Por T. Rivers, no site Outras Palavras:
Esses investimentos parecem louváveis. Quem poderia se opor a melhorar a segurança alimentar da zona rural de Ruanda ou à construção de usinas hidrelétricas na região Kivu do Congo, onde a infraestrutura básica é limitada e somente cerca de 3% da população têm eletricidade? Que outra forma de apoiar a região seria melhor do que financiar usinas de energia e evitar que as pessoas derrubem árvores para produzir carvão vegetal?
Para responder essas perguntas, primeiro devemos perguntar: quem é exatamente Howard Buffett?
A filantropia capitalista e seus pontos de insatisfação
Howard Buffett, assim como Bill Gates, pertence a um clube exclusivo de “filantropos capitalistas”, que investem suas riquezas na solução dos principais problemas do mundo em setores como saúde e agricultura. A declaração de missão da Fundação Howard Buffett explica que seus investimentos “catalisam mudanças transformadoras, particularmente para as populações mais empobrecidas e marginalizadas do mundo”.
Embora os filantropos digam que estão ajudando os impotentes, Jens Martens [diretor-gerente do Global Policy Forum] e Karoline Seitz documentaram como as doações à caridade beneficiam também os ricos. Executivos abastados criaram as primeiras fundações americanas no início do século XX para se proteger dos impostos, construir seu prestígio e ganhar espaço nos assuntos globais. Desde então, passaram a ocupar uma posição cada vez mais dominante no desenvolvimento econômico, influenciando governos e organizações internacionais.
Os filantropos capitalistas operam no nexo entre caridade, capitalismo e desenvolvimento. Como escreve Behrooz Morvaridi, são “comprometidos política e ideologicamente com uma perspectiva de mercado”. Ao investir vastas quantias na solução de problemas históricos complexos, expandindo o setor privado, e em correções técnicas, reforçam a ideia de que o capitalismo não é a causa e sim a solução para os dramas do mundo. Tomando as palavras do historiador Mikkel Thorup, a filantropia capitalista obscurece o conflito entre ricos e pobres, afirmando que, na verdade, “os ricos são os melhores e, possivelmente, os únicos amigos dos pobres”.
Entretanto, os problemas que os filantropos capitalistas alegam estar resolvendo têm raízes no mesmo sistema econômico que permite a geração de tanta riqueza. Martens e Seitz mostram que as doações à caridade representam “o outro lado da moeda da crescente desigualdade entre ricos e pobres”: desvelam uma correlação direta entre “aumento da acumulação de riquezas, medidas fiscais regressivas e financiamento para atividades filantrópicas”.
No livro Não basta dizer não, Naomi Klein escreve que, ao longo dos últimos 20 anos, os liberais da elite têm “recorrido aos bilionários para resolver os problemas” anteriormente abordados “com ações coletivas e um setor público forte”. De fato, as soluções propostas pelos filantropos capitalistas em áreas como saúde, educação e agricultura corroem os gastos do setor público e desviam o olhar para longe das causas estruturais da pobreza. Na agricultura, uma das barreiras estruturais são os acordos de livre comércio, que eliminam as tarifas de importação e permitem que os países ricos comprem produtos com baixo custo, assim como a corrida global por terras agrícolas, que, em 2016, traduziu-se em quase quinhentos acordos, afetando trinta milhões de hectares de terra.
Buffett criticou a imposição do modelo norte-americano de agricultura industrial na África com o respaldo de outros filantropos, como Bill Gates. No entanto, seus investimentos no leste do Congo e em Ruanda foram pensados para dar suporte a sistemas orientados ao mercado. Ele colaborou com o Partners for Seed in Africa (PASA) e com o Program for Africa’s Seed Systems (PASS), que apoiam as empresas privadas que vendem sementes híbridas e fertilizantes a agricultores, um processo que já foi criticado por enfraquecer as práticas tradicionais dos agricultores de guardar, compartilhar e trocar sementes, promovendo assim a biodiversidade. Ambos os programas são parte da controversa Aliança pela Revolução Verde na África, criticada por pequenos produtores e criadores de gado de diferentes países do continente por promover o grande negócio e “usar a propriedade intelectual para estabelecer o controle corporativo das sementes”.
Junto com Gates, Buffett investiu US$ 47 milhões em um projeto em parceria com a Monsanto para desenvolver variedades de milho mais eficientes em água para pequenos agricultores. Os críticos argumentam que a agrogigante está tentando passar a posse da “criação de milho, produção de sementes e comercialização… para o setor privado”, manipulando assim “os pequenos produtores para que adotem variedades de milho híbrido e seus fertilizantes sintéticos e pesticidas correspondentes”, beneficiando as empresas agroquímicas e de sementes.
Sem levar em conta a ironia de ter uma pessoa que atuou no conselho administrativo da Coca-Cola (que financiou pesquisas para mascarar seus perigosos efeitos para a saúde) decidindo como os agricultores africanos devem produzir alimentos, vale lembrar que Buffett também atuou no conselho administrativo da gigante alimentícia Conagra Foods, que já enfrentou acusações de violação de códigos trabalhistas e ambientais.
A preservação é a outra principal prioridade de Buffett. Alguns descreveram o Parque Nacional de Virunga – queridinho da mídia que mantém uma parceria com a Fundação Buffett – como um “estado dentro de um estado”: embora proteja a biodiversidade da região da caça furtiva e da exploração de petróleo, despojou os habitantes originais da área de suas terras e seus guardas paramilitares treinados teriam maltratado as comunidades indígenas nos arredores do parque.
A tão falada usina hidrelétrica do parque também tem gerado controvérsias significativas; alguns se queixam de que o preço da eletricidade vinda da usina aumentou absurdamente de US$5 a US$50 para uso doméstico básico. Tais alegações foram negadas pelo Save Virunga, grupo que defende o parque.
Buffett também financiou negociações de paz entre o grupo militar rebelde M23 e o governo congolês em Uganda – um nível de intromissão que revela quanta influência os filantropos exercem nas resoluções políticas. Quando um relatório do Grupo de Especialistas da ONU revelou que o governo de Ruanda estava apoiando o M23, Buffett argumentou contra a suspensão de sua ajuda ao país. Apesar de se descrever como uma “entidade apolítica”, sua fundação publicou um relatório que colocava em dúvida as conclusões do Grupo de Especialistas e questionava sua credibilidade.
David Rieff ressalta como o projeto filantrocapitalista é “irredutivelmente não democrático”, se não “antidemocrático”. Em sua análise sobre Bill e Melinda Gates, ele nota que não há controle sobre o que podem fazer, a não ser “seus próprios recursos e desejos”. Joanne Barkan destaca os problemas das fundações filantrópicas privadas: “elas intervêm na vida pública mas não se responsabilizam pelo público; são governadas de forma privada, porém subsidiadas publicamente pela isenção fiscal” e “reforçam o problema da plutocracia – o exercício do poder derivado da riqueza”.
O fato de que Howard Buffett possa investir tão livremente no Congo é produto do passado colonial devastador do país, assim como de sua atual subjugação ao sistema neoliberal. A economia do Congo foi assolada por 32 anos de cleptocracia de Mobutu (apoiada pelo ocidente), políticas de ajustes estruturais impostas pelo Banco Mundial, extrativismo praticado por empresas mineradoras transnacionais e pela elite política congolesa e uma guerra que tirou a vida de milhões de pessoas.
Buffett argumenta que seus investimentos são necessários “porque ninguém mais está interessado em fazê-lo”. Entretanto, há inúmeros cidadãos congoleses que prefeririam ver o setor público fortalecido ao invés de investimentos privados em serviços. Muitos se uniram ao movimento social Lucha (“Lutte pour le changement”), que vem exigindo do governo o fornecimento de serviços básicos no leste do Congo, como água encanada e infraestrutura adequada. Em sua luta por ver as necessidades materiais do congoleses atendidas e garantir que possam participar nas decisões políticas, muitos de seus membros já sofreram repressão ou foram presos.
O poder da narrativa
A Fundação Howard G. Buffett apresenta seu trabalho cuidadosamente. Artigos da região publicados em agências de notícias respeitáveis, como Guardian e Al Jazeera, receberam o apoio da Fundação Mídia Internacional das Mulheres (IWMF, em inglês), que, em troca, recebeu fundos de Buffett. Sua fundação contribui diretamente com a Iniciativa de Reportagem dos Grandes Lagos Africanos da organização, que apoia as jornalistas que trabalham no Congo, Sudão do Sul, Ruanda, Tanzânia, Uganda e República Centro-Africana em assuntos relacionados a “empoderamento, democracia, segurança alimentar e preservação”.
