sábado, 16 de dezembro de 2017

Marin, Del Nero e as rapinas do Fifagate

Por Rodrigo Martins, na revista CartaCapital:

Denunciado por fraude, lavagem de dinheiro e organização criminosa, o ex-presidente da CBF José Maria Marin reluta em aceitar o fato de não estar mais no Brasil, protegido por uma legislação omissa e por autoridades lenientes com as negociatas da cartolagem. Antes da seleção dos jurados que vão selar o seu destino na Suprema Corte do Brooklyn, em Nova York, o brasileiro tentou algumas cartadas derradeiras.

Argumentou que a corrupção privada não é crime nos países dos réus, e isso deveria ser considerado. Juan Ángel Napout, ex-presidente da Conmebol, e Manuel Burga, da Federação Peruana de Futebol, também são acusados no mesmo processo. Os três são os únicos dos 42 acusados no escândalo de corrupção na Fifa que estão nos Estados Unidos e se declaram inocentes.

“Há toneladas de evidências de que eles sabiam que estavam recebendo propina e que isso não estava de acordo com os códigos de ética da Fifa”, afirmou o promotor Samuel Nitze. “Eles poderiam até achar que não cometiam crimes de acordo com as leis de seus países, mas com certeza sabiam que isso era errado no âmbito internacional.” A juíza Pamela Chen, que preside o julgamento, rejeitou o argumento da defesa, capaz de “confundir o júri”

Na terça-feira 12, Chen também derrubou uma segunda tentativa da defesa de Marin, comandada pelo advogado Charles Stillman. Ele pediu para derrubar o processo por falta de provas. "Sei que o argumento da defesa é que não existe prova direta de qualquer transferência de dinheiro entre as companhias esportivas e os acusados. Ainda assim, noto que certamente existe evidência de conspiração, um acordo para receber o dinheiro", afirmou ela.

Foco em Del Nero

As decisões da magistrada permitiram o prosseguimento do julgamento, que descortinou uma extensa rede de corrupção, a unir malandros dirigentes esportivos e gananciosos executivos de agências de marketing e emissoras de tevê. Surgiu aí uma terceira cartada por parte do ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol: culpar o atual dono do cargo, Marco Polo Del Nero.

Na quinta-feira 14, Stillman tentou convencer os jurados da inocência de Marin apresentando o cartola como um monarca sem poder, um jogador passivo e um velho senil no cargo errado na hora errada. "Marin estava em campo, mas não jogou", disse Stillman. "Com todo o respeito, Marin era o monarca que fazia os brindes, enquanto Marco Polo (Del Nero) comandava tudo", acusou.

Antes, a defesa já havia tentado jogar o foco em Del Nero, antigo de vice de Marin. Ao interrogar uma testemunha na segunda-feira 11, o advogado Jim Mitchell sugeriu que a Fifa, que expulsou Marin, tem um código de ética maleável, já que trata de maneira diferente seu cliente e Del Nero.

A resposta da entidade veio quatro dias depois. Na sexta-feira 15, seu Comitê de Ética anunciou a suspensão de Del Nero por 90 dias, podendo ser estendida por mais 45. No mesmo dia, a entidade máxima do futebol o afastou da presidência da CBF.

Segundo o comunicado divulgado pela organização, "a decisão foi tomada diante do pedido do presidente da câmara de investigação, levando em conta a investigação formal sobre o senhor Polo Del Nero". Nos EUA, Del Nero é acusado pelos promotores de ter recebido 6,5 milhões de dólares em propina.

Temendo ser preso e levado para o tribunal de Nova York, o presidente da CBF não viaja para o exterior desde 2015. Se esconde no Brasil, onde não há investigação contra ele. Diante deste cenário, como mostrou análise do Chuteira FC, parceiro de CartaCapital, a decisão da Fifa se torna nesse momento o único meio para Del Nero ser banido do futebol.

