Por Saul Leblon, no site Carta Maior:
O enredo dos filmes policiais ensina que matar é fácil, o problema dos assassinos é o que fazer com o cadáver.
Como destruir as pistas?
Como dissimular a cena do crime de modo a fundir, por exemplo, vítima e algoz num mesmo corpo e desautorizar assim suspeitas inconvenientes?
Como tornar isso crível aos olhos de uma atávica desconfiança popular, essa que no Brasil, com elevada porcentagem de acerto, considera que Getúlio foi empurrado à morte, Juscelino sofreu acidente criminoso e Tancredo teve fim suspeito.
Lula é o quase-morto da lista.
Que fazer com o quase-cadáver agora que o STJ negou-lhe um habeas corpus preventivo?
Enterra-lo vivo no próprio silêncio, num exílio domesticado em São Bernardo, tão longe das ruas, praças e palanques quanto se fosse em Marte, parece ser a repaginação do crime mais conveniente à aliança da mídia com a escória, o dinheiro e o judiciário.
Atribuir ao pescoço a morte do enforcado é tudo o que se quer com essa eutanásia de rendição obsequiosa.
O silêncio da voz rouca que o país conhece tão bem quanto a dos seus cantores mais consagrados seria música nos ouvidos de quem deseja apagar da memória uma referência tão ou mais incômoda que a de Getúlio, que mesmo vergastado há mais de sessenta anos ainda lateja no imaginário nacional como o pai dos pobres
Com Lula o envolvimento é mais dinâmico.
Antes de pai, Lula é o companheiro de uma travessia inconclusa que reúne 34 milhões de egressos da miséria em seus dois governos e no de Dilma, bem como 22 milhões que ‘ficharam’ a carteira ao longo do percurso, ademais das famílias pobres acudidas pela queda de quase 50% na mortalidade infantil, espetaculares 80% de reversão nos indicadores de desnutrição etc.
Enterrar tudo isso é obra ciclópica impensável sem o suporte de um jornalismo motivacional que cuide de limpar e justificar o sangue esguichado profusamente das entranhas do país.
O incansável pano de chão do terrorismo fiscal, os sucessivos disparos anunciando o alvorecer de uma nova era de confiança dos mercados o refletem o labor diuturno nas redações do dispositivo midiático.
Com resultados controversos, diga-se.
Conforme mostra pesquisa do blog ‘360º’, os principais veículos impressos do país diminuirma sua circulação em 520 mil exemplares no ciclo golpista, de 2015 a 2017. Na versão digital, o crescimento líquido sob o regime de exceção foi inferior a 32 mil assinantes.
Não por acaso.
Em três anos de labor golpista o Brasil já é um outro país.
Com a PEC do Teto, a destruição do pleno emprego, a implosão da CLT e o desmonte estatal que alienou o pré-sal e renunciou à indução do desenvolvimento pelo financiamento público, uma outra coisa que não pode mais ser chamada de nação se esboça aos nossos olhos.
O que emerge da terra arrasada não é encorajador.
No monitor das projeções nacionais avulta a imagem amarrotada de um país de vidas ordinárias, envelopado em uma democracia ornamental incapaz de oferecer respostas ao padecimentos de uma desigualdade pétrea, que choca sucessivas gerações de perdedores natos no moinho satânico da festejada meritocracia de mercado.
Um gasto público R$ 50 bilhões inferior à própria PEC do Teto em 2017, saudado como sinal de virtude fiscal pela mídia --a contrapelo do retorno da febre amarela, ilustra a escalada de uma dissociação engenhosamente planejada para elevar a temperatura do inferno tropical.
Não se trata de uma falha no timer, mas de uma deliberada opção pelo derretimento das bases de uma nação.
O ‘murchamento’ produtivo da economia corrobora e aprofunda uma transição precoce do mercado de trabalho para a supremacia de serviços (‘bicos intermitentes) de baixa qualificação e desprezíveis taxas de produtividade.
