A execução de Marielle Franco está provocando um terremoto político capaz de rearranjar as placas tectônicas do cenário nacional. Com efeito, a repercussão nacional e internacional do caso assumiu proporções gigantescas, que podem redundar num movimento que tenha incidência direta e decisiva na sucessão presidencial e no futuro do golpe continuado.
Em princípio, um movimento como esse tenderia a beneficiar as forças progressistas do país, aglutinando-as e fortalecendo-as. Porém, o caso pode ser usado pela direita e pelo governo golpista, com o intuito de afirmar sua autoridade contra “bandidos”, demonstrar eficiência no “combate à criminalidade”, associar tal combate à “relativização de direitos” e à supressão da democracia plena e impor, como desejável e necessária, a pauta autoritária e regressiva do golpe.
Afinal, em tempos de crise, medo e insegurança, a tentação das “soluções autoritárias” cresce exponencialmente. Nesses tempos, a nossa democracia, já muito fragilizada, pode se enfraquecer ainda mais. Querem usar o cadáver de Marielle para completar seu trabalho suo e antidemocrático.
Enquanto que, no campo progressista, já se observam tentativas de fragmentação das reações e divisão de iniciativas, a direita saiu à frente e traçou, pelo que se vê, uma estratégia clara de imposição de hegemonia e aprisionamento da narrativa. Tal estratégia parece centrada nos seguintes pontos.
I. “Despolitizar” a execução e dissociá-la do processo golpista e da intervenção militar
Não há dúvida de que a execução de Marielle, vereadora e militante de um partido socialista, combatente dos direitos humanos e contra o genocídio da população negra, não pode ser dissociada do processo golpista em curso.
Por processo golpista entenda-se não apenas a supressão da soberania popular, mas também, e sobretudo, a crescente supressão e “flexibilização” de direitos políticos, civis e sociais da população e a criminalização da pauta progressista e de seus atores políticos, associada ao grande fortalecimento do autoritarismo e ao surgimento de um nítido ethos fascista nas classes médias brasileiras.
Conforme já havia escrito, o verdadeiro assassino é aquele que criou o clima político propício a essa execução premeditada. É aquele que realiza uma absurda intervenção militar no Rio de Janeiro, a qual naturaliza a “guetificação” da população favelada e que se dedica, entre outras coisas, a identificar com fotos essa população, reproduzindo o estigma escravocrata que pesa historicamente sobre ela. É aquele que catapultou o fascismo tupiniquim a segundo favorito nas pesquisas eleitorais. É aquele que permitiu que o ódio político, social e racial se propagasse como uma peste em nossa sociedade. É aquele que vem disparando tiros no coração da nossa democracia e nos direitos humanos, desde que assumiu o poder. É aquele que, todos os dias, dispara contra a Constituição de 1988 e seu pacto democrático e social. Foi o processo golpista que chocou o “ovo da serpente” dos preconceitos e da intolerância. Foi o golpe que abriu a porteira para o fascismo brasileiro e para a crescente criminalização dos movimentos populares, dos negros, dos trabalhadores e de todos aqueles que assumem posições em favor dos direitos humanos dos excluídos.
É claro que o assassinato de lideranças populares não é novidade, especialmente no meio rural. Tampouco é novidade o genocídio contra negros e mulheres no Brasil. Mas a execução de Marielle Franco, vereadora eleita com quase 50 mil votos, figura pública muito conhecida em sua cidade, elevou essa violência a um patamar bem mais elevado e de claras implicações políticas.
O choque e a reação vêm exatamente disso. Fosse Marielle uma mulher negra anônima, sua execução apenas engordaria a macabra estatística da violência histórica de nossa sociedade escravocrata, patriarcal e excludente contra negros, mulheres e pobres em geral. Mas ela era uma grande liderança e uma parlamentar que representava dezenas de milhares de cidadãs e cidadãos do Rio de Janeiro.
A execução de uma parlamentar como Marielle dificilmente aconteceria num ambiente de normalidade democrática e desprovido do ódio político intenso cultivado pelas forças reacionárias que tomaram o poder no Brasil. Ambiente esse que, no caso do Rio de Janeiro, foi agravado pela intervenção militar eleitoreira, que criminaliza, no imaginário coletivo, toda a população favelada daquela cidade, a qual Marielle representava com muita dignidade. Nesse contexto, todo favelado é suspeito. A fronteira entre o bem e o mal fica definida pela classe, pela cor e pela geografia urbana. Marielle, como a população que ela representava, é vítima do Estado de exceção do golpe.
Tampouco se pode dissociar sua execução do papel central que ela tinha na fiscalização da intervenção militar.
Contudo, o governo e as forças da direita, midiáticas e políticas, já constroem a narrativa de que Marielle foi assassinada unicamente pela “banda podre da polícia”, transformando-a, desse modo, num espécie de aliada post-mortem da intervenção militar e das forças reacionárias e autoritárias que querem resolver o problema da violência com mais violência, medidas de exceção e a consequente criminalização das classes populares. Das forças que querem enterrar de vez a democracia do Brasil.
Nesse sentido, é nauseante ver que os grupos que promovem o processo golpista, destroem nossa democracia e agridem selvagemente os direitos da nossa população mais vulnerável se apropriaram do cadáver de Marielle para transformá-la em símbolo daquilo contra o qual ela sempre lutou. Estão com as mãos cheias de sangue, mas se comportam como Pôncio Pilatos.
II. Apresentar a intervenção militar e as medidas autoritárias e repressivas do processo golpista como um êxito na elucidação do Caso Marielle, no enfrentamento à criminalidade e na “solução” dos problemas nacionais
É vital para o processo do golpe continuado que o caso Marielle seja solucionado o mais brevemente possível e fique rigorosamente circunscrito à criminalidade comum.
