A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) é uma instituição integrante do sistema das Nações Unidas. A Comissão foi criada em 1948 e vai completar sete décadas de existência no próximo dia 25 de fevereiro. Desde então o organismo tem contribuído de forma significativa para o processo de desenvolvimento social e econômico da região. Por seu quadro de dirigentes passaram economistas e intelectuais de grande importância para a consolidação do pensamento e de formulações relativas a questões como a desigualdade e os obstáculos à superação do atraso relativo de nossos países.
O argentino Raúl Prebisch e o brasileiro Celso Furtado talvez estejam dentre os maiores exemplos de economistas e pensadores cepalinos. Suas contribuições articulam a elaboração teórica à implementação de políticas públicas latino-americanas, em particular aquelas associadas ao desenvolvimento e à superação das dificuldades de natureza estrutural na região e no chamado mundo subdesenvolvido de forma geral. Ambos ocuparam posições de destaque na direção da CEPAL em seu escritório em Santiago, no Chile.
Anualmente a Comissão elabora e divulga um importante documento intitulado “Panorama Social da América Latina”. Cada edição tem por objetivo aprofundar algum tema que seja considerado mais relevante para a maioria dos países da região. Não é por mera coincidência que a versão de 2017 tem por título “Sistemas de aposentadorias e pensões na América Latina: fundamentos normativos e desafios demográficos no horizonte da igualdade”. A intenção é proporcionar elementos para um debate mais sério a respeito de um assunto tão polêmico quanto sensível, que está em pauta e que tem mobilizado a atenção de estudiosos, governos, entidades e a população latino-americana.
Panorama 2017: a boa tradição da Cepal
O lançamento do Panorama ocorre em período crucial para a definição do futuro do sistema previdenciário em nosso País. O governo Temer estabeleceu o mês de fevereiro como marco para a última tentativa de colocar a sua proposta de reforma previdenciária em votação no Congresso Nacional. A matéria foi apresentada ao mundo das finanças como a garantia de que o governo que sucedeu ao “golpeachment” viria para promover um amplo e profundo estrago em nosso sistema de previdência social. No entanto, já se passou quase um ano e meio depois do afastamento ilegal de Dilma Roussef e o texto da Emenda Constitucional ainda não avançou quase nada em sua tramitação no âmbito do legislativo.
A leitura do balanço do tratamento do tema previdenciário no interior da América Latina, proporcionado pelo documento da Cepal, pode nos oferecer alguns elementos de análise. O ponto de partida é o reconhecimento dos sistemas de previdência na região como mecanismos de promoção de cidadania, de redução da desigualdade e de combate à pobreza:
(...) ”apresenta um novo estudo do contexto demográfico e das desigualdades no mercado de trabalho e sua relação com a cobertura e a qualidade das prestações dos sistemas de aposentadorias e pensões. A premissa é que esses sistemas são fundamentais para o pleno exercício dos direitos de cidadania e, em especial, para a garantia do direito à seguridade social e à proteção social. Dependendo do modelo e do nível das prestações, os sistemas de aposentadorias e pensões contribuem em menor ou maior medida para reduzir a pobreza e a desigualdade, e podem ser um mecanismo solidário entre gerações e dentro delas, permitindo enfrentar coletivamente riscos de magnitude e ocorrência incertas e possibilitando um envelhecimento digno.” (...)
O documento oferece um conjunto abundante de informações corroborando a melhoria observada nos parâmetros de inclusão e de redução das desigualdades nos países da região a partir no início do século XXI. Um dos fatores relevantes para explicar esse fenômeno é justamente a existência de modelos contributivos de previdência. Ao abordar a questão de uma forma mais ampla do que o simplificacionismo reducionista da ortodoxia monetarista, a Cepal não identifica os regimes de seguridade social como sendo apenas um “problema fiscal” a ser equacionado de forma urgente e irresponsável.
AL: previdência reduz desigualdades
Assim, saltam aos olhos as diferenças de abordagem e até mesmo de proposições entre esse Panorama e o material apresentado recentemente pelo Banco Mundial acerca do mesmo assunto. No relatório que recebeu o título de “Um ajuste justo”, o banco faz coro com o clima catastrofista da equipe Temer, Meirelles & Cia e termina por oferecer argumentos para uma proposta previdenciária que reduz direitos e abre caminho para a própria destruição de qualquer modelo de natureza pública e solidária. Ao que tudo indica, o ambiente na Cepal é outro.
O Panorama identifica a reversão da tendência ocorrida na década de 1980, quando alguns países foram levados a promover reformas estruturais em seus regimes de previdência pública e intergeracional. Naquele momento, a moda era ditada pelos princípios do chamado Consenso de Washington, que propunha a liberalização geral das economias, a privatização das empresas estatais, o incentivo ao Estado mínimo e a transferência dos regimes de previdência pública para a órbita do sistema financeiro privado. Esse foi o estrago generalizado promovido pela experiência desastrosa e criminosa do neoliberalismo.
