Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Apareceu um estranho argumento estatístico no mais atual debate jurídico do país, aquele que gira em torno da preservação do artigo 5, incisivo LVII da Constituição, que diz que “nenhuma pessoa será considerada culpada até o transito em julgado de sentença penal condenatória”.
Como nós sabemos, essa garantia foi suspensa pelo STF em 2016, numa votação apertada de 6 a 5, logo depois da derrubada de Dilma Rousseff sem crime de responsabilidade, quando a força política da Lava Jato se encontrava no auge.
O debate tem uma importância óbvia no Brasil de 2018. O trânsito em julgado pode ser o último recurso jurídico para evitar a prisão de Lula por 12 anos, sem prova de crime, e garantir sua presença na campanha presidencial na qual aparece como o candidato em primeiro lugar em todas as pesquisas.
Assinado por Luís Roberto Barroso, do STF, e Rogério Schietti, do STJ, com base num levantamento da Coordenadoria de Gestão de Informação do STJ, o artigo “Execução Penal, opinião e fatos, “ defende a noção de que a preservação do trânsito em julgado atinge a situação de uma parcela estaticamente minúscula de condenados, pouco mais de 1%. Mesmo sem dizer de forma explícita, este é o principal argumento para preservar o cumprimento da condenação em segunda instância.
O sujeito oculto do debate é Lula e seu destino.
A função política do artigo é respaldar a presidente do STF Carmen Lúcia, que lançou a jurisprudência do “apequenar” para evitar uma discussão necessária, até porque há sinais claros de que se formou uma nova maioria na corte mais alta do país, favorável a uma nova decisão, favorável ao transito em julgado. Mas os dois ministros preferem discutir números.
“A soma dos percentuais de absolvição e de substituição de pena é de 1, 64%”, escrevem, para sublinhar com isso o baixo “impacto sobre a liberdade dos condenados.” Para os dois autores, “é ilógico moldar o sistema em função da exceção e não da regra”. Concluindo: reestabelecer o trânsito em julgado “traz pouco benefício para a Justiça”.
Na conclusão, Barroso e Schietti deixam o campo matemático para defender a prisão a partir da segunda instância, com o argumento clássico de que o transito em julgado representa “grande incentivo à corrupção”. Sabemos qual o sentido dessa referência. Melhor voltar à matemática.
A mesma estatística que usa o cálculo de 1,64% para evitar um debate que envolve não só um candidato com 37% das intenções de voto, mas milhares de outros condenados na mesma situação, permite questionar uma estatística básica.
Estamos falando do questionável direito de onze ministros STF, escolhidos em épocas diferentes por cidadãos diferentes que ocupavam a presidência da República, fazerem uma mudança na carta maior, votada em dois turnos por um Congresso Constituinte escolhido pelo voto popular em 1986.
A estatística é assim: um total de 69 milhões de brasileiros foram às urnas em 1986 para escolher senadores e deputados federais que escreveram e votaram a Constituição. Enquanto isso, o plenário de que em 2016 derrubou o trânsito em julgado representa um punhadinho de 11 votos, 6 milhões de vezes menor que o total de eleitores que deram origem ao inciso LVII do artigo 5. Se computarmos apenas os 6 ministros que em 2016 aprovaram a decisão por uma vantagem de 1 votos, estamos falando de um universo 10 milhões de vezes menor.
A exemplo do 1,64% de Barroso-Schietti, estes números não resolvem uma discussão jurídica. Mas demonstram o caráter absurdo de se empregar estatísticas num debate que envolve problemas fundamentais da existência humana, a começar pelo respeito à liberdade como o valor maior de nossa existência – depois da própria vida.
Essas comparações também ajudam a lembrar que as estatísticas podem ser muito úteis para se conhecer a realidade de um país ou a consistência de um argumento teórico – mas também para iludir e enganar. “Como mentir com estatísticas” é uma obra clássica da sociologia norte-americana, que desde a década de 1950 alerta para o risco de confiar-se num recurso que tanto serve para esclarecer como para confundir.
