Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
O ganhador do prêmio Nobel de literatura deste ano foi o escritor Kazuo Ishiguro, nascido no Japão em 1954, mas que mora na Inglaterra desde a infância e escreve em inglês. Seu livro mais conhecido é o romance “Os vestígios do dia”, que foi adaptado para o cinema, com Anthony Hopkins no papel principal, o do velho mordomo Stevens. Livro e filme são excelentes e permitem, além do prazer estético e do conhecimento de personagens ricos e situações históricas muito singulares, refletir sobre questões muito próximas de nós. Como a reforma da Previdência, por exemplo.
Ishiguro conta a história de um mordomo que viveu nos bastidores da aristocracia inglesa no período da Segunda Guerra. Completamente dedicado à tarefa de servir seu patrão, acreditava que contribuía, com sua subserviência, para importantes decisões que eram tramadas nos salões da mansão, certamente para o bem da humanidade. Sua vida era dedicada a propiciar o brilho de outras pessoas que ele considerava mais importantes. Durante uma viagem, muitos anos depois da guerra, se dá conta que serviu a um homem que tentou levar seu país a travar aliança com Hitler e o nazismo. Toda a elegância que ajudava a manter tinha como destino o mais abjeto dos propósitos.
“Os vestígios do dia” é uma narrativa típica do andar de cima, protagonizada por pessoas que se julgam imprescindíveis, mas que apenas cumprem um destino de coadjuvantes. Assim como o patético Stevens, mas sem sua elegância, os parlamentares brasileiros acreditam que debatem um tema de grande interesse para o país, quando na verdade ajudam a empurrar para frente mais um desmonte do edifício social brasileiro. Nos bastidores do mercado financeiro e dos interesses do capital, falam em ajuste das contas quando na verdade viabilizam as estruturas de desigualdade que atravessam nossa formação.
Temer tem cara de mordomo, jeito afetado de mordomo, vocabulário de mordomo e ética de mordomo. Mantém fidelidade às orientações dadas pelo conchavo que o elevou a um posto que não merece e para o qual não tem estatura política e moral. Curiosamente, para manifestar sua lealdade, precisou praticar a mais torpe das traições políticas: a desconsideração da vontade popular manifesta nas urnas. Por isso, ao assumir o protagonismo de reformas que julga essenciais, fica cada vez mais evidente o destino paródico de suas ações. Ele será sempre o biombo de interesses que esconde com seus modos afetados.
Debate silenciado
Mas a mordomia não se estabelece apenas no âmbito dos poderes da República. A construção de um clima favorável à reforma da Previdência precisou contar também com o cimento ideológico fornecido pelos meios de comunicação. A estratégia foi radical: não se trata de defender com argumentos uma proposta entre outras, mas de torná-la única e obrigatória. A lógica da imprensa, por meio de seus profissionais mais orgânicos com os interesses do mercado, foi silenciar o debate em torno de uma necessidade que passou a ser considerada racional e indiscutível. Não se ouvem pesquisadores, sindicatos, estudiosos do setor e o maior interessado de todos no tema, os trabalhadores. Não há vida envolvida, tudo é uma questão de números.
Todo o debate político em torno da Previdência foi deslocado para a conjuntura que envolve sua tramitação. Depois de escancarar o jogo espúrio de compra de votos para aprovação de projetos de toda a natureza, inclusive de sua própria continuidade no poder, Temer se tornou refém de sua própria estratégia. A cada votação o preço sobe, as exigências de cargos e verbas são aumentadas e os partidos e digladiam entre si frente a um presidente cada vez mais fraco. Fazer política, hoje, nada mais é que estabelecer cálculos pragmáticos entre o butim de hoje e a eleição do ano que vem.
O centrão está liberado do constrangimento e pode negociar livremente e a céu aberto. Os tucanos mordem e assopram de acordo com a cor dos cabelos, perderam seu patrimônio ideológico mínimo e seu álibi ético. O próprio PMDB se divide entre um partido nacional e um punhado de agremiações estaduais que se comportam sem organicidade, de acordo com o interesse mais próximo. Rodrigo Maia, no timão do Congresso, faz do comando da pauta seu aliado para aumentar o cacife político e abrir janelas para sua agenda pessoal. Covarde como sempre, Temer lava as mãos num dia para sujar no outro. O próprio PT dança entre a oposição no atacado nacional e o perdão no varejo federativo.
