrica de mini-putas. Assim como não se intimidam os humoristas que fazem piadas sobre vítimas de estupros. Assim como não se intimidou um deputado que disse a uma companheira de profissão que não a estupraria porque ela não merecia. Tampouco se intimidam seus seguidores que o nomearam como um “mito”.

Nada mais sintomático. Quando mais misógino, ignorante e violento ele se mostra, mais torna-se o símbolo mitológico de uma masculinidade predatória e arcaica que repete padrões de comportamento forçando para frear a roda da história, os progressos sociais e a emancipação de grupos excluídos do estatuto de direitos.

A diferença do momento atual em relação aos séculos anteriores é a crescente organização feminina conquistada, obviamente, por legados de mulheres em todas as épocas, mas que no presente século surge como força política nunca antes vista em nosso país.

Cada vez que uma mulher liberta o próprio corpo, ela convoca uma legião para experimentarem a liberdade. São muitas, são guerreiras e estão se unindo.

Aos homens, envergonhados do próprio gênero, cabe se unirem ao coro feminino sem excluir suas vozes. Cabe desconstruir gestos que herdamos e que nos alicerçam. Cabe refazer o acordo a cada dia e perceber nos atos corriqueiros a tendência apreendida de diminuir ou dominar a mulher. Cabe também se libertar do machismo que nos oprime, nos embrutece, nos obriga a uma visão de mundo violenta e uma validação social pautada pela dominação do outro.

Culpabilizar o corpo da mulher não é novo na história da humanidade. Tampouco é nova a legislação realizada por homens sobre o corpo feminino.

O homem brasileiro precisa observar mais atentamente o calendário e notar que, embora não pareça, estamos no século XXI.

Notas

[1] História das Mulheres no Brasil, Mary del Priore, Editora Contexto, 1997, vencedor do Prêmio Jabuti em 1998 na categoria Ciências Humanas

[2] Idem, p. 81.

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