Este parece ser um projeto muito necessário: em um momento em que os meios de comunicação enfrentam déficits orçamentários cada vez maiores, a IWMF concede bolsas generosas a jornalistas sem dinheiro. Eu mesma sou grata pelo apoio que recebi do programa Grandes Lagos Africanos para cobrir o leste do Congo, porém me senti desconfortável ao tomar conhecimento de quem financia a organização.
A IWMF ressalta que não influencia as reportagens de suas bolsistas; em uma entrevista, disseram que acham “inaceitável que um financiador influencie o conteúdo editorial das reportagens que facilitam”. Entretanto, suas áreas de foco preferenciais, particularmente segurança alimentar e preservação, são escolhidas em parceira com a Fundação Howard G. Buffett.
Ironicamente, o investimento de Buffett na IWMF existe paralelamente a seu apoio à ditadura que dizimou a imprensa local. Conforme documentado por Anjan Sundaram em Bad News, o presidente de Ruanda, Paul Kagame, matou, torturou, exilou e prendeu jornalistas em todo o país. O Comitê para a Proteção dos Jornalistas registra que 17 profissionais foram mortos em Ruanda desde 1992. Ainda assim, Buffett afirmou que o país é “o mais progressista do continente” e, como muitos doadores ocidentais, mantém uma relação próxima com seu líder.
Até o momento, nenhum dos artigos da IWMF publicados diretamente de Ruanda oferecem uma perspectiva crítica acerca do regime Kagame. Jennifer Hyman, a diretora de comunicações da organização, afirmou que seu apoio a jornalistas estrangeiros trabalhando em Ruanda não foi contraditório, considerando o mandato da organização de promover a liberdade de imprensa, e que a organização conduz treinamento para os jornalistas locais nos países onde trabalham. Ainda assim, embora a organização tenha condenado abertamente o tratamento dado a jornalistas na Colômbia, Bahrein e Azerbaijão, Hyman não foi capaz de afirmar a posição da IWMF em relação ao tratamento de Ruanda a seus próprios jornalistas.
Um olhar mais atento aos financiadores da IWMF oferece mais explicações. Em seu website, entre os doadores de 2013 estão incluídas empresas multinacionais como a gigante farmacêutica Pfizer, que enfrenta processos trabalhistas, de direitos humanos e de crime ambiental, incluindo o uso de crianças nigerianas para testar um medicamento para meningite que causou a mortes de sete; Walmart – conhecido por suas práticas trabalhistas de exploração – também fez uma contribuição, assim como a Dole Food Commpany, acusada de impor condições desumanas de trabalho e expor trabalhadores rurais nicaraguenses a um pesticida proibido; as gigantes do petróleo Occidental Petroleum e Chevron, além da filha de Donald Trump, Ivanka, também aparecem na lista.
A IWMF esclareceu que nessa lista não estão os principais doadores da organização, exceto por Chevron, Bank of America e a Fundação Buffett. Em resposta a perguntas sobre a aparente contradição em aceitar o apoio dessas entidades enquanto enfatiza questões relativas a empoderamento e democracia na região dos Grandes Lagos, Hyman disse que a missão da organização é “liberar o potencial das jornalistas como defensoras da liberdade de imprensa… aceitamos o apoio de corporações, fundações e indivíduos que acreditam nessa missão”.
Nas palavras de Morvaridi, as organizações, incluindo a mídia, promovem as prioridades dos “filantropos capitalistas de elite” e, portanto, “contribuem para a construção da agenda política apoiada por eles”. A IWMF conseguiu remodelar as narrativas da mídia convencional na região dos Grandes Lagos, diversificando a gama de histórias que emergem dessa área e influenciando a opinião internacional. Apesar disso, em parceria com a Fundação Howard G. Buffett, também legitimou as atividades de Buffett e seu apoio ao governo de Ruanda.
