Fascismo – o pior inimigo das mulheres Nina Vatolina, 1941 |
Escrevo como beneficiário da Revolução de 1917, que desde o primeiro momento extrapolou os largos limites territoriais e políticos herdados do império czarista – dois séculos de domínio mongol, quatro de absolutismo monárquico – fundado na repressão a mais brutal, na ausência de direitos dos trabalhadores, fâmulos e párias a serviço de uma estrutura social fundada em modos de exploração humana similares ao escravagismo que compreendiam, inclusive, o castigo físico.
Levante popular e de massas – camponeses, soldados, marinheiros, trabalhadores dirigidos pelo leninismo –, lutando contra o mundo (ao tempo da guerra civil, mal saída da Primeira Guerra Mundial, a Rússia sofreu a invasão de 15 exércitos estrangeiros) a Revolução bolchevique conheceu êxito surpreendente em país sem base industrial, mudou o curso da História, para melhor, e suas conquistas permanecem atuais, muitas incorporadas pelo patrimônio político da humanidade e mesmo assimiladas por governos social-democratas.
Promoveu os direitos das mulheres, instalou o primeiro sistema universal (gratuito) de saúde, promoveu a educação pública (da creche à universidade), habitação, transporte público de massa e o pleno emprego, ainda sonhos brasileiros na segunda década do terceiro milênio.
Sua influência sobre o mundo não se encerrou na noite de 26 de dezembro de 1991, quando a bandeira vermelha foi arriada pela última vez do mastro do Kremlin e Gorbachev entregou o bastão a Iéltsin.
À Revolução bolchevista devemos nossa própria sobrevivência: depois de poupar a humanidade do totalitarismo nazifascista, ao derrotar a Alemanha – ao preço da morte de 22 milhões de mulheres e homens, soldados e civis soviéticos – livrou-nos da morte planetária, dissuadindo a guerra nuclear perseguida pelos EUA e os países seus tributários após a Segunda Guerra mundial.
O esforço militar, científico e tecnológico desenvolvido pela URSS, mesmo em prejuízo da qualidade de vida de seu povo (uma das raízes da debacle), possibilitou a paridade nuclear que evitou, e tem evitado até aqui, até quando não se sabe, a hecatombe com a qual a Guerra Fria ameaçava destruir a Terra. Espectro, aliás, sempre presente enquanto a paz depender dos interesses que movem o complexo militar-industrial que governa os EUA – em guerra ininterrupta há mais de um século! –, ou enquanto o futuro da humanidade depender da insanidade de líderes como Donald Trump.
A Revolução de 1917 – primeira grande tentativa de construção de uma sociedade fundada na igualdade, primeiro projeto de abolição da propriedade privada, promessa de um Estado dirigido pelos trabalhadores – alterou definitivamente a geopolítica mundial, influenciou o pensamento político-filosófico e detonou o colonialismo, o racismo e o apartheid, abalando definitivamente as fontes de alimentação das velhas potências europeias.
Vitoriosa na Segunda Guerra, a URSS foi a parteira da descolonização da África e da Ásia, ensejou e garantiu experiências como a cubana e foi decisiva na libertação do Vietnã. Em síntese, não houve, no século passado, uma só experiência de luta pela independência nacional que não tenha contato com a cooperação, material, militar e política da URSS.
Seus sucessos econômicos, sociais, científicos e militares transformaram-se em instrumentos de luta ideológica e alimentaram em todo o mundo a organização dos trabalhadores, abrindo caminho para os partidos socialistas, trabalhistas e de esquerda, a que tiveram de responder a socialdemocracia e as forças conservadoras, temerosas de que o exemplo soviético, ganhando a consciência social, se reproduzisse em seus países.
As políticas sociais e econômicas do Ocidente capitalista foram obrigadas a fazer concessões aos programas socialistas, como tentativa, afinal bem sucedida, de administrar a luta de classes, quando crescia planetariamente o movimento comunista.
No seu rastro avançaram as políticas democráticas, socialistas e progressistas de um modo geral, elevaram-se à ordem do dia a defesa da dignidade humana, a luta contra as discriminações sociais, econômicas e étnicas, os direitos de camponeses e trabalhadores, a liberdade sindical, conquistas fundamentais como a jornada de oito horas, o direito a férias e aposentadoria, o sufrágio universal e o voto feminino e, principalmente na Europa, a defesa da paz.
Deve-se ainda à Revolução e a essa emergência das ideias progressistas o surgimento do que se viria chamar de ‘constitucionalismo social’, marcando de forma decisiva todas as constituições políticas elaboradas ou revisadas após 1917, inclusive as brasileiras a partir do texto de 1934.