Não se sabe se a reforma da Previdência entra ou não na pauta deste ano, já que o pragmatismo aconselha a lembrar da eleição do ano que vem. Desaprovada majoritariamente pelo eleitor, não há quem convença que a melhor política para os trabalhadores é não se aposentar tão cedo e receber ainda menos do que hoje se recebe. Além disso, como tema jogado nas mãos de mordomos, a tendência é sempre esperar o comando aristocrático do mercado, que não tem rosto, mas que sabe se fazer ouvir quando quer.
Luta contra a barbárie
Há uma sutileza no romance de Kazuo Ishiguro que pode nos ajudar a pensar os próximos capítulos da nossa narrativa presente. Numa passagem do livro, que também está no filme, Stevens atende com certo orgulho à curiosidade de algumas pessoas simples em conversa num bar. Eles queriam saber como a grande política se realizava nos bastidores. O mordomo não sabia de nada além das convenções que cumpria com obediência e apenas revela seu vazio humano. Na verdade seu testemunho real seria o do risco do nazismo cevado pela aristocracia inglesa a quem servia. Quem tinha o que contar de importante eram exatamente as pessoas simples que o ouviam, que no momento certo foram à luta para derrotar a barbárie.
Mordomos não fazem a história, ficam marcados pela servidão voluntária que define suas existências mesquinhas. Mas a derrota das circunstâncias que desumanizam não se dá como fruto de uma redenção inevitável. A reforma da Previdência precisa ser contraditada, enfrentada e combatida com mobilização intensa, não apenas acompanhada como um jogo de peões de xadrez. Os vestígios do dia já se fazem notar. Mas não podemos ficar inertes esperando o nascer do sol.
O ganhador do prêmio Nobel de literatura deste ano foi o escritor Kazuo Ishiguro, nascido no Japão em 1954, mas que mora na Inglaterra desde a infância e escreve em inglês. Seu livro mais conhecido é o romance “Os vestígios do dia”, que foi adaptado para o cinema, com Anthony Hopkins no papel principal, o do velho mordomo Stevens. Livro e filme são excelentes e permitem, além do prazer estético e do conhecimento de personagens ricos e situações históricas muito singulares, refletir sobre questões muito próximas de nós. Como a reforma da Previdência, por exemplo.
Ishiguro conta a história de um mordomo que viveu nos bastidores da aristocracia inglesa no período da Segunda Guerra. Completamente dedicado à tarefa de servir seu patrão, acreditava que contribuía, com sua subserviência, para importantes decisões que eram tramadas nos salões da mansão, certamente para o bem da humanidade. Sua vida era dedicada a propiciar o brilho de outras pessoas que ele considerava mais importantes. Durante uma viagem, muitos anos depois da guerra, se dá conta que serviu a um homem que tentou levar seu país a travar aliança com Hitler e o nazismo. Toda a elegância que ajudava a manter tinha como destino o mais abjeto dos propósitos.
“Os vestígios do dia” é uma narrativa típica do andar de cima, protagonizada por pessoas que se julgam imprescindíveis, mas que apenas cumprem um destino de coadjuvantes. Assim como o patético Stevens, mas sem sua elegância, os parlamentares brasileiros acreditam que debatem um tema de grande interesse para o país, quando na verdade ajudam a empurrar para frente mais um desmonte do edifício social brasileiro. Nos bastidores do mercado financeiro e dos interesses do capital, falam em ajuste das contas quando na verdade viabilizam as estruturas de desigualdade que atravessam nossa formação.
