quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Globo fez com Vandré o que faz com a Tuiuti

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Creio que a palavra “Boicote” é a melhor forma de definir os minúsculos segundos assegurados pelo Jornal Nacional ao desfile da Escola Paraíso do Tuiuti, desde já a grande vitoriosa do carnaval carioca de 2018.

Num país onde as instituições políticas se encontram esfrangalhadas - situação para a qual a Globo deu uma contribuição notória e insubstituível -, a Escola não só apresentou boa qualidade técnica e inegável originalidade. Também fez aquilo que se espera da boa arte popular - colocar o dedo na ferida dos problemas que incomodam a vida do povo.

Para resumir: se o tema eram os 130 anos de Abolição da Escravatura, a conclusão do desfile foi uma denuncia do governo Temer e o retrocesso em estilo pré-13 de maio de 1888 no qual o país foi colocado. Simples, direto, exagerado e divertido – como convém a todo desfile de Escola de Samba, vamos combinar.

Ao minimizar a participação da Paraíso do Tuiuti, privilegiando apresentações convencionais, cujo maior destaque eram novidades de sempre em torno de celebridades homenageadas, a Globo repetiu um piores momentos de sua história cultural.

Estou falando do Festival Internacional da Canção, em 1968, em plena ditadura militar, excrescência que a Globo apoiou até o final. Na conjuntura de opressão e violência daquele período – o golpe dentro do golpe do AI-5 iria ocorreu no final do mesmo ano -- a música Caminhando, de Geraldo Vandré, dava voz e alma a uma juventude que não se rendia.

Logo adotada pela platéia que transformou os festivais num ambiente de protesto político -- normal em toda ditadura, como sabemos - Caminhando também chamou a atenção do regime militar.

Conforme o executivo Walter Clark revelou ao jornalista Gabriel Priolli, o general Sizeno Sarmento, porta-voz da linha mais dura dos quartéis, comandante do I Exército, exigiu que a música de Vandré fosse vetada. Não poderia ganhar o primeiro lugar de forma nenhuma - determinou.

O final todos conhecem. Nascida e amamentada pela aliança com a ditadura, a Globo, que era a organizadora do Festival, ajoelhou-se. Enquanto a juventude e os trabalhadores resistiam e lutavam, ela abria o caminho para uma fase mais cruel do regime.

Caminhando ficou em segundo lugar, resultado que produziu uma das mais longas e vergonhosas vaias da história do Rio de Janeiro mas ajudou a emissora a consolidar seu prestígio político único entre a cúpula militar.

Quarenta anos depois, terá havido algum telefonema do Planalto para a Venus Platinada, em nome de uma reaproximação com o Vampiro da avenida, há pouco realizada? Quem sabe? Quem duvida?

Sabemos outra coisa. Ao tentar transformar o desfile da Paraíso do Tuiuti num asterisco do carnaval 2018, a Globo também produz um desastre por outro motivo. Há 40 anos, o país vivia sob a tragédia de uma ditadura.

Em 2018, o que se assiste é uma farsa, na qual a Globo não apenas apoia o governo, mas funciona como o Big Brother de um projeto de estado de exceção.

Neste ambiente, a emissora age como responsável pela novilíngua dos nossos tempos, a matriz de sua propaganda, a professora de sua linguagem, enganosa e autoritária. Criada pelo escritor britânico George Orwell, para denunciar o universo cultural do nazismo e do stalinismo, o termo novilíngua define uma comunicação que procura submeter a sociedade pela inversão de significados e sentidos nas coisas, contribuindo para transformar todos em homens e mulheres manipuláveis e impotentes. Assim, Mentira vira verdade, Corrupção vira Honestidade, Alegria é Depressão, Jornalismo é Fraude e Carnaval, Manipulação. O boicote a Paraíso do Tuiuti é isso.

Ao colocar-se nessa posição, o jornalismo da Globo se encaixa na crítica que, 30 anos atrás, o teatrólogo Arthur Miller, um dos mais respeitados do século XX, fez ao poder da imprensa norte-americana sobre o teatro de seu país.

Vamos acompanhar o raciocínio, que se encaixa muito bem ao debate brasileiro sobre o monopólio dos meios de comunicação: “em amplíssima medida, o teatro que temos é o teatro que os críticos permitiram que tivéssemos, posto que filtram e depuram o que segundo eles não devemos ver, aplicando leis jamais escritas, leis, entre outras, do gosto até do conteúdo ideológico”.

Em outra passagem, Miller define a situação em termos diretos: “temos uma ditadura tão eficaz como qualquer dos mecanismos de controle cultural que existem hoje no mundo.”

Autor de ideias progressistas e posturas corajosas ao longo da vida, embora tenha se tornado mundialmente conhecido pelo casamento com Marilyn Monroe, Miller escreveu também que “o monopólio não é só uma enfermidade, mas uma enfermidade perniciosa”.

Alguma dúvida?

Um comentário:

Comente: