quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Sobre o fascismo policial institucionalizado

Por Pedro Tierra, no site Carta Maior:

“Abajo la inteligencia! Viva la meurte! - General Millan-Astray.

“Este es el templo de la inteligência y estais profanando su sagrado recinto. Yo soy su sumo sacerdote. Venceréis porque tenéis sobrada fuerza bruta, pero no convenceréis.” - Miguel de Unamuno.


O general franquista Millan-Astray se orgulhava de ostentar o corpo coberto pelo maior número de cicatrizes em toda a Europa. Fundador da Legión espanhola criou uma das frases mais paradoxais e terríveis que se pode imaginar e era repetida a cada manhã para seus jovens legionários: “Vos sos novios de la muerte”! Em 1936 durante uma cerimônia na Universidade de Salamanca, uma das mais antigas do mundo, estabeleceu-se uma altercação entre o general e o então reitor da universidade Dom Miguel de Unamuno que pode, talvez, ser sintetizada nas frases com que abro essa reflexão.


Unamuno foi afastado por Franco da Universidade para uma prisão domiciliar e para a morte, meses depois. O franquismo, com a preciosa colaboração da sinistra figura de Millan-Astray e seus comandados, submeteu a Espanha por quarenta anos, ao preço de dois milhões de mortos. Com a morte de Franco, em 1975, emergiu uma nova Espanha ou talvez aquela Espanha que em 36 falou pela boca da controversa - mas profética – figura de Unamuno: “Venceréis porque tenéis sobrada fuerza bruta, pero no convenceréis”.

O governo de traição nacional Michel Temer desencadeia neste momento uma ofensiva contra as Universidades Públicas, enquanto opera no Parlamento para liquidar a Previdência Social, o mais importante mecanismo de defesa contra a desigualdade vigente no Brasil. Estão em curso as operações “Research”, “PhD”, “Ouvidos Moucos”, “Esperança Equilibrista” e “Torre de Marfim”, nos informa o professor da USP André Singer, em artigo publicado no último sábado, 9 de dezembro. É possível identificar um duplo objetivo: aos olhos do governo golpista, esse arquipélago de neocolônias em que estão transformando o país não necessita de Universidades Públicas capazes de produzir conhecimento, tecnologia e organizar a memória e a cultura; o segundo: vamos desmoralizá-las e privatizá-las para barrar o avanço dos setores populares que puseram os pés no seu recinto durante os governos Lula e Dilma. Para os poucos, aqueles destinados a gerir a neocolônia, existe Harvard. Como antes existiu Coimbra.

Para subjugar uma nação com as dimensões do Brasil, com população numerosa, língua própria e unificada em todo o território, com cultura própria, com um processo em curso de auto-reconhecimento e redefinição de suas identidades, o ciclo regressivo do capitalismo neoliberal não prospera se não destruir os centros de pesquisa, produção e difusão de conhecimento identificados com uma perspectiva de construção de um projeto nacional democrático e popular contemporâneo.

Ao nomear a operação contra a Universidade Federal de Minas Gerais como “Esperança Equilibrista”, referência à canção de João Bosco e Aldir Blanc que embalou nossos sonhos de retomada da democracia, na década de 80, a “Legión” em que se converteu há tempos a Polícia Federal no Brasil, diz tudo. Está equipada e pronta para cumprir o papel que em outros tempos foi atribuído às Forças Armadas, revela o ódio fascista dirigido contra um reconhecido centro de pesquisa, produção e difusão do pensamento crítico. Precisamente a Universidade que acolheu no seu espaço o Memorial da Anistia, destinado a organizar a memória das lutas do povo brasileiro e a cultura de resistência contra a tirania que anoiteceu o país por mais de duas décadas.

O atentado contra a UFMG, a par da violência criminosa cometida contra seus professores e dirigentes, expõe um rasgo cínico de ódios acumulados – algo como a garra que até ali se escondia sob a toga rota – e agora se deixa entrever para explicitar que todos os limites do Estado Democrático de Direito foram ou serão ultrapassados quando se julgar necessário impor as mais antigas expressões da tirania: a insegurança e o medo. Depois da morte de Carlos Augusto Cancellier de Olivo, Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, do prêmio e da solidariedade corporativa recebidos pela delegada que comandou aquela ação; depois da agressão à UFMG o que podemos falar no Brasil a respeito de autonomia universitária?

As universidades brasileiras estarão, a partir de agora, ao sabor do arbítrio da casta de juízes que se deixam fotografar empunhando fuzis, como vimos há poucos dias, e ao alcance da truculência de uma corporação que substituiu o serviço que deve institucionalmente prestar à sociedade pelos interesses específicos dos seus integrantes e de sua própria imagem pública. Essa distorção nos objetivos da Polícia Federal faz dela uma espécie de Guarda Pretoriana da Tirania exercida por um governo ilegítimo sobre uma sociedade sem defesas.

Fica evidente a cada dia que ruiu a institucionalidade codificada pela Carta de 1988 e a sociedade brasileira se encontrará, por algum tempo, à mercê de um judiciário despreparado para a adequada administração da justiça; com o olhar filtrado pelo sentimento de pertencer a uma casta; não raro partidarizado e posto a serviço da plutocracia.

Os setores populares, ao lado da necessária resistência ao arbítrio instalado no país por um governo ilegítimo, de se ocupar do novo desenho institucional da democracia assentado sobre a mais ampla participação popular, neste momento em que o golpe de 2016 se encarregou de sepultar a experiência da democracia liberal em que vivíamos até a deposição da Presidente eleita, Dilma Rousseff.

* Pedro Tierra é poeta e ex-presidente da Fundação Perseu Abramo.

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