Revelações recentes dos Paradise Papers demonstram até que ponto vastas quantias de riqueza estão sendo desviadas de países como o Congo. Cabe aos jornalistas questionar o dinheiro que entra no país vindo da classe bilionária filantrocapitalista, de homens como Howard Buffett, cuja visão de desenvolvimento regional – privatização como caminho para o crescimento – enfraquece a luta contínua dos congoleses comuns para moldar seu próprio futuro.
Filantropos como Howard Buffett são os queridinhos dos jornalistas e do universo das ONG – mas será que estão mesmo ajudando a África?
Em 2015, em uma viagem a trabalho com a Fundação Mídia Internacional das Mulheres (IWMF, em inglês) na República Democrática do Congo, um jornalista local me disse: “é difícil ir a qualquer lugar no leste deste país sem dar de cara com um projeto de Howard Buffett”.
De fato, tendo investido numa gama de iniciativas, entre elas usinas de energia hidrelétrica, desenvolvimento de rodovias e ecoturismo, Howard Buffett está consideravelmente envolvido com o leste do Congo. O fotógrafo, agricultor, xerife, ex-diretor da Coca-Cola Company e filho do terceiro homem mais rico do mundo já despejou milhões na região.
O projeto hidrelétrico foi a primeira fase de um programa de investimentos elaborado em conjunto pela autoridade congolesa responsável por parques nacionais (ICCN) e a Fundação Virunga, uma instituição de caridade britânica. Em 2015, Buffett teria prometido mais US$39 milhões para mais duas usinas de energia e a Fundação Virunga planeja financiar mais usinas, hotéis e projetos de infraestrutura no entorno do parque ao longo dos próximos anos. Numa entrevista à Reuters, o diretor do parque, Emmanuel de Merode, afirmou que essas iniciativas, especialmente as usinas de energia, criarão oportunidades de emprego para as comunidades vizinhas.
E os investimentos de Buffett não param por aí: em 2015, sua fundação alegou estar fazendo uma injeção em toda a fronteira de Ruanda de US$500 milhões ao longo de dez anos para “transformar” a agricultura do país “em um setor mais produtivo, de alto valor, orientado ao mercado”. Até agora, a fundação se concentrou em projetos de segurança alimentar, com 67,5% das contribuições de 2015 dirigidos ao financiamento desse setor.
Em 2015, em uma viagem a trabalho com a Fundação Mídia Internacional das Mulheres (IWMF, em inglês) na República Democrática do Congo, um jornalista local me disse: “é difícil ir a qualquer lugar no leste deste país sem dar de cara com um projeto de Howard Buffett”.
De fato, tendo investido numa gama de iniciativas, entre elas usinas de energia hidrelétrica, desenvolvimento de rodovias e ecoturismo, Howard Buffett está consideravelmente envolvido com o leste do Congo. O fotógrafo, agricultor, xerife, ex-diretor da Coca-Cola Company e filho do terceiro homem mais rico do mundo já despejou milhões na região.
O projeto hidrelétrico foi a primeira fase de um programa de investimentos elaborado em conjunto pela autoridade congolesa responsável por parques nacionais (ICCN) e a Fundação Virunga, uma instituição de caridade britânica. Em 2015, Buffett teria prometido mais US$39 milhões para mais duas usinas de energia e a Fundação Virunga planeja financiar mais usinas, hotéis e projetos de infraestrutura no entorno do parque ao longo dos próximos anos. Numa entrevista à Reuters, o diretor do parque, Emmanuel de Merode, afirmou que essas iniciativas, especialmente as usinas de energia, criarão oportunidades de emprego para as comunidades vizinhas.
E os investimentos de Buffett não param por aí: em 2015, sua fundação alegou estar fazendo uma injeção em toda a fronteira de Ruanda de US$500 milhões ao longo de dez anos para “transformar” a agricultura do país “em um setor mais produtivo, de alto valor, orientado ao mercado”. Até agora, a fundação se concentrou em projetos de segurança alimentar, com 67,5% das contribuições de 2015 dirigidos ao financiamento desse setor.
Esses investimentos parecem louváveis. Quem poderia se opor a melhorar a segurança alimentar da zona rural de Ruanda ou à construção de usinas hidrelétricas na região Kivu do Congo, onde a infraestrutura básica é limitada e somente cerca de 3% da população têm eletricidade? Que outra forma de apoiar a região seria melhor do que financiar usinas de energia e evitar que as pessoas derrubem árvores para produzir carvão vegetal?