Cessada, porém, a ameaça, cessados seriam os direitos, cassadas as conquistas que haviam sido assimiladas pelo Ocidente. Uma das muitas consequências do colapso da URSS em 1991 é o desencadeamento, em escala mundial, de ofensiva destinada a retirar ou reduzir os direitos dos trabalhadores e assalariados de um modo geral, onda que atinge principalmente a Europa, e chega até nós, aqui embalada pela hegemonia conservadora representada pelo governo de fato de Michel Temer e sua base de apoio, midiático-financeira.
O que estamos assistindo, no Brasil, reproduzindo o avanço antissocial do neoliberalismo vitorioso, não seria possível se os direitos agora ameaçados ou cassados tivessem a sustentá-los um amplo e forte movimento sindical, cujo declínio se deve maiormente à crise da ação e do pensamento de esquerda, detonada com a autodissolução do império soviético. Um de seus indicadores é a quase absoluta falência dos partidos comunistas ocidentais e o recuo histórico da esquerda socialista, subsumida, política e eleitoralmente, pela socialdemocracia em trânsito para a direita.
Exemplo paradigmático nos oferecem a Itália com o fim do Partido Comunista Italiano e a França de nossos dias, com os suicídios dos seus Partido Comunista e Partido Socialista. Os partidos comunistas, com raras exceções, e o português pode ser uma delas, se autodissolveram, a socialdemocracia optou pela direita, os trabalhistas se confundem com os conservadores e todos renunciam ao debate político-ideológico. O refluxo da esquerda socialista brasileira é apenas um tópico.
Não há mastro para a bandeira socialista, que havia sido o ponto aglutinador das lutas sociais do século passado.
Se fracassou em seu projeto de construir a primeira experiência de governo e sociedade comunistas, e o fim da URSS e a opção chinesa constituem atestado definitivo, o grande feito da Revolução foi transformar na segunda grande potência do mundo um país de economia agrária, quase feudal, sem base industrial, destroçado pela Primeira Guerra Mundial e pela guerra civil animada pelas potências ocidentais, sem infraestrutura, com a produção agrícola em queda e a indústria aos frangalhos.
Acrescente-se que a revolução detonada em 1917 só se daria como estabelecida em 1921, com a derrota da última brigada branca na Crimeia, para, poucos anos passados, enfrentar a segunda invasão alemã, e na sequência o isolamento – político, militar, econômico, científico – imposto pelos antigos aliados mediante as mais variadas ações, compreendendo inclusive a sabotagem.
O Estado soviético, ademais de seus gravíssimos problemas internos, teria que lidar, sempre, do primeiro ao último dia, com a hostilidade, a agressão e o bloqueio político, econômico, científico, tecnológico e militar das potências ocidentais. Para conter o ‘expansionismo comunista’ foi criada, em 1949, a OTAN – Organização do Atlântico Norte, a mais terrível e poderosa coalizão bélica jamais conhecida pela humanidade, ainda hoje de pé e ameaçadora.
A ofensiva militar, cobrando da URSS esforço acima de suas possibilidades, foi, todavia, apenas uma das faces da guerra anticomunista, não necessariamente a mais cruenta, pois a grande vitória do imperialismo se dá no campo ideológico, mercê do monopólio da informação e da sotoposição dos valores nacionais.
A ‘globalização’, projeto do capitalismo financeiro, caminha muito além da internacionalização da economia e dos exércitos e das políticas de defesa, pois, após fazer soçobrar as soberanias nacionais, instala a guerra na paz, a ditadura do pensamento único, a unanimidade ideológica e a adoção, mesmo pelas nações pobres, do quadro de valores éticos, sociais, estéticos e políticos do capitalismo.
A debacle, acionada sem que o Ocidente precisasse dar um só tiro de garrucha, a interrupção da experiência do chamado ‘socialismo real’, substituída pela concretude de um capitalismo selvagem, representa, porém, como o outro lado da mesma moeda, uma catástrofe geopolítica quando consolida a hegemonia econômica, militar, política e cultural de uma só potência, imperialista e guerreira.
Talvez ainda seja cedo para o julgamento dessa Revolução que representou para o mundo a promessa da sociedade sem classes e nos legou um modelo de Estado autoritário e burocrático. Como talvez ainda seja cedo para explicar a sociedade russa de nossos dias e o contemporâneo refluxo dos ideais libertários do socialismo que empolgaram o mundo da primeira metade do século passado.
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