segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

O day after: a esperança assume o comando

Por Saul Leblon, no site Carta Maior:

Não é fácil voltar a sonhar depois de submergir na escuridão de um pesadelo sem fim.

Na história dos golpes de Estado, a insônia política revira as vísceras da perplexidade e da decepção.

A prostração física e existencial se realimenta das adversidades materiais magnificadas pela ofensiva do algoz.

Frustrações ferem a autoestima coletiva o que não raro esgarça elos pessoais, até os mais estreitos.

Não atinge apenas ‘a companheirada’ - como o acicate conservador rotula a consciência de classe que tanto sabota porque teme.

A virulenta inoculação de carências, insegurança e autodepreciação desossa a fibra e a energia individual e coletiva.

Sobra descrença. A impotência e o medo do futuro estendem a mão imobilizadora sobre o presente opaco.

A derrota da maioria borbulha no brinde vitorioso das elites em direção aos índices dos mercados, enquanto a destruição física e moral das lideranças e organizações populares ecoa autocongratulações nos editoriais cínicos.

A confraternização do dinheiro com a truculência pode inaugurar um longo ciclo de desmanche capaz de rebaixar o caráter de um povo e o destino de uma nação.

Essa dobra da história está em disputa no Brasil.

Há anos.

Mas apertou o passo quando o delfim mais palatável da direita derreteu ao vivo e a cores na reeleição vitoriosa da Presidenta Dilma Rousseff, em 2014.

O repto veio na forma de uma blitzkrieg fulminante daqueles cujo projeto foi desautorizado pelos eleitores em quatro escrutínios presidenciais sucessivos desde 2002.

A tomada daquilo que o voto negou de forma tão enfática acendeu o incinerador neoliberal a plena carga.

Há pressa e sofreguidão na cena do crime.

Mãos nervosas derretem vidas, renda, empregos, direitos, o patrimônio público, enfim, o pacto da sociedade sem consulta-la

Pontes, nervos e a musculatura que estruturavam a delicada convivência de interesses contrapostos numa das nações mais desiguais da face da terra se desintegram na combustão apressada.

Emerge daí um Brasil em estado bruto.

Desprovido dos contrapesos públicos e sociais arduamente sedimentados, avulta a nostalgia senhorial.

Uma elite que jamais atravessou a soleira da casa-grande para se reconhecer parte de um povo retoma sua obsessão: interromper a construção do Brasil, a eterna construção interrompida denunciada pelo atilado sertanejo Celso Furtado.

O que soa exagerado deixa de sê-lo ao se constatar que seis bilionários brasileiros concentram atualmente riqueza igual a de 100 milhões de pessoas, metade do país.

Não há espetáculo similar no mundo.

Nenhum bunker do 1% mais rico no planeta encerra uma usina de desequilíbrio tão violenta, capaz de tornar risíveis as orações dos muezins do equilíbrio fiscal.

A assunção escancarada do judiciário como partido desse dinheiro e dessa ideologia resume o chão mole de um Brasil fraturado, que se arrasta assim em direção às urnas de outubro de 2018.

Ninguém sabe se chegará lá.

Ou se este ‘1964’ de terno e toga providenciará as fardas de um novo dezembro de 1968, a exemplo do que fez a ditadura civil-militar no AI-5, quando assumiu de vez o papel de braço armado do terror e da tortura a serviço da faxina antissocial e antinacional das elites.

Se o desfecho permanece incerto, até por isso o day after especulado é menos imprevisível do que sugere.

Qualquer que seja o resultado do julgamento de Lula, o passo seguinte da história brasileira está contratado.

Inaugura-se um ciclo de luta social aberta e renhida, escandida pelo monólogo doentio da ganância plutocrática.

Com um notável contraponto de ineditismo porém, que a aliança da mídia com a escória e o dinheiro subestima.

A alternativa à dissolução neoliberal do país requer definitivamente um protagonista social que a conduza.

Significa dizer que a esperança que antes delegava, agora será o comando.

Com ou sem Lula candidato em 2018. Com ou sem Lula no Planalto em 2019.

Ou não haverá mais esperança no Brasil.

O jogo do ‘ganha-ganha’, como ficou conhecida a mediação política delegada nos últimos 17 anos, exercida com reconhecida habilidade pelo ex-presidente para superpor avanços sociais inegáveis aos lucros nunca cessantes, colapsou nos seus próprios termos.

Ao perder o amortecedor do crescimento acomodatício - azeitado pelo boom das commodities, o pêndulo consensual perdeu sua inércia.

O golpe antecipou-se ao esgotamento desse impulso substituindo-o pela lei da selva na qual ‘o vitorioso leva tudo’.

