Ilustração: Helder Oliveira |
Num país com nosso histórico de fraudes e mentiras, é realmente curioso que o tema fake news cause tanto furor entre brasileiros e brasileiras. Até parece que foi preciso aguardar pela invenção da internet e das redes sociais para que as falsificações tivessem curso em nossa vida social, sendo utilizadas como instrumento frequente nas lutas políticas. Só para refrescar a memória, vamos lembrar alguns episódios, nos tempos em que se mentia deliberadamente, com papel e tinta.
Para impedir que a discussão seja contaminada por questões do presente, como a AP 470, ou a Operação Lava Jato, vamos falar de fraudes e manipulações indiscutíveis, estabelecidas por historiadores e estudiosos em geral:
1- em outubro de 1921, véspera de uma campanha presidencial, foram publicadas pelo jornal Correio da Manha as célebres "cartas falsas" de Artur Bernardes, com ofensas graves ao Marechal Hermes da Fonseca. Embora a falsificação tenha sido demonstrada por peritos militares, e dois falsários tenham confessado o crime, os textos tiveram um impacto poderoso na campanha, contribuindo para gerar uma instabilidade política permanente. Vitorioso nas urnas, Bernardes atravessou o mandato sob Estado de Sítio e até fechou o Correio da Manhã como vingança. Entre vários fatores, a fake news contribuiu para a revolta de 22 do forte de Copacabana.
2- em setembro de 1937, um documento militar, chamado Plano Cohen, escrito pelo então capitão do Exército Olímpio Mourão Filho, membro do serviço secreto, foi divulgado como prova de que estava em curso uma conspiração comunista no país. Ajudou a criar o clima de medo e terror que alimentou o golpe do Estado Novo, que cancelou eleições presidenciais e instituiu uma ditadura que durou até 1945.
3- em 1955, uma nova carta falsa abalou o país. Carlos Lacerda publicou, na Tribuna de imprensa, uma carta atribuída ao deputado argentino Antônio Brandi, peronista. Divulgada no ano seguinte ao golpe militar que levou Getúlio ao suicídio, o documento fazia referência a contrabando de armas e ao projeto de instalar uma "republica sindicalista" no país. Falso como uma nota de 3 cruzeiros. Destinava-se a criar um ambiente de tumulto e conspiração diante da recuperação das forças getulistas através da candidatura de Juscelino.
4- a ditadura militar foi pródiga na produção de mentiras com timbre oficial e chegou a falsificar índices de inflação em prejuízo dos trabalhadores. Descobriu-se, em 1977, que a inflação anual havia sido de 22, 5% e não de 15,5%, conforme fora divulgado oficialmente. Era uma informação relevante, pois a legislação do período obrigava a reposição das perdas salariais por parte das empresas. Descoberta quatro anos mais tarde, a notícia provocou uma revolta entre os trabalhadores, que está na origem das primeiras mobilizações dos metalúrgicos do ABC paulista, lideradas por Lula.
5- a morte sob tortura do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, foi transformada num suicídio por arrependimento - numa encenação mórbida, com direito a fotografia do cadáver de Herzog para simular enforcamento numa cena do DOI-CODI paulista. Empresário, deputado cassado, Rubens Paiva foi torturado e morto nas dependências do DOI, no Rio de Janeiro, em 1971. Num esforço para esconder o crime, divulgou-se - em comunicado oficial das autoridades militares - que havia sido resgatado por uma organização terrorista. Com o tempo, criou-se uma fake news padrão: o cidadão era massacrado pela tortura mas se explicava sua morte numa historia fictícia - atropelamento de ônibus.
Não se trata de um fenômeno brasileiro nem um típico drama da era Trump.
No início do século passado, um dos grandes escândalos da história francesa, o caso Dreyfuss, que levou um capitão do Exército a prisão a ferros sob o sol da Guiana, vítima de uma falsificação destinada a encobrir um oficial corrupto, foi prato de resistência da imprensa conservadora do país por mais de uma década. O episódio - conscientemente forjado - alimentou uma das divisões históricas na política francesa que se prolongou até a Segunda Guerra Mundial.
Numa caudalosa reportagem de capa intitulada "Social Media's threat to democracy" (A ameaça das redes sociais à democracia), a revista Economist não consegue apontar soluções consistentes para um problema tão antigo como a invenção de Gutemberg. Seria preciso, diz a revista, que os sites deixassem "claro quando um post vem de um amigo ou de uma fonte confiável" - distinção correta mas trivial, que também deveria ser seguida pelos veículos impressos, o que nem sempre ocorre, sabemos todos.
Outro ponto apontado pela revista é a força de grandes monopólios em atividade na internet, o que tampouco é novidade: sabemos, desde sempre, que a concentração da informação em poucos organizações sempre foi um dos ambientes férteis para a mentira e a manipulação.
No início do século XXI, quando a internet engatinhava, o governo de George W Bush conseguiu emplacar uma fake news que contribuiu para definir o mundo em que vivemos. Cuidadosamente forjada e protegida em Washington, a mentira de que o governo de Saddam Hussein possuía "armas de destruição em massa", invenção contestada pelos principais organismos internacionais, serviu como pretexto para a Guerra do Iraque, uma das origens do colapso econômico de 2008-2009 e da desordem mundial que se vive a seguir.
No final do século XIX, a ação combinada de dois grandes jornais norte-americanos teve um papel decisivo na explosão da Guerra dos Estados Unidos contra a Espanha, que iria mudar a geopolítica mundial para sempre. "Enviem as fotos que eu crio a guerra", costumava dizer Rudolf Hearst, o empresário que inspirou Orson Welles na criação do Cidadão Kane.
As fake news dos tempos de papel e tinta ajudam a perceber um fato importante e inegável. Presentes em toda parte - no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa - constituem uma doença com a qual devemos estar preparados para conviver - caso se considere, como eu, que a preservação do grande benefício que as redes sociais permitem, que é a possibilidade de expressão a tantas vozes ignoradas pelas mídias tradicionais, está acima do jogo obscuro e sujo que se pratica em seus bastidores e labirintos.
Em entrevista neste espaço, a historiadora Maria Aparecida Aquino, titular de História Contemporânea da USP, já lembrou o grande risco presente nesse debate. A partir da necessidade de um combate às fake news, surge aquela ameaça que sempre aparece quando não se sabe o que fazer com um problema: a censura.
Lembrando os imensos retrocessos políticos e sociais que o país enfrenta após o golpe que derrubou uma presidente sem crime de responsabilidade, é impossível discordar.
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