Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
A reação vergonhosa contra uma homenagem da Câmara de Vereadores a dona Marisa Letícia Lula da Silva, que batizou o viaduto do M'Boi Mirim com seu nome, teve a utilidade de registrar para a posteridade o caráter mórbido da gestão de João Doria a frente da cidade de São Paulo.
Depois de escancarar seu desprezo pelo destino dos brasileiros vivos - confirmado pela decisão irresponsável de elevar o limite de velocidade nas avenidas marginais por um simples capricho eleitoreiro - a prefeitura de Doria divulgou uma nota desrespeitosa de ataque à memória de Marisa Letícia. Ali, anuncia "a discordância do prefeito em relação à injusta homenagem prestada a alguém envolvido no maior escândalo de corrupção já registrado no país e que nunca morou na cidade nem jamais lhe trouxe qualquer benefício."
O inconformismo do prefeito tem um elemento irônico. Conhecido por ausências frequentes no local de trabalho para o qual foi eleito em 2016, Doria teria todo direito de vetar a proposta aprovada pela Câmara, se estivesse em seu posto no final de ano. Mais, uma vez, contudo, ele se encontrava fora, em viagem. O vice, Bruno Covas, também estava fora. Sem o titular e sem o vice, a prefeitura ficou nas mãos do presidente da Câmara, Milton Leite, que sancionou a decisão.
Atacar a honra de uma pessoa que já não pode se defender já é uma vergonha. Quando se recorda que Marisa Letícia jamais recebeu uma condenação na Lava Jato, estamos falando de um nível de covardia e indignidade que só se explicam pelos tempos indecentes que o país está vivendo.
Pelo nível grotesco, o ataque só pode ser superado pela operação de gorilas da extrema-direita da Argentina contra a memória de Eva Perón, cujo cadáver foi arrancado de seu túmulo em Buenos Aires, embalsamado e conduzido a um local secreto, por décadas, para impedir que seu legado político, uma das referências do peronismo, se transformasse num local de veneração de familiares, aliados e admiradores.
O fato de ter disparado um ataque contra a memória de uma pessoa que jamais teve uma atuação política pública, construindo uma existência discreta de lealdade ao marido e no interior da família, apenas ressalta o caráter mesquinho, pequeno, da reação de Doria.
Também confirma, por evidência, o inconformismo crescente de adversários do PT com qualquer evento, lembrança ou registro - como um nome de viaduto - que possa remeter a memória do presidente e candidato favorito em 2018, disputa que o prefeito-playboy desistiu de encarar depois de rápidas encenações.
O ataque covarde a Marisa Letícia ocorre neste momento pós-fantasia de gari e outras peripécias de curta duração, incapazes de impedir o desmoronamento de Dória.
Antiga operária da Dulcora, uma das grandes fábricas de doces dos anos 1960, Marisa morreu em fevereiro de 2017 em função de um AVC, ocorrido quando as pressões da Lava Jato contra Lula e sua família encontravam-se no apogeu. Ela nunca foi sentenciada na Lava Jato. Foi "envolvida" em operações midiáticas destinadas a atingir Lula e tentar comprometer sua honra. A mais conhecida delas foi a divulgação de uma conversa de palavreado forte com um de seus filhos, sem nenhum interesse público, levada a público com a evidente intenção de comprometer a credibilidade dos interlocutores, num país onde o artigo 5o. da Constituição diz que são "invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".
Não custa recordar que, durante a ditadura militar, cônjuges e filhos de adversários do regime eram sequestrados e ameaçados para denunciar o envolvimento de parentes em ações consideradas subversivas. Em outro contexto, os adversários de Lula sempre testaram o caráter de Marisa e dos filhos, na esperança encontrar um ponto de apoio doméstico para desestabilizar o seu marido - e sempre quebraram a cara. Foi assim já em 1989, quando a campanha de Fernando Collor revelou, em tom de escândalo, que, quando era viúvo, livre e desimpedido, o candidato do PT tivera uma filha nascida de uma relação com uma enfermeira do ABC. Mais tarde, durante os oito anos de mandato de Lula, a mídia de pensamento único deliciava-se com a divulgação de fofocas sobre a vida privada do presidente, vazadas de investigações policiais e publicadas com um destaque jamais conferido a políticos de patamar equivalente, inclusive Fernando Henrique Cardoso, apontado por quase duas décadas como pai de um filho fora do casamento.
Como escrevi neste espaço, dias depois da morte de Marisa Letícia, "sempre se procurou um escândalo que pudesse se transformar em tragédia política, forçando a saída de cena do personagem indesejável. Foram três décadas de esforço, investimento, trapaças, armadilhas, de qualquer tipo, origem, fundamento. Aguardavam por um depoimento, uma reação desesperada, um gesto de quem não aguenta mais. Uma confissão conveniente. Nada. Marisa não tremeu nem cedeu. Em várias conjuntura difíceis, desfavoráveis, manteve-se de pé. Revelou-se insubstituível. Num período de desafios extremos, quando a postura de determinados indivíduos, homens e mulheres, cumprem um papel decisivo, demonstrou caráter a altura." Ao dar a Marisa Letícia o nome de um viaduto, num comportamento que faz parte da tradição dos parlamentares brasileiros em escala municipal, estadual e federal, a Câmara de Vereadores lhe prestou uma homenagem que é também uma justa reparação.
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