J. Hawilla explica o funcionamento do esquema

Na semana anterior, o empresário José Hawilla já havia dado uma mostra da dimensão do esquema e do envolvimento de Del Nero. Ex-presidente da Traffic, que possuía os direitos de transmissão da Copa América e da Copa Libertadores, ele se declarou culpado em 12 de dezembro de 2014 e desde então colabora com a Justiça dos EUA, inclusive gravando às escondidas conversas com outros acusados. Como parte do acordo de colaboração, Hawilla teve confiscados 151 milhões de dólares de seu patrimônio. Na segunda-feira 4, diante dos jurados da Corte no Brooklyn, admitiu subornar dirigentes esportivos desde 1991.

J. Hawilla, como é conhecido, fez carreira como repórter na TV Globo antes de enveredar pelo marketing esportivo, no qual fez fortuna. Hoje, o ex-funcionário é sócio da TV Tem, rede do interior paulista afiliada à emissora da família Marinho. O empresário firmou um contrato com a Conmebol para realizar a edição de 1987 da Copa América. Quatro anos depois, pagou “entre 400 mil e 600 mil dólares” ao paraguaio Nicolás Leoz, então chefe da entidade que comanda o futebol na América do Sul.

Desde então, admite, tornou-se “refém” de Leoz, a exigir propina a cada renovação de contrato. Ricardo Teixeira, então presidente da CBF, também tinha a sua parte. “Começou, acho, com 1 milhão de dólares, depois passou para 1,5 milhão, depois 2 milhões, 2,5 milhões, 3 milhões”, disse Hawilla, que entrou no tribunal nova-iorquino carregando um balão de oxigênio.

Na terça-feira 5, o empresário mostrou à Corte gravações de conversas com Marin, então presidente da CBF, e com Kleber Leite, dono da Klefer e antigo parceiro de negócios, feitas sob a orientação do FBI e de promotores federais. Um ano antes de ser preso na Suíça, Marin demonstrava-se insatisfeito com a divisão de propinas destinadas a ele, ao antecessor Ricardo Teixeira e ao vice Marco Polo Del Nero, hoje no comando da entidade.

Em dado momento da conversa, Hawilla reclama do fato de Teixeira continuar recebendo suborno mesmo afastado da CBF. “É realmente necessário dar ao Ricardo 1 milhão de reais?”, indaga. “O que nós já fizemos e continuamos fazendo, está na hora de chegar para o nosso lado”, responde Marin, que se declara inocente no processo. Em seguida, o dirigente queixa-se de um suposto calote de Kleber Leite, relacionado a um contrato da Copa do Brasil. “Por favor, vê isso. Eu também vou perguntar ao Marco Polo (Del Nero). Era 900 mil dólares. Por favor, vê isso.”

O diálogo ocorreu em abril de 2014, durante um evento de promoção da Copa América Centenário, em Miami. Antes de gravar o presidente da CBF, Hawilla fez uma série de telefonemas para Kleber Leite. Grampeadas, as ligações foram feitas do escritório dos promotores americanos no Brooklyn. Em uma dessas ocasiões, o dono da Traffic menciona supostos valores de propinas repassados a Teixeira, Marin e Del Nero. “Kleber, você me falou que era 1,5 milhão de reais, 500 mil para cada um”, diz Hawilla. “Não, não, não. Nós fizemos uma adequação para incluir mais gente. Tinha uma coisa certa, que foi modificada em função dos fatos novos”, corrige Leite.

Em 2010, a Traffic perdeu os direitos de transmissão da Copa América para a empresa argentina Full Play, que teria subornado dirigentes sul-americanos. Inconformado, J. Hawilla entrou com um processo contra a Conmebol em Miami, e o caso arrastou-se até 2013, quando foi selado um acordo. A Traffic associou-se à Full Play e à Torneos y Competencias, também da Argentina, para formar uma nova empresa. A Datisa, como foi batizada a agência, despejou milhões de dólares para subornar dirigentes esportivos em troca dos contratos da competição.

Essas empresas figuram no centro do esquema de corrupção, apelidado de “Fifagate”. E foi justamente um executivo da Torneos y Competencias, Alejandro Burzaco, quem arrastou a TV Globo para o escândalo. Em 15 de novembro, durante depoimento em Nova York, o empresário acusou a emissora da família Marinho de pagar parte de uma bolada de 15 milhões de dólares ao dirigente argentino Julio Grondona pelos direitos de transmissão das Copas de 2026 e 2030. O restante da propina teria sido bancado pela tevê mexicana Televisa.

Segundo o depoimento, o suborno foi acertado em 2013 durante uma reunião da Fifa, em Zurique. Além dos gigantes da comunicação do México e do Brasil, a terceira companhia envolvida na operação era a Datisa. O dinheiro teria sido depositado em uma conta na Suíça. Burzaco admitiu ainda pagar, desde 2006, cerca de 600 mil dólares por ano a Ricardo Teixeira pelo contrato de transmissão da Copa Libertadores e da Sul-Americana.

E mencionou duas reuniões em Buenos Aires para detalhar como a propina seria repartida com Marin e Del Nero. No último encontro, Marcelo Campos Pinto, então diretor da Globo Esporte, estava presente e teria dado aval ao acerto.

No fim de novembro, Eladio Rodrigues, ex-funcionário da Torneos y Compe-tencias, apresentou à Suprema Corte do Brooklyn uma planilha com detalhamento das propinas pagas a diversos cartolas. Um dos registros indica um repasse de 10 milhões de dólares feito pela Globo. Logo abaixo, uma anotação em espanhol: “Ctrato c/ vehiculo Marcelo C. Pinto, 1,000,000”. A testemunha confirmou tratar-se do executivo da TV Globo, responsável por negociar contratos de transmissão de jogos de futebol até novembro de 2015, quando deixou a empresa.

Por meio de nota, o Grupo Globo afirmou não praticar nem tolerar pagamento de propina, além de manifestar surpresa com os relatos envolvendo seu ex-diretor. “A ser verdadeira a situação descrita, o Grupo Globo deseja esclarecer que Marcelo Campos Pinto, em apuração interna, assegurou que jamais negociou ou pagou propinas a quaisquer pessoas.”

Não é tão simples desvencilhar-se, porém, das acusações. Como atesta um documento registrado no 5º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, a Globo Comunicação e Participações S.A., representada pelos irmãos Roberto Irineu Marinho e João Roberto Marinho, concedeu uma procuração ao ex-diretor da Globo Esporte, para que ele pudesse assinar contratos de direitos de transmissão das competições organizadas pela Fifa durante o período de 2023 a 2030. O documento, datado de 12 de março de 2013, foi revelado recentemente pela equipe do Jornal da Record.

A Klefer, por sua vez, nega as acusações do antigo parceiro de negócios J. Hawilla. “Quem detinha os direitos e desenvolvia a Copa do Brasil até 2014 era a Traffic. Dessa forma, é mais do que óbvio que, se alguma ilegalidade foi cometida, só pode ter sido pela Traffic. Não reconhecemos e repudiamos as transcrições das alegadas gravações apresentadas”, diz a nota da empresa.

Del Nero nega ter recebido vantagens indevidas e diz não ter participado das negociações de contratos da CBF com a Traffic e a Klefer. Por via das dúvidas e a bem do próprio pescoço, não arreda o pé do Brasil. A defesa de Ricardo Teixeira não se pronunciou sobre as gravações de J. Hawilla, mas tem criticado os promotores americanos pelo indiciamento do cartola, “baseado em relatos fantasiosos”. Já a defesa de Marin só deve se pronunciar após o julgamento. De todos os brasileiros acusados, ele é o único em prisão domiciliar. Todos os demais seguem em liberdade no País que não pune a corrupção privada.

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