Para responder essas perguntas, primeiro devemos perguntar: quem é exatamente Howard Buffett?
A filantropia capitalista e seus pontos de insatisfação
Howard Buffett, assim como Bill Gates, pertence a um clube exclusivo de “filantropos capitalistas”, que investem suas riquezas na solução dos principais problemas do mundo em setores como saúde e agricultura. A declaração de missão da Fundação Howard Buffett explica que seus investimentos “catalisam mudanças transformadoras, particularmente para as populações mais empobrecidas e marginalizadas do mundo”.
Embora os filantropos digam que estão ajudando os impotentes, Jens Martens [diretor-gerente do Global Policy Forum] e Karoline Seitz documentaram como as doações à caridade beneficiam também os ricos. Executivos abastados criaram as primeiras fundações americanas no início do século XX para se proteger dos impostos, construir seu prestígio e ganhar espaço nos assuntos globais. Desde então, passaram a ocupar uma posição cada vez mais dominante no desenvolvimento econômico, influenciando governos e organizações internacionais.
Os filantropos capitalistas operam no nexo entre caridade, capitalismo e desenvolvimento. Como escreve Behrooz Morvaridi, são “comprometidos política e ideologicamente com uma perspectiva de mercado”. Ao investir vastas quantias na solução de problemas históricos complexos, expandindo o setor privado, e em correções técnicas, reforçam a ideia de que o capitalismo não é a causa e sim a solução para os dramas do mundo. Tomando as palavras do historiador Mikkel Thorup, a filantropia capitalista obscurece o conflito entre ricos e pobres, afirmando que, na verdade, “os ricos são os melhores e, possivelmente, os únicos amigos dos pobres”.
Entretanto, os problemas que os filantropos capitalistas alegam estar resolvendo têm raízes no mesmo sistema econômico que permite a geração de tanta riqueza. Martens e Seitz mostram que as doações à caridade representam “o outro lado da moeda da crescente desigualdade entre ricos e pobres”: desvelam uma correlação direta entre “aumento da acumulação de riquezas, medidas fiscais regressivas e financiamento para atividades filantrópicas”.
No livro Não basta dizer não, Naomi Klein escreve que, ao longo dos últimos 20 anos, os liberais da elite têm “recorrido aos bilionários para resolver os problemas” anteriormente abordados “com ações coletivas e um setor público forte”. De fato, as soluções propostas pelos filantropos capitalistas em áreas como saúde, educação e agricultura corroem os gastos do setor público e desviam o olhar para longe das causas estruturais da pobreza. Na agricultura, uma das barreiras estruturais são os acordos de livre comércio, que eliminam as tarifas de importação e permitem que os países ricos comprem produtos com baixo custo, assim como a corrida global por terras agrícolas, que, em 2016, traduziu-se em quase quinhentos acordos, afetando trinta milhões de hectares de terra.
Buffett criticou a imposição do modelo norte-americano de agricultura industrial na África com o respaldo de outros filantropos, como Bill Gates. No entanto, seus investimentos no leste do Congo e em Ruanda foram pensados para dar suporte a sistemas orientados ao mercado. Ele colaborou com o Partners for Seed in Africa (PASA) e com o Program for Africa’s Seed Systems (PASS), que apoiam as empresas privadas que vendem sementes híbridas e fertilizantes a agricultores, um processo que já foi criticado por enfraquecer as práticas tradicionais dos agricultores de guardar, compartilhar e trocar sementes, promovendo assim a biodiversidade. Ambos os programas são parte da controversa Aliança pela Revolução Verde na África, criticada por pequenos produtores e criadores de gado de diferentes países do continente por promover o grande negócio e “usar a propriedade intelectual para estabelecer o controle corporativo das sementes”.
Junto com Gates, Buffett investiu US$ 47 milhões em um projeto em parceria com a Monsanto para desenvolver variedades de milho mais eficientes em água para pequenos agricultores. Os críticos argumentam que a agrogigante está tentando passar a posse da “criação de milho, produção de sementes e comercialização… para o setor privado”, manipulando assim “os pequenos produtores para que adotem variedades de milho híbrido e seus fertilizantes sintéticos e pesticidas correspondentes”, beneficiando as empresas agroquímicas e de sementes.