Avulta desse limbo um horizonte incapaz de gerar os excedentes necessários à universalização da cidadania e dos frutos da civilização.
O conjunto condena a democracia aqui a se acomodar à condição de um adorno retórico. Visitas ornamentais de baixo impacto às urnas, como se preconiza agora, sem que os candidatos ou os projetos se coloquem como um estorvo à supremacia estrutural dos mercados.
Os efeitos colaterais ressoam na dobra da esquina em correntezas de octanagens variadas: do ódio de classe à epidemia do binômio narcotráfico/ violência, saltando para o racismo e outras ressurgências pouco edificantes dos anos 30 e 40.
Muito sangue a jorrar para fazer disso aqui um rival à altura de Tjuana, a capital mexicana do crime, da droga e do desespero embrutecedor.
Pode ser diferente, ainda?
Pode. Ainda.
O Brasil tem trunfos com escala e densidade suficientes (pré-sal, mercado interno, agricultura) para acionar o motor de um ciclo industrializante sintonizado às promessas de produtividade e inovação da ‘revolução 4.0’, que combina inteligência artificial, biotecnologia, informatização e robótica.
A reciclagem de seu poderoso sistema agrícola em práticas e manejo agro-sustentáveis é um filão imenso e autofinanciável; outro usina potencial de geração de tecnologia e inovação reside na transição para uma matriz energética verde, engatada nos recursos intrínsecos à exploração sofisticada da cadeia do pré-sal.
Vale lembrar: o Fundo Soberano de petróleo da Noruega, criado com recursos da exploração estatal das reservas desde os anos 90 –muito semelhante ao que se fez no governo Lula e está sendo desmontado - bateu em US$ 1 trilhão em 2017.
O jornal Valor lembra que equivale a um PIB do México. Uma poupança disponível para investimentos em inovação, políticas sociais, amparo à terceira idade etc. Ah, sim, a Statoil - a Petrobras norueguesa, tem usado parte do dinheiro também comprar reservas do nosso pré-sal, que o golpe vai fatiando aqui com grande apoio do jornalismo de banco.
O requisito capaz de resgatar e interligar esse potencial a um novo ciclo de desenvolvimento depende de a sociedade assumir o comando do seu destino.
As portas que se fecham ainda podem ser reabertas pela força organizada dos interesses mantidos secularmente na soleira, do lado de fora da nação.
Sim, não é fácil saltar do arrabalde ideológico no qual a mídia confinou a autoestima nacional para uma aspiração norueguesa de futuro.
Mas a tensão intuitiva entre o país que somos e o Brasil que poderíamos ser retém uma energia transformadora quase incontrolável, como dizia o grande Celso Furtado.
A sofreguidão conservadora em dar um destino final a Lula, sem que ele se torne um Mandela a ecoar esperança da prisão, reflete a consciência sobressaltada diante das frestas que persistem.
Ainda.
Mais que prender - é preciso calar a voz rouca e tudo o que ela simboliza no imaginário dos deserdados.
Lula não é apenas um líder de carne e osso --com todas as virtudes e as fraquezas da carne e do osso.
Voluntariamente ou não, ele se tornou mais que isso.
Sua figura condensa um método pacífico de luta pelo desenvolvimento, mas que empurrou os limites da negociação até o ponto em que se tornou necessário erguer linhas de passagem para um outro estirão, onde a busca da justiça social convoca a democracia participativa a entrar no jogo.
Deliberadamente ou não, o ex-líder metalúrgico de indiscutível pendor para a luta incremental, empurrou a fronteira do conflito de classe para o salto histórico que se ressente ainda e perigosamente da organização popular que o conduza.
A blitzkrieg fulminante de um golpe que se instalou ‘sem um tiro’ - como constatou o próprio ex-presidente em autocrítica implícita à lacuna crucial de seu legado - deixa claro que o mercado decidiu dar um basta a essa mutação, subjacente ao pacto na Carta de 88.