Um saque ostensivo da elite contra o próprio povo se processa aos olhos do mundo.

Explica-se a reticência dos chefes de Estado.

Até Trump hesitou em posar ao lado disso, Temer.

A opinião pública mundial enxerga o que a mídia esconde com unhas e dentes.

O Brasil está sendo varrido por arrastão argentário.

‘Sem um único tiro’, observaria Lula, num espanto cujo esclarecimento convoca a autocrítica da grande lacuna do ciclo abortado.

Ou seja, a ausência da organização popular na construção de uma democracia social que sempre foi delegada.

Não haverá mais indulgência para continuar a fazê-lo.

Esse é o aviso expresso do golpe.

Se a ruptura envia um alarme histórico ao projeto de um Brasil progressista, ironicamente coloca os sentenciadores de Lula também no vórtice de um paradoxo.

Ao condena-lo, reforçam a hora da rua.

Se o pouparem, reforçam a hora da rua.

Se procrastinarem, reforçam a hora da rua.

Em resumo: a página da história está virando diante de nós.

É preciso ler o que diz a seguinte.

Diz que se o povo brasileiro quiser recivilizar uma nação na qual a luta pela democracia social será cada vez mais afrontada pelos limites da costura estrutural que a contradiz, terá que deixar o papel coadjuvante para encarnar o protagonismo de seus próprios anseios.

Sem um salto de organização permanente, será impossível reaver o que já foi subtraído.

Mais que isso: avançar em direção a conquistas novas só críveis no bojo de um ciclo estável de investimentos e ganhos de produtividade.

Esse é o nó górdio.

A luta contra o golpe e a governabilidade pós-vitória são água da mesma fonte.

Não se separam.

A organização política do povo brasileiro hoje é a única variável capaz de injetar coerência macroeconômica à matriz do desenvolvimento amanhã.

O resto é arrocho. Com sua escalada inescapável de repressão.

A farsa liberal consiste justamente em cevar o Estado autoritário ao ter como meta o desmanche de sua principal barragem institucional: a Carta de 1988, sob a curetagem grosseira dos cirurgiões des-emancipação social impiedosa e insustentável.

O jornalismo embarcado lambuza o fel com um glacê rudimentar de Adam Smith.

Ataca-se o ‘populismo estatizante’ –‘a escravidão do Bolsa Família’, como sugere o ‘presidenciável da Febraban, Rodrigo Maia, em nome de um auto-interesse virtuoso.

Daí se extrapola a prescrição da engenharia social em que o ‘cada um por si’ leva ao fastígio coletivo.

Adam Smith era menos tosco que os neoliberais dos trópicos.

Genuinamente religioso, ele condicionava a centralidade do interesse próprio à irrepreensível obediência a referências morais e éticas que ajustariam o individualismo em um trilho de irrepreensível civilidade.

Os impulsos individuais assim disciplinados convergiriam para um cimento de valores impecavelmente compartilhados.

Nesse ambiente sacro o papel profano do Estado seria mínimo.

Não é difícil - aliás é muito fácil - deduzir o resultado da supremacia do interesse egoísta em sociedades complexas, nas quais, ao lado da luta desesperada de milhões de desvalidos, avultam interesses corporativos de dimensões globais, sobretudo aqueles cujo produto é o dinheiro, sua reprodução e as consequências da sua desregulação.

Lula é o símbolo contraposto ao que se quer desmontar na medida em que foi sob o guarda-chuva de sua liderança que o pacto social inscrito na Carta Cidadã de 1988 ganhou, finalmente, a estatura de política de Estado.

De certa forma, é como se o verdadeiro liberalismo, o de Ulysses Guimarães, que presidiu e proclamou a Carta de 88 ‘como a lamparina dos desgraçados’, fosse sacrificado junto com Lula no banco dos réus do tribunal de Porto Alegre.

Neles o conservadorismo condensa o entulho a ser removida no caminho dos livres mercados.

Não é pouco.

Mais de 60 milhões de novos consumidores ingressados na economia a cobrar cidadania plena desde 2004.

Cerca de 22 milhões de novos empregos formais que recrudesceriam a pertinência da CLT e do pleno emprego.

Um salário mínimo 70% maior em poder de compra a dificultar a compressão geral dos assalariados

Um sistema de habitação popular subsidiado.

Bancos públicos a se impor à banca privada.

A Petrobras e o BNDES fechando as lacunas da ausência de instrumentos estatais na coordenação do desenvolvimento.

Políticas de conteúdo nacional a devolver um impulso industrializante ao país.

Desdobramento de um acróstico - os BRICS - em instrumentos de contrapeso à hegemonia dos mercados financeiros globais…

Etc.

A faxina é tão virulenta que requisitou da coalizão golpista um árduo trabalho de escovão e detergente ideológico para dissolver a resistência alojada em estruturas de consumo, serviços e participação instituídas para atender a apenas 1/3 da sociedade.

Não basta, portanto, tirar Dilma

É preciso executar, picar, salgar e pendurar Lula aos pedaços em praças e avenidas do país.

Matar a audácia pela raiz.

Somente assim a virulência nua e crua do neoliberalismo poderá ser exercida em sua plenitude: em uma sociedade desprovida da gordura do Estado de Bem Estar Social faz-se mister cortar no osso.

Imagina-se que a cabeça de Lula é o pedaço mais duro desse percurso.

Pode ser um engano.

Esse é o cerne da dificuldade conservadora para definir uma candidatura e impedir de fato a força de Lula no palanque: a elite senhoril não tem projeto de país no qual caiba o povo brasileiro.

O jornalismo embarcado sonega esse traço central da encruzilhada brasileira.

A ofensiva golpista não é uma consequência da crise econômica.

A crise é a própria elite.

Portanto, não existe uma ‘macroeconomia responsável’ (a do arrocho) que vai tirar o Brasil da espiral descendente.

O que existe é um acirramento da luta de classes, a exigir uma repactuação política do desenvolvimento brasileiro.

E nisso Lula mostrou-se imbatível.

E continuará a sê-lo.

Porém, não mais como delegado da esperança.

E, sim, como voz da esperança mobilizada.

Não episodicamente.

Organicamente nucleada na base.

Verdadeiramente dotada do discernimento político propiciado pela informação plural.

Apta, assim, a exercer sua consciência esclarecida em referendos e plebiscitos sobre as escolhas do desenvolvimento brasileiro.

A saber: reforma política, para capacitar a democracia a se impor ao mercado; a reforma tributária, para buscar a fatia da riqueza sonegada à expansão da infraestrutura e dos serviços; a reforma do sistema de comunicação, para permitir o debate plural dos desafios brasileiros –que são poucos, nem se resolvem sem ampla renegociação do desenvolvimento.

Quem rumina desalento diante do gigantismo da tarefa menospreza o salto histórico percorrido pela consciência democrática e progressista nos últimos três anos.

Ao desalento aspergido pelo golpe contrapõem-se agora a liberdade de se dar as coisas o seu nome.

Quem duvida deve recorrer de novo a Lula.

Basta conferir a sua verbalização dos requisitos incontornáveis à retomada da democracia e do desenvolvimento brasileiro.

Exatamente por isso, a engrenagem capitalista puro-sangue escoiceia indicadores inquietos no chão do estábulo.

Aguarda que as togas lhe tragam a liberdade para matar de vez a nação e redimir o engenho, que eles chamam de ‘eficiência de mercado’.

Como se houvesse aí o apanágio de competência, em contraposição ao ônus do ‘lulopopulismo’

Às réguas, pois.

Tome-se o ritmo de implantação do metrô em São Paulo, em duas décadas e pico de poder tucano.

Compare-se a extensão duas vezes maior da rede mexicana.

Ou a dianteira expressiva da rede argentina e da chilena.

O padrão não muda com outras fitas métricas.

Lula criou 18 universidades em oito anos.

A elite levou 420 anos para erguer a primeira.

Fernando Henrique Cardoso não fez nenhuma.

Há lógica na loucura neoliberal.

Para que serve uma universidade se não faz sentido ter projeto de nação?

Uma elite para a qual a soberania é um atentado ao mercado não reserva qualquer espaço à principal tarefa do desenvolvimento, que é civilizar o mercado para emancipar a sociedade e universalizar direitos.

O que a elite preconiza aqui é de uma violência inexcedível em regime democrático e muito provavelmente incompatível com ele.

As togas da exceção que o digam. E elas estão dizendo.

Vergonhosamente, perante a comunidade jurídica mundial e a História.

Executar Lula é a contribuição histórica das togas ao projeto conservador para o Brasil do século XXI.

Não há erro no alvo.

Mas no prognóstico talvez.

Paradoxalmente, a condenação liberta o símbolo dos seus limites.

Faz mais que isso.

Convoca os simbolizados a se imantarem a ele como a única força coletiva capaz de libertar o passo seguinte da história brasileira da opressão e da iniquidade.

Um ciclo se fecha, mas o que engatinha deixará saudade no conservadorismo.

Será tarde demais quando perceberem.

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