Sem levar em conta a ironia de ter uma pessoa que atuou no conselho administrativo da Coca-Cola (que financiou pesquisas para mascarar seus perigosos efeitos para a saúde) decidindo como os agricultores africanos devem produzir alimentos, vale lembrar que Buffett também atuou no conselho administrativo da gigante alimentícia Conagra Foods, que já enfrentou acusações de violação de códigos trabalhistas e ambientais.
A preservação é a outra principal prioridade de Buffett. Alguns descreveram o Parque Nacional de Virunga – queridinho da mídia que mantém uma parceria com a Fundação Buffett – como um “estado dentro de um estado”: embora proteja a biodiversidade da região da caça furtiva e da exploração de petróleo, despojou os habitantes originais da área de suas terras e seus guardas paramilitares treinados teriam maltratado as comunidades indígenas nos arredores do parque.
A tão falada usina hidrelétrica do parque também tem gerado controvérsias significativas; alguns se queixam de que o preço da eletricidade vinda da usina aumentou absurdamente de US$5 a US$50 para uso doméstico básico. Tais alegações foram negadas pelo Save Virunga, grupo que defende o parque.
Buffett também financiou negociações de paz entre o grupo militar rebelde M23 e o governo congolês em Uganda – um nível de intromissão que revela quanta influência os filantropos exercem nas resoluções políticas. Quando um relatório do Grupo de Especialistas da ONU revelou que o governo de Ruanda estava apoiando o M23, Buffett argumentou contra a suspensão de sua ajuda ao país. Apesar de se descrever como uma “entidade apolítica”, sua fundação publicou um relatório que colocava em dúvida as conclusões do Grupo de Especialistas e questionava sua credibilidade.
David Rieff ressalta como o projeto filantrocapitalista é “irredutivelmente não democrático”, se não “antidemocrático”. Em sua análise sobre Bill e Melinda Gates, ele nota que não há controle sobre o que podem fazer, a não ser “seus próprios recursos e desejos”. Joanne Barkan destaca os problemas das fundações filantrópicas privadas: “elas intervêm na vida pública mas não se responsabilizam pelo público; são governadas de forma privada, porém subsidiadas publicamente pela isenção fiscal” e “reforçam o problema da plutocracia – o exercício do poder derivado da riqueza”.
O fato de que Howard Buffett possa investir tão livremente no Congo é produto do passado colonial devastador do país, assim como de sua atual subjugação ao sistema neoliberal. A economia do Congo foi assolada por 32 anos de cleptocracia de Mobutu (apoiada pelo ocidente), políticas de ajustes estruturais impostas pelo Banco Mundial, extrativismo praticado por empresas mineradoras transnacionais e pela elite política congolesa e uma guerra que tirou a vida de milhões de pessoas.
Buffett argumenta que seus investimentos são necessários “porque ninguém mais está interessado em fazê-lo”. Entretanto, há inúmeros cidadãos congoleses que prefeririam ver o setor público fortalecido ao invés de investimentos privados em serviços. Muitos se uniram ao movimento social Lucha (“Lutte pour le changement”), que vem exigindo do governo o fornecimento de serviços básicos no leste do Congo, como água encanada e infraestrutura adequada. Em sua luta por ver as necessidades materiais do congoleses atendidas e garantir que possam participar nas decisões políticas, muitos de seus membros já sofreram repressão ou foram presos.
O poder da narrativa
A Fundação Howard G. Buffett apresenta seu trabalho cuidadosamente. Artigos da região publicados em agências de notícias respeitáveis, como Guardian e Al Jazeera, receberam o apoio da Fundação Mídia Internacional das Mulheres (IWMF, em inglês), que, em troca, recebeu fundos de Buffett. Sua fundação contribui diretamente com a Iniciativa de Reportagem dos Grandes Lagos Africanos da organização, que apoia as jornalistas que trabalham no Congo, Sudão do Sul, Ruanda, Tanzânia, Uganda e República Centro-Africana em assuntos relacionados a “empoderamento, democracia, segurança alimentar e preservação”.