A assepsia sanguinolenta quer revogar quatro décadas em três anos, restabelecendo a o fio da meada dos anos 90.
Trata-se de dispensar o penoso trabalho de coordenação da economia pelo Estado, ademais de abolir a intrincada mediação dos conflitos inerentes às escolhas do desenvolvimento.
O que se pleiteia - insista-se - é uma democracia de baixo impacto, uma volta à frugalidade das urnas que passam ao largo das respostas às grandes perguntas do desenvolvimento - crescimento para quem, crescimento para o quê e crescimento como.
As respostas estruturais estão inscritas no funcionamento virtuoso dos mercados desregulados.
A mãe de todas as batalhas, portanto, gira em torno dessa questão.
A questão do método.
Democracia de alto impacto com repactuação negociada do desenvolvimento pede lideranças à altura da tarefa.
Lula é a principal delas.
Democracia de baixo impacto com o leme do futuro nas mãos da ganância tóxica requer um golpe.
E ‘gestores’ assemelhados - uma lista cinzenta que FH quer colorir com Huck.
As duas lógicas podem injetar coerência macroeconômica à travessia brasileira do século XXI
Depende de onde se quer chegar.
A correlação de forças definirá o caminho a seguir.
É essa incógnita - cercada dos riscos de um salto de participação popular - que o golpe veio abortar.
O que se proclama agora é que não basta interromper o avanço.
É imperativo corroer o legado.
Ou seja, reduzir o ‘custo Brasil’. É assim que o jornalismo de banco chama a Carta de 88.
Corrigir o voluntarismo lulopopulista, preferem os liberais elegantes de Higienópolis.
As duas versões convergem para a mesma ansiedade: dissolver a fina película de Estado social que veio honrar o espírito da Constituinte pós-ditadura - que afrontou a ventania neoliberal e produziu direitos que Ulisses Guimarães condensaria na síntese genial: ‘a lamparina dos desgraçados’.
A ‘retificação’ em curso não pode conviver com a voz rouca que teima em ser a ponte capaz de avivar a lamparina do passado às possibilidades de um futuro divergente, socialmente mais promissor.
Mais que prender, silenciar Lula é uma necessidade diretamente proporcional a sua crescente aderência às expectativas e requisitos dessa travessia.
O temor de que ele possa romper de novo o dique caduco da história - como no final da ditadura - tremula nas narinas conservadoras.
Não precisa ser candidato para isso.
A campanha eleitoral é uma ferramenta importante mas não esgota a empreitada de cenários nos quais ele voltou a transitar em caravanas e com a desenvoltura de um discurso em ponto de mutação.
Definitivamente, se o objetivo é aprofundar a aderência entre crescimento e cidadania, a democracia brasileira não pode mais se resumir a uma visitação esporádica às urnas, tem dito a voz rouca.
Por trás da metáfora ruge a esfinge.
Como colar as trincas de uma economia na qual a soma das partes já não cabe na moldura de um crescimento que liberou potencialidades e demandas superiores à sua capacidade de resposta?
Repactuando democraticamente as linhas de passagem da transição.
Inclua- se aí metas, prazos, ganhos, concessões e salvaguardas subjacentes a qualquer travessia histórica negociada –mas agora a partir de uma base de força organizada.
Método e meta se fundem assim nas perguntas e respostas a serem escrutinadas.
Salto participativo ou arrocho bruto.
Essa é a fresta exposta, ainda.
A novidade, decisiva novidade, repita-se, é que a voz rouca se fez portadora dessa notícia.
Daí porque a sofreguidão para enterrá-la no próprio silêncio só é menor que o clamor para que não se renda.
Fale, Lula, fale.
Preso ou não.
Fale sem parar.
Fale, Lula, fale; há um grito de resposta engasgado no ar do Brasil.