Temer tem cara de mordomo, jeito afetado de mordomo, vocabulário de mordomo e ética de mordomo. Mantém fidelidade às orientações dadas pelo conchavo que o elevou a um posto que não merece e para o qual não tem estatura política e moral. Curiosamente, para manifestar sua lealdade, precisou praticar a mais torpe das traições políticas: a desconsideração da vontade popular manifesta nas urnas. Por isso, ao assumir o protagonismo de reformas que julga essenciais, fica cada vez mais evidente o destino paródico de suas ações. Ele será sempre o biombo de interesses que esconde com seus modos afetados.
Debate silenciado
Mas a mordomia não se estabelece apenas no âmbito dos poderes da República. A construção de um clima favorável à reforma da Previdência precisou contar também com o cimento ideológico fornecido pelos meios de comunicação. A estratégia foi radical: não se trata de defender com argumentos uma proposta entre outras, mas de torná-la única e obrigatória. A lógica da imprensa, por meio de seus profissionais mais orgânicos com os interesses do mercado, foi silenciar o debate em torno de uma necessidade que passou a ser considerada racional e indiscutível. Não se ouvem pesquisadores, sindicatos, estudiosos do setor e o maior interessado de todos no tema, os trabalhadores. Não há vida envolvida, tudo é uma questão de números.
Todo o debate político em torno da Previdência foi deslocado para a conjuntura que envolve sua tramitação. Depois de escancarar o jogo espúrio de compra de votos para aprovação de projetos de toda a natureza, inclusive de sua própria continuidade no poder, Temer se tornou refém de sua própria estratégia. A cada votação o preço sobe, as exigências de cargos e verbas são aumentadas e os partidos e digladiam entre si frente a um presidente cada vez mais fraco. Fazer política, hoje, nada mais é que estabelecer cálculos pragmáticos entre o butim de hoje e a eleição do ano que vem.
O centrão está liberado do constrangimento e pode negociar livremente e a céu aberto. Os tucanos mordem e assopram de acordo com a cor dos cabelos, perderam seu patrimônio ideológico mínimo e seu álibi ético. O próprio PMDB se divide entre um partido nacional e um punhado de agremiações estaduais que se comportam sem organicidade, de acordo com o interesse mais próximo. Rodrigo Maia, no timão do Congresso, faz do comando da pauta seu aliado para aumentar o cacife político e abrir janelas para sua agenda pessoal. Covarde como sempre, Temer lava as mãos num dia para sujar no outro. O próprio PT dança entre a oposição no atacado nacional e o perdão no varejo federativo.
Não se sabe se a reforma da Previdência entra ou não na pauta deste ano, já que o pragmatismo aconselha a lembrar da eleição do ano que vem. Desaprovada majoritariamente pelo eleitor, não há quem convença que a melhor política para os trabalhadores é não se aposentar tão cedo e receber ainda menos do que hoje se recebe. Além disso, como tema jogado nas mãos de mordomos, a tendência é sempre esperar o comando aristocrático do mercado, que não tem rosto, mas que sabe se fazer ouvir quando quer.
Luta contra a barbárie
Há uma sutileza no romance de Kazuo Ishiguro que pode nos ajudar a pensar os próximos capítulos da nossa narrativa presente. Numa passagem do livro, que também está no filme, Stevens atende com certo orgulho à curiosidade de algumas pessoas simples em conversa num bar. Eles queriam saber como a grande política se realizava nos bastidores. O mordomo não sabia de nada além das convenções que cumpria com obediência e apenas revela seu vazio humano. Na verdade seu testemunho real seria o do risco do nazismo cevado pela aristocracia inglesa a quem servia. Quem tinha o que contar de importante eram exatamente as pessoas simples que o ouviam, que no momento certo foram à luta para derrotar a barbárie.
Mordomos não fazem a história, ficam marcados pela servidão voluntária que define suas existências mesquinhas. Mas a derrota das circunstâncias que desumanizam não se dá como fruto de uma redenção inevitável. A reforma da Previdência precisa ser contraditada, enfrentada e combatida com mobilização intensa, não apenas acompanhada como um jogo de peões de xadrez. Os vestígios do dia já se fazem notar. Mas não podemos ficar inertes esperando o nascer do sol.
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