No Brasil, onde 720 000 pessoas eram mantidas em regime de encarceramento no momento do levantamento, a visão de que uma percentagem de 1,64% pode ser insignificante é relativa demais para servir de critério para qualquer decisão. Envolve 11 000 pessoas e, só para ter uma ideia do que isso significa, tentei descobrir quantas cidades brasileiras tem esse tamanho. Parei na letra A do Censo, quando esse número chegava a 103 cidades com até 10 000 habitantes. Poderíamos perguntar quantas empresas. Quantas universidades.
O argumento estatístico é inaceitável, essencialmente, porque o Estado Democrático de Direito envolve os direitos de cada indivíduo perante o Estado.
Essa condição, em matéria penal, não pode ser reduzida a um número, a menos que se pretenda abandonar de vez a democracia na qual escolhemos viver, pois cria uma situação só compatível com ditaduras especialmente cruéis. Sim: estou falando daqueles regimes nos quais os cidadãos deixam de ter nome, filiação, residência, para se transformar num número, às vezes tatuado no braço, ficando a disposição do Estado para todo tipo de abuso e crueldade. Só nessas ditaduras os direitos são reduzidos a números, porque antes isso já aconteceu com as próprias pessoas.
A história da justiça brasileira ensina que, em determinados momentos, o destino de um pequeno número de pessoas – ou de uma só pessoa – está no centro de decisões particularmente relevantes nesse terreno. Nem vamos falar de Tiradentes, marco da justiça colonial, enforcado e esquartejado sob encomenda da Coroa, interessada em criar um exemplo contra os cidadãos que lutavam pela independência contra a Metrópole. Quantos 0,0000% Tiradentes representou na jurisprudência do Brasil-colonia?
Há outros casos significativos, que ajudaram o país a avançar em direção a uma existência civilizada. A pena de morte foi abolida por Pedro II e nunca mais foi aplicada no país depois que se comprovou que Manoel da Motta Coqueiro, enforcado em 1855, perdeu a vida com base num erro judicial. Fazendeiro rico e influente, Coqueiro chegou a pedir indulto ao Imperador. Mas a falha do julgamento se comprovou quando era tarde demais. Arrependido, o Imperador decidiu indultar os condenados que aguardavam o caminho da forca, inaugurando uma tradição humanitária que o país conserva até hoje.
Deu para entender o debate em fevereiro de 2018?
Como nós sabemos, essa garantia foi suspensa pelo STF em 2016, numa votação apertada de 6 a 5, logo depois da derrubada de Dilma Rousseff sem crime de responsabilidade, quando a força política da Lava Jato se encontrava no auge.
O debate tem uma importância óbvia no Brasil de 2018. O trânsito em julgado pode ser o último recurso jurídico para evitar a prisão de Lula por 12 anos, sem prova de crime, e garantir sua presença na campanha presidencial na qual aparece como o candidato em primeiro lugar em todas as pesquisas.
Assinado por Luís Roberto Barroso, do STF, e Rogério Schietti, do STJ, com base num levantamento da Coordenadoria de Gestão de Informação do STJ, o artigo “Execução Penal, opinião e fatos, “ defende a noção de que a preservação do trânsito em julgado atinge a situação de uma parcela estaticamente minúscula de condenados, pouco mais de 1%. Mesmo sem dizer de forma explícita, este é o principal argumento para preservar o cumprimento da condenação em segunda instância.
O sujeito oculto do debate é Lula e seu destino.
A função política do artigo é respaldar a presidente do STF Carmen Lúcia, que lançou a jurisprudência do “apequenar” para evitar uma discussão necessária, até porque há sinais claros de que se formou uma nova maioria na corte mais alta do país, favorável a uma nova decisão, favorável ao transito em julgado. Mas os dois ministros preferem discutir números.
“A soma dos percentuais de absolvição e de substituição de pena é de 1, 64%”, escrevem, para sublinhar com isso o baixo “impacto sobre a liberdade dos condenados.” Para os dois autores, “é ilógico moldar o sistema em função da exceção e não da regra”. Concluindo: reestabelecer o trânsito em julgado “traz pouco benefício para a Justiça”.
Na conclusão, Barroso e Schietti deixam o campo matemático para defender a prisão a partir da segunda instância, com o argumento clássico de que o transito em julgado representa “grande incentivo à corrupção”. Sabemos qual o sentido dessa referência. Melhor voltar à matemática.