Ele pode ecoar a qualquer momento.
O enredo dos filmes policiais ensina que matar é fácil, o problema dos assassinos é o que fazer com o cadáver.
Como destruir as pistas?
Como dissimular a cena do crime de modo a fundir, por exemplo, vítima e algoz num mesmo corpo e desautorizar assim suspeitas inconvenientes?
Como tornar isso crível aos olhos de uma atávica desconfiança popular, essa que no Brasil, com elevada porcentagem de acerto, considera que Getúlio foi empurrado à morte, Juscelino sofreu acidente criminoso e Tancredo teve fim suspeito.
Lula é o quase-morto da lista.
Que fazer com o quase-cadáver agora que o STJ negou-lhe um habeas corpus preventivo?
Enterra-lo vivo no próprio silêncio, num exílio domesticado em São Bernardo, tão longe das ruas, praças e palanques quanto se fosse em Marte, parece ser a repaginação do crime mais conveniente à aliança da mídia com a escória, o dinheiro e o judiciário.
Atribuir ao pescoço a morte do enforcado é tudo o que se quer com essa eutanásia de rendição obsequiosa.
O silêncio da voz rouca que o país conhece tão bem quanto a dos seus cantores mais consagrados seria música nos ouvidos de quem deseja apagar da memória uma referência tão ou mais incômoda que a de Getúlio, que mesmo vergastado há mais de sessenta anos ainda lateja no imaginário nacional como o pai dos pobres
Com Lula o envolvimento é mais dinâmico.
Antes de pai, Lula é o companheiro de uma travessia inconclusa que reúne 34 milhões de egressos da miséria em seus dois governos e no de Dilma, bem como 22 milhões que ‘ficharam’ a carteira ao longo do percurso, ademais das famílias pobres acudidas pela queda de quase 50% na mortalidade infantil, espetaculares 80% de reversão nos indicadores de desnutrição etc.
Enterrar tudo isso é obra ciclópica impensável sem o suporte de um jornalismo motivacional que cuide de limpar e justificar o sangue esguichado profusamente das entranhas do país.
O incansável pano de chão do terrorismo fiscal, os sucessivos disparos anunciando o alvorecer de uma nova era de confiança dos mercados o refletem o labor diuturno nas redações do dispositivo midiático.
Com resultados controversos, diga-se.
Conforme mostra pesquisa do blog ‘360º’, os principais veículos impressos do país diminuirma sua circulação em 520 mil exemplares no ciclo golpista, de 2015 a 2017. Na versão digital, o crescimento líquido sob o regime de exceção foi inferior a 32 mil assinantes.
Não por acaso.
Em três anos de labor golpista o Brasil já é um outro país.
Com a PEC do Teto, a destruição do pleno emprego, a implosão da CLT e o desmonte estatal que alienou o pré-sal e renunciou à indução do desenvolvimento pelo financiamento público, uma outra coisa que não pode mais ser chamada de nação se esboça aos nossos olhos.
O que emerge da terra arrasada não é encorajador.
No monitor das projeções nacionais avulta a imagem amarrotada de um país de vidas ordinárias, envelopado em uma democracia ornamental incapaz de oferecer respostas ao padecimentos de uma desigualdade pétrea, que choca sucessivas gerações de perdedores natos no moinho satânico da festejada meritocracia de mercado.
Um gasto público R$ 50 bilhões inferior à própria PEC do Teto em 2017, saudado como sinal de virtude fiscal pela mídia --a contrapelo do retorno da febre amarela, ilustra a escalada de uma dissociação engenhosamente planejada para elevar a temperatura do inferno tropical.
Não se trata de uma falha no timer, mas de uma deliberada opção pelo derretimento das bases de uma nação.
O ‘murchamento’ produtivo da economia corrobora e aprofunda uma transição precoce do mercado de trabalho para a supremacia de serviços (‘bicos intermitentes) de baixa qualificação e desprezíveis taxas de produtividade.
Avulta desse limbo um horizonte incapaz de gerar os excedentes necessários à universalização da cidadania e dos frutos da civilização.
O conjunto condena a democracia aqui a se acomodar à condição de um adorno retórico. Visitas ornamentais de baixo impacto às urnas, como se preconiza agora, sem que os candidatos ou os projetos se coloquem como um estorvo à supremacia estrutural dos mercados.
Os efeitos colaterais ressoam na dobra da esquina em correntezas de octanagens variadas: do ódio de classe à epidemia do binômio narcotráfico/ violência, saltando para o racismo e outras ressurgências pouco edificantes dos anos 30 e 40.
Muito sangue a jorrar para fazer disso aqui um rival à altura de Tjuana, a capital mexicana do crime, da droga e do desespero embrutecedor.
Pode ser diferente, ainda?
Pode. Ainda.
O Brasil tem trunfos com escala e densidade suficientes (pré-sal, mercado interno, agricultura) para acionar o motor de um ciclo industrializante sintonizado às promessas de produtividade e inovação da ‘revolução 4.0’, que combina inteligência artificial, biotecnologia, informatização e robótica.
A reciclagem de seu poderoso sistema agrícola em práticas e manejo agro-sustentáveis é um filão imenso e autofinanciável; outro usina potencial de geração de tecnologia e inovação reside na transição para uma matriz energética verde, engatada nos recursos intrínsecos à exploração sofisticada da cadeia do pré-sal.
Vale lembrar: o Fundo Soberano de petróleo da Noruega, criado com recursos da exploração estatal das reservas desde os anos 90 –muito semelhante ao que se fez no governo Lula e está sendo desmontado - bateu em US$ 1 trilhão em 2017.
O jornal Valor lembra que equivale a um PIB do México. Uma poupança disponível para investimentos em inovação, políticas sociais, amparo à terceira idade etc. Ah, sim, a Statoil - a Petrobras norueguesa, tem usado parte do dinheiro também comprar reservas do nosso pré-sal, que o golpe vai fatiando aqui com grande apoio do jornalismo de banco.
O requisito capaz de resgatar e interligar esse potencial a um novo ciclo de desenvolvimento depende de a sociedade assumir o comando do seu destino.
As portas que se fecham ainda podem ser reabertas pela força organizada dos interesses mantidos secularmente na soleira, do lado de fora da nação.
Sim, não é fácil saltar do arrabalde ideológico no qual a mídia confinou a autoestima nacional para uma aspiração norueguesa de futuro.
Mas a tensão intuitiva entre o país que somos e o Brasil que poderíamos ser retém uma energia transformadora quase incontrolável, como dizia o grande Celso Furtado.
A sofreguidão conservadora em dar um destino final a Lula, sem que ele se torne um Mandela a ecoar esperança da prisão, reflete a consciência sobressaltada diante das frestas que persistem.
Ainda.
Mais que prender - é preciso calar a voz rouca e tudo o que ela simboliza no imaginário dos deserdados.
Lula não é apenas um líder de carne e osso --com todas as virtudes e as fraquezas da carne e do osso.
Voluntariamente ou não, ele se tornou mais que isso.
Sua figura condensa um método pacífico de luta pelo desenvolvimento, mas que empurrou os limites da negociação até o ponto em que se tornou necessário erguer linhas de passagem para um outro estirão, onde a busca da justiça social convoca a democracia participativa a entrar no jogo.
Deliberadamente ou não, o ex-líder metalúrgico de indiscutível pendor para a luta incremental, empurrou a fronteira do conflito de classe para o salto histórico que se ressente ainda e perigosamente da organização popular que o conduza.
A blitzkrieg fulminante de um golpe que se instalou ‘sem um tiro’ - como constatou o próprio ex-presidente em autocrítica implícita à lacuna crucial de seu legado - deixa claro que o mercado decidiu dar um basta a essa mutação, subjacente ao pacto na Carta de 88.