Este parece ser um projeto muito necessário: em um momento em que os meios de comunicação enfrentam déficits orçamentários cada vez maiores, a IWMF concede bolsas generosas a jornalistas sem dinheiro. Eu mesma sou grata pelo apoio que recebi do programa Grandes Lagos Africanos para cobrir o leste do Congo, porém me senti desconfortável ao tomar conhecimento de quem financia a organização.
A IWMF ressalta que não influencia as reportagens de suas bolsistas; em uma entrevista, disseram que acham “inaceitável que um financiador influencie o conteúdo editorial das reportagens que facilitam”. Entretanto, suas áreas de foco preferenciais, particularmente segurança alimentar e preservação, são escolhidas em parceira com a Fundação Howard G. Buffett.
Ironicamente, o investimento de Buffett na IWMF existe paralelamente a seu apoio à ditadura que dizimou a imprensa local. Conforme documentado por Anjan Sundaram em Bad News, o presidente de Ruanda, Paul Kagame, matou, torturou, exilou e prendeu jornalistas em todo o país. O Comitê para a Proteção dos Jornalistas registra que 17 profissionais foram mortos em Ruanda desde 1992. Ainda assim, Buffett afirmou que o país é “o mais progressista do continente” e, como muitos doadores ocidentais, mantém uma relação próxima com seu líder.
Até o momento, nenhum dos artigos da IWMF publicados diretamente de Ruanda oferecem uma perspectiva crítica acerca do regime Kagame. Jennifer Hyman, a diretora de comunicações da organização, afirmou que seu apoio a jornalistas estrangeiros trabalhando em Ruanda não foi contraditório, considerando o mandato da organização de promover a liberdade de imprensa, e que a organização conduz treinamento para os jornalistas locais nos países onde trabalham. Ainda assim, embora a organização tenha condenado abertamente o tratamento dado a jornalistas na Colômbia, Bahrein e Azerbaijão, Hyman não foi capaz de afirmar a posição da IWMF em relação ao tratamento de Ruanda a seus próprios jornalistas.
Um olhar mais atento aos financiadores da IWMF oferece mais explicações. Em seu website, entre os doadores de 2013 estão incluídas empresas multinacionais como a gigante farmacêutica Pfizer, que enfrenta processos trabalhistas, de direitos humanos e de crime ambiental, incluindo o uso de crianças nigerianas para testar um medicamento para meningite que causou a mortes de sete; Walmart – conhecido por suas práticas trabalhistas de exploração – também fez uma contribuição, assim como a Dole Food Commpany, acusada de impor condições desumanas de trabalho e expor trabalhadores rurais nicaraguenses a um pesticida proibido; as gigantes do petróleo Occidental Petroleum e Chevron, além da filha de Donald Trump, Ivanka, também aparecem na lista.
A IWMF esclareceu que nessa lista não estão os principais doadores da organização, exceto por Chevron, Bank of America e a Fundação Buffett. Em resposta a perguntas sobre a aparente contradição em aceitar o apoio dessas entidades enquanto enfatiza questões relativas a empoderamento e democracia na região dos Grandes Lagos, Hyman disse que a missão da organização é “liberar o potencial das jornalistas como defensoras da liberdade de imprensa… aceitamos o apoio de corporações, fundações e indivíduos que acreditam nessa missão”.
Nas palavras de Morvaridi, as organizações, incluindo a mídia, promovem as prioridades dos “filantropos capitalistas de elite” e, portanto, “contribuem para a construção da agenda política apoiada por eles”. A IWMF conseguiu remodelar as narrativas da mídia convencional na região dos Grandes Lagos, diversificando a gama de histórias que emergem dessa área e influenciando a opinião internacional. Apesar disso, em parceria com a Fundação Howard G. Buffett, também legitimou as atividades de Buffett e seu apoio ao governo de Ruanda.
Revelações recentes dos Paradise Papers demonstram até que ponto vastas quantias de riqueza estão sendo desviadas de países como o Congo. Cabe aos jornalistas questionar o dinheiro que entra no país vindo da classe bilionária filantrocapitalista, de homens como Howard Buffett, cuja visão de desenvolvimento regional – privatização como caminho para o crescimento – enfraquece a luta contínua dos congoleses comuns para moldar seu próprio futuro.
* Tradução de Camila Teicher.
isso não é filantropia, é pilantropia!
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