A mesma estatística que usa o cálculo de 1,64% para evitar um debate que envolve não só um candidato com 37% das intenções de voto, mas milhares de outros condenados na mesma situação, permite questionar uma estatística básica.
Estamos falando do questionável direito de onze ministros STF, escolhidos em épocas diferentes por cidadãos diferentes que ocupavam a presidência da República, fazerem uma mudança na carta maior, votada em dois turnos por um Congresso Constituinte escolhido pelo voto popular em 1986.
A estatística é assim: um total de 69 milhões de brasileiros foram às urnas em 1986 para escolher senadores e deputados federais que escreveram e votaram a Constituição. Enquanto isso, o plenário de que em 2016 derrubou o trânsito em julgado representa um punhadinho de 11 votos, 6 milhões de vezes menor que o total de eleitores que deram origem ao inciso LVII do artigo 5. Se computarmos apenas os 6 ministros que em 2016 aprovaram a decisão por uma vantagem de 1 votos, estamos falando de um universo 10 milhões de vezes menor.
A exemplo do 1,64% de Barroso-Schietti, estes números não resolvem uma discussão jurídica. Mas demonstram o caráter absurdo de se empregar estatísticas num debate que envolve problemas fundamentais da existência humana, a começar pelo respeito à liberdade como o valor maior de nossa existência – depois da própria vida.
Essas comparações também ajudam a lembrar que as estatísticas podem ser muito úteis para se conhecer a realidade de um país ou a consistência de um argumento teórico – mas também para iludir e enganar. “Como mentir com estatísticas” é uma obra clássica da sociologia norte-americana, que desde a década de 1950 alerta para o risco de confiar-se num recurso que tanto serve para esclarecer como para confundir.
No Brasil, onde 720 000 pessoas eram mantidas em regime de encarceramento no momento do levantamento, a visão de que uma percentagem de 1,64% pode ser insignificante é relativa demais para servir de critério para qualquer decisão. Envolve 11 000 pessoas e, só para ter uma ideia do que isso significa, tentei descobrir quantas cidades brasileiras tem esse tamanho. Parei na letra A do Censo, quando esse número chegava a 103 cidades com até 10 000 habitantes. Poderíamos perguntar quantas empresas. Quantas universidades.
O argumento estatístico é inaceitável, essencialmente, porque o Estado Democrático de Direito envolve os direitos de cada indivíduo perante o Estado.
Essa condição, em matéria penal, não pode ser reduzida a um número, a menos que se pretenda abandonar de vez a democracia na qual escolhemos viver, pois cria uma situação só compatível com ditaduras especialmente cruéis. Sim: estou falando daqueles regimes nos quais os cidadãos deixam de ter nome, filiação, residência, para se transformar num número, às vezes tatuado no braço, ficando a disposição do Estado para todo tipo de abuso e crueldade. Só nessas ditaduras os direitos são reduzidos a números, porque antes isso já aconteceu com as próprias pessoas.
A história da justiça brasileira ensina que, em determinados momentos, o destino de um pequeno número de pessoas – ou de uma só pessoa – está no centro de decisões particularmente relevantes nesse terreno. Nem vamos falar de Tiradentes, marco da justiça colonial, enforcado e esquartejado sob encomenda da Coroa, interessada em criar um exemplo contra os cidadãos que lutavam pela independência contra a Metrópole. Quantos 0,0000% Tiradentes representou na jurisprudência do Brasil-colonia?
Há outros casos significativos, que ajudaram o país a avançar em direção a uma existência civilizada. A pena de morte foi abolida por Pedro II e nunca mais foi aplicada no país depois que se comprovou que Manoel da Motta Coqueiro, enforcado em 1855, perdeu a vida com base num erro judicial. Fazendeiro rico e influente, Coqueiro chegou a pedir indulto ao Imperador. Mas a falha do julgamento se comprovou quando era tarde demais. Arrependido, o Imperador decidiu indultar os condenados que aguardavam o caminho da forca, inaugurando uma tradição humanitária que o país conserva até hoje.
Deu para entender o debate em fevereiro de 2018?
Por um Brasil mais justo e igualitário. Lula 2018!!!
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