A assepsia sanguinolenta quer revogar quatro décadas em três anos, restabelecendo a o fio da meada dos anos 90.
Trata-se de dispensar o penoso trabalho de coordenação da economia pelo Estado, ademais de abolir a intrincada mediação dos conflitos inerentes às escolhas do desenvolvimento.
O que se pleiteia - insista-se - é uma democracia de baixo impacto, uma volta à frugalidade das urnas que passam ao largo das respostas às grandes perguntas do desenvolvimento - crescimento para quem, crescimento para o quê e crescimento como.
As respostas estruturais estão inscritas no funcionamento virtuoso dos mercados desregulados.
A mãe de todas as batalhas, portanto, gira em torno dessa questão.
A questão do método.
Democracia de alto impacto com repactuação negociada do desenvolvimento pede lideranças à altura da tarefa.
Lula é a principal delas.
Democracia de baixo impacto com o leme do futuro nas mãos da ganância tóxica requer um golpe.
E ‘gestores’ assemelhados - uma lista cinzenta que FH quer colorir com Huck.
As duas lógicas podem injetar coerência macroeconômica à travessia brasileira do século XXI
Depende de onde se quer chegar.
A correlação de forças definirá o caminho a seguir.
É essa incógnita - cercada dos riscos de um salto de participação popular - que o golpe veio abortar.
O que se proclama agora é que não basta interromper o avanço.
É imperativo corroer o legado.
Ou seja, reduzir o ‘custo Brasil’. É assim que o jornalismo de banco chama a Carta de 88.
Corrigir o voluntarismo lulopopulista, preferem os liberais elegantes de Higienópolis.
As duas versões convergem para a mesma ansiedade: dissolver a fina película de Estado social que veio honrar o espírito da Constituinte pós-ditadura - que afrontou a ventania neoliberal e produziu direitos que Ulisses Guimarães condensaria na síntese genial: ‘a lamparina dos desgraçados’.
A ‘retificação’ em curso não pode conviver com a voz rouca que teima em ser a ponte capaz de avivar a lamparina do passado às possibilidades de um futuro divergente, socialmente mais promissor.
Mais que prender, silenciar Lula é uma necessidade diretamente proporcional a sua crescente aderência às expectativas e requisitos dessa travessia.
O temor de que ele possa romper de novo o dique caduco da história - como no final da ditadura - tremula nas narinas conservadoras.
Não precisa ser candidato para isso.
A campanha eleitoral é uma ferramenta importante mas não esgota a empreitada de cenários nos quais ele voltou a transitar em caravanas e com a desenvoltura de um discurso em ponto de mutação.
Definitivamente, se o objetivo é aprofundar a aderência entre crescimento e cidadania, a democracia brasileira não pode mais se resumir a uma visitação esporádica às urnas, tem dito a voz rouca.
Por trás da metáfora ruge a esfinge.
Como colar as trincas de uma economia na qual a soma das partes já não cabe na moldura de um crescimento que liberou potencialidades e demandas superiores à sua capacidade de resposta?
Repactuando democraticamente as linhas de passagem da transição.
Inclua- se aí metas, prazos, ganhos, concessões e salvaguardas subjacentes a qualquer travessia histórica negociada –mas agora a partir de uma base de força organizada.
Método e meta se fundem assim nas perguntas e respostas a serem escrutinadas.
Salto participativo ou arrocho bruto.
Essa é a fresta exposta, ainda.
A novidade, decisiva novidade, repita-se, é que a voz rouca se fez portadora dessa notícia.
Daí porque a sofreguidão para enterrá-la no próprio silêncio só é menor que o clamor para que não se renda.
Fale, Lula, fale.
Preso ou não.
Fale sem parar.
Fale, Lula, fale; há um grito de resposta engasgado no ar do Brasil.
Ele pode ecoar a qualquer momento.
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