Muito provavelmente, serão presos, ou eliminados, os executores imediatos de Marielle, quase que certamente ligados a setores policiais violentos e ao narcotráfico.
Numa situação ideal para as forças reacionárias, alguns “bagrinhos” serão exibidos, com grande fanfarra midiática, como troféus a simbolizar e eficiência da operação e o êxito da intervenção militar ordenada pelo governo do golpe.
Nesse caso, o grande troféu será Marielle, cinicamente “redimida” pelo autoritarismo e a violência que massacram a população que ela defendia e da qual ela fazia parte.
Dessa forma, a intervenção militar e o governo do golpe surgirão, no imaginário coletivo, como instâncias eficientes no combate ao medo, à insegurança e à criminalidade. E o autoritarismo e a supressão de direitos desencadeados pelo processo golpista serão entendidos, subliminarmente, como estratégias válidas e comprovadas de enfrentamento aos problemas da nação.
Enfim, tentarão fazer do limão uma limonada.
III. Associar, ainda que de forma indireta, o crime às políticas defendidas pelas forças progressistas e aos seus governos
Nesse processo de fazer do limão uma limonada, é provável que as forças que defendem o processo golpista e sua agenda regressiva tentem fazer uma associação entre esse crime específico e a criminalidade de um modo geral às políticas progressistas, especialmente à relativa à defesa dos direitos humanos, que foram implantadas em governos anteriores, notadamente os do PT.
Tal associação, que já foi explicitada até em filmes de grande êxito, como “Tropa de Elite”, pode voltar à tona.
No nível pessoal, a extrema direita já começou a fazer tal vinculação, associando a execução de Marielle ao seu suposto vínculo com associações criminosas. Uma desembargadora (!) do Rio e Janeiro se encarregou de divulgar a versão de que Marielle foi executada por “descumprir acordos assumidos com o Comando Vermelho”. No mesmo diapasão francamente fascista e desumano, divulgam, em esgotos da internet, que ela teria sido casada com Marcinho VP etc. Nossos conservadores não têm limites morais. Matam suas vítimas quantas vezes forem necessárias. Física e simbolicamente.
No campo da narrativa oficial e midiática, essa associação deverá ser feita de modo mais sutil e, por isso mesmo, mais eficiente. O campo é fértil. A ideia de que as forças que defendem direitos humanos e políticas progressistas de um modo geral defendem e estimulam a criminalidade, sempre associada à pobreza e à negritude nos porões sinápticos das nossas oligarquias e classes médias, é bastante difundida e só precisa ser reforçada, nesse caso específico. É senso comum imbecilizado que só precisa ser lembrado.
Bastaria investir em discursos que reforcem essa associação distorcida entre esquerda, pobreza e direitos humanos, de um lado, com corrupção e criminalidade, de outro. Não se surpreendam caso Marielle seja apresentada como vítima de suas próprias escolhas políticas “equivocadas” e de pessoas que ela defendia.
IV. Dissociar as pautas identitárias da luta de classes
Desde o início da hegemonia ideológica do neoliberalismo que essa dissociação vem sendo promovida com bastante êxito, especialmente em países como os EUA.
Assim, lutas que nasceram ou se fortaleceram no campo socialista e anticapitalista, como a das mulheres e dos negros, por exemplo, passaram, em boa parte, a conviver pacificamente com as teses neoliberais. Em alguns casos, passou a se associar os avanços nessas lutas ao contexto democrático “só possível em países capitalistas e liberais”. Isso levou, conjuntamente com outros fatores, a um enfraquecimento e fragmentação monumentais das esquerdas em vários países desenvolvidos.
Bernie Sanders, que tentou unir a esquerda norte-americana com uma plataforma explicitamente socialista, foi, em alguma medida, vítima dessa dissociação conservadora. Entre as mulheres democratas, Sanders conseguiu apoio de somente 37%, ao passo que a conservadora Hillary conseguiu o apoio de 61%. Sanders também teve dificuldades em construir pontes com alguns setores dos movimentos negros, que se negaram, inclusive, a deixaram-no falar em seus eventos.
Os EUA, em sua guerra assimétrica pelo mundo, tentam promover ativamente tal dissociação e convencer as populações que, na realidade, as lutas identitárias podem florescer mais em contextos “democráticos” vinculados ao liberalismo econômico e ao capitalismo. As revoluções coloridas que promovem pelo mundo são justificadas, em boa medida, como possibilidade de avanços nas lutas das mulheres, gays e outras minorias.
A execução de Marielle, mulher negra homossexual, poderia ser usada para se inserir uma cunha na esquerda brasileira, separando as pautas identitárias da luta contra o capital e a luta de seu partido da de outros partidos que lutam contra agenda golpista. Evidentemente, o sonho da direta golpista é conseguir fragmentar a luta contra sua agenda regressiva e antidemocrática. Para eles, nada melhor que uma esquerda minoritária, fragmentada e de pouco apelo para os setores populares e suas necessidades. Uma “nova” rede alienada de pautas identitárias, separada do campo popular.
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Se estas estratégias prevalecerem, o sacrifício de Marielle terá sido em vão. Ela será assassinada mais de uma vez.
A direita quer se apropriar do cadáver de Marielle para sumir com ele e com o que ele representa. Mas esse cadáver tem de permanecer simbolicamente insepulto para que sua memória subversiva assombre as consciências de todos até que não haja mais “marielles” mortas. Só então Marielle descansará.
Até lá, Marielle presente!
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