O modelo previdenciário sugerido e adotado por alguns países foi o de capitalização individual, rompendo com a lógica da solidariedade intergeracional e o suporte institucional oferecido pela própria natureza pública do regime de seguridade. Com isso, a previdência social deixa de ser encarada como um direito de cidadania e um serviço público universal, transformando-se tão somente em mais uma mercadoria. Um dos inúmeros produtos oferecidos nas prateleiras dos verdadeiros supermercados em que se transformaram cada vez mais os bancos. O ato de adesão é facultativo e individual, ao passo que a “aposentadoria” do cidadão passa a depender exclusivamente de sua capacidade contributiva ao longo da vida laboral. Um desastre!
Reforma de Temer: contramão da História
Para as instituições financeiras tratou-se de um grande negócio, é claro. Como ocorre também no caso dos planos de capitalização dos planos de previdências privadas existentes no Brasil. No entanto, a lógica da busca de lucro das mesmas é contraditória com a satisfação das necessidades sociais de uma previdência ampla e inclusiva. Assim foi que décadas mais tarde, quando o sistema se mostrou falido e incapaz de atender à sua função básica de oferecer benefícios previdenciários justos e dignos, houve uma mudança. Vários países que haviam caído no conto da carochinha liberalóide voltaram atrás e substituíram o modelo individual de capitalização pelo bom e velho sistema público e de amplo acesso. Esse foi, por exemplo, o caso de Chile, Argentina e Bolívia. Ainda de acordo com o Panorama,
(...) “nesse contexto, observa-se uma tendência de avançar sobre o sistema público e desenvolver esquemas solidários, diferentemente do que ocorreu na década de 1990, quando as reformas se concentraram na introdução do esquema de capitalização individual nos sistemas de previdência. Essa nova tendência em direção a uma maior participação do Estado no sistema de aposentadorias inclui o desenho de mecanismos de solidariedade contributivos e não contributivos” (...) [tradução minha]
Por mais que nossos representantes tupiniquins do financismo não ousem externar aquilo que efetivamente pretendem realizar com nosso sistema previdenciário, a aventura privatizante não está totalmente descartada. A estratégia da duplinha dinâmica Meirelles & Goldfajn na economia joga para desmoralizar e destruir o nosso Regime Geral de Previdência Social (RGPS) por falta de recursos no longo prazo. Com essa campanha publicitária sistemática condenando a falência do sistema caso a proposta deles não seja aprovada, a intenção quase óbvia é promover a diminuição da credibilidade do sistema público perante as novas gerações.
Some-se a isso uma flexibilização radical da legislação trabalhista, um desemprego monumental e a comemoração oficial com as novas contratações em postos de trabalho sem carteira de trabalho assinada. De outra parte, o governo continua a conceder as isenções conhecidas para as entidades p(h)ilantrópicas e assegura a desoneração da folha de pagamentos, ao tempo em que a sonegação oficialmente reconhecida supera a marca de meio trilhão de reais. Caso nada seja feito em termos de reverter essa tendência de inviabilizar o sistema de forma deliberada, é mesmo capaz de concretizar-se mais à frente a farsa da profecia auto-realizada. Tudo na base do “não falei que esse modelo era inviável?”.
Financismo insiste na privatização
Mas um conhecido integrante da nata do financismo não tem papas na língua. Consultor do candidato Jair Bolsonaro, o aprendiz de banqueiro Paulo Guedes não se envergonha de dizer claramente aquilo que seus colegas ainda não ousam afirmar, talvez por considerarem como sendo uma declaração infeliz, um tanto precipitada. Em entrevista recente concedida a um jornal lido por todos aqueles que operam no chamado “mercado”, ele afirma com todas as letras:
(...) “que o atual sistema de repartição da Previdência no país já está superado e que é preciso adotar o modelo de capitalização, operacionalizado por bancos privados (...)
Uma loucura! Esses caras pretendem promover um retrocesso de quatro décadas e estão transformando o nosso país em um experimento quase tão traumático quanto aquele que os Chicago boys realizaram no Chile depois do golpe de Pinochet em 1973. No entanto, felizmente as forças progressistas ainda podemos contar com a seriedade profissional e a honestidade intelectual dos corpos dirigentes e técnicos responsáveis por órgãos como a CEPAL.
É inegável que o nosso modelo previdenciário necessita passar por ajustes para garantir sua sobrevivência no longo prazo. A busca de equilíbrio econômico e atuarial faz parte dos elementos para assegurar sua sustentabilidade intergeracional. Mas o pré requisito para qualquer iniciativa nesse sentido chama-se credibilidade, busca de consenso e apoio popular. Ou seja, tudo aquilo que falta a esse governo ilegítimo e que está com os dias contados para acabar. As mudanças no perfil demográfico e as transformações no mercado de trabalho, por exemplo, são fatos inegáveis. Mas também não devem ser descartadas as buscas por outras fontes de financiamento, com o intuito de conferir maior grau de equidade tributária ao nosso sistema previdenciário.
Mas nada disso justifica o discurso da falsa urgência da reforma. Essa suposta mudança fantástica que traria no seu dia seguinte o equilíbrio mágico às nossas combalidas finanças públicas. Mentira! No curto prazo, a crise fiscal só se ameniza com a retomada do crescimento e a recuperação das receitas tributárias. Mudança previdenciária exige a busca de um amplo consenso social, ao tempo em que assegura direitos. Seus efeitos são de médio e longo prazos. Nessa linha, a contribuição da CEPAL para este nosso debate é essencial e muito bem vinda.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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