Por Marcello Lavenère, Roberto Batochio e Cezar Britto, no site Congresso em Foco:
Em debates filosóficos costuma-se afirmar, recorrentemente, que a história é cíclica, fazendo com que os acontecimentos se repitam ao longo da evolução de qualquer sociedade humana, ainda que modulados em versões e personagens distintos. O filósofo alemão Friedrich Hegel, que tinha perfeita compreensão desta rotina fixada pelo tempo, limita-a ao firmar que “um acontecimento histórico acontece, não uma, mas duas vezes”. O também alemão Karl Marx, ao escrever sobre “O 18 Brumário de Luis Bonaparte”, redefine o conceito de seu compatriota, agora para afirmar que as repetições ocorrem “uma vez como tragédia e outra como farsa”.
Esta introdução tem como escopo uma proposta de reflexão sobre o Decreto nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, que, determinando a “intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018” (art. 1º, caput), reintroduz no cenário político brasileiro a figura do Governador-Interventor (art. 2º) e, em consequência, priva o governador eleito das competências e atribuições institucionais contempladas no art. 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro no que se refere às ações de segurança pública (art. 3º). Com a mesma caneta intervencionista, reinsere a gestão militar em atividade que é de natureza civil por excelência (art. 2º, parágrafo único) e, como no Estado Novo e na ditadura civil-militar, subordina a política estadual ao querer absoluto do poder presidencial (art. 3º, § 1º).
Não se está a afirmar, ao menos por agora, que o Decreto nº 9.288/18 tem como finalidade reviver os tempos sombrios, que é necessário sempre nominarmos de ditadura civil/militar e foram sepultados pela Constituição Federal de 1988; tampouco que foram repristinadas as “forças ocultas” apontadas como motivadoras da obscura renúncia do presidente Jânio Quadros. Sequer se está a enunciar qualquer juízo de valor sobre a existência de similitude entre a ruptura constitucional de 1964 e a de 2016, bem assim que o Ato Institucional nº 1/64, ao suspender, parcialmente, a vigência da Constituição de 1946, serviu de inspiração à Ementa Constitucional 95/96 quando “congelou” por vinte anos, a vigência dos artigos 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108 e 109 da Constituição de 1988. Também não se está a assoalhar que o irreverente protesto da escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti decretou a vindita presidencial, da mesma forma que o histórico discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves desencadeara a superveniência do nefasto Ato Institucional nº 5/68.
Cabe-nos apenas, também e por ora, externar algumas preocupações sobre os acontecimentos que soam como já antes vividos pela cidadania brasileira e que, por isso mesmo, não merecem e não podem ser reprisados. A primeira questão decorre da manifesta inconstitucionalidade do malfadado decreto intervencionista, a saber: a) ausência de fundamentação quanto às reais motivações da precipitada intervenção (art. 93, inciso X); b) ausência de esclarecimento sobre a alteração do status da atuação do aparato militar em ações conjuntas nos moldes até então praticados, também utilizada em razão do “grave comprometimento da ordem pública” (art. 34, II); c) impossibilidade de transformar a intervenção federal em intervenção militar na gestão pública (art. 142); d) usurpação da competência executiva estadual e irregular suspensão da atividade legislativa do Estado do Rio de Janeiro (art. 144, CF, art. 145, CERJ); e) ausência de especificidade e das condições necessárias à execução da intervenção militar (art. 36, § 1º); f) ausência de prévia consulta ao Conselho da República e ao Conselho da Defesa Nacional (art. 90, inciso I e o art. 91, § 1º).
O segundo questionamento decorre da própria natureza da proposta de combate à violência pelo uso da força em indisfarçado “Estado de Guerra”, experiência reconhecidamente fracassada em todos os países que a adotaram. Não se pode esquecer, ainda, que tratar a cidadania brasileira como inimiga externa não encontra amparo nos valores republicanos adotados pela Constituição de 1988. Ainda mais quando o governo central, antes mesmo de iniciar a sua gestão militar, anuncia que pretende quebrar princípios e garantias fundamentais, a exemplo de retirar do Poder Judiciário, como estabelecido expressamente em todos os atos institucionais, a apreciação individual e prévia dos mandados judiciais constritivos. E não se pode esquecer, também, a recente declaração do interventor militar quando alude à possibilidade de prática de atos que futuramente justificariam a criação de uma nova Comissão da Verdade.
As instituições militares pertencem ao país e não a um grupo político. Desde a redemocratização, têm sido exemplares no cumprimento de seus deveres, alheias aos embates e ao varejo do jogo político-partidário. Daí a improcedência de transformá-las, em seu conjunto, em instrumento de um jogo eleitoral sem regras definidas e com resultados imprevisíveis para a preservação do próprio Estado Democrático de Direito. Neste momento em que o Estado policialesco ganha força, criminalizando a política e o direito de defesa, necessário se faz o alerta para os riscos decorrentes de um decreto presidencial que flerta com o autoritarismo.
O Brasil precisa livrar-se do hábito de varrer para debaixo do tapete da História as suas abjeções. Precisa entender que um povo que não conhece o seu passado está condenado a repeti-lo. É o que ensinou a Alemanha no episódio conhecido como Historikerstreit, ao rejeitar a proposta de silêncio defendida por Ernst Nolte, Hillgruber e Sturmer, fazendo vencedora a tese de Habermas que defendia o confronto aberto com o passado. Não se sabe, em conclusão, se os acontecimentos autoritários que macularam a História do Brasil se repetirão como tragédia ou farsa, mas não podemos jamais olvidar o alerta proferido pelo irlandês Edmund Burke, que se faz oportuno e pertinente: “Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la.”
* Ex-presidentes do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
Em debates filosóficos costuma-se afirmar, recorrentemente, que a história é cíclica, fazendo com que os acontecimentos se repitam ao longo da evolução de qualquer sociedade humana, ainda que modulados em versões e personagens distintos. O filósofo alemão Friedrich Hegel, que tinha perfeita compreensão desta rotina fixada pelo tempo, limita-a ao firmar que “um acontecimento histórico acontece, não uma, mas duas vezes”. O também alemão Karl Marx, ao escrever sobre “O 18 Brumário de Luis Bonaparte”, redefine o conceito de seu compatriota, agora para afirmar que as repetições ocorrem “uma vez como tragédia e outra como farsa”.
Esta introdução tem como escopo uma proposta de reflexão sobre o Decreto nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, que, determinando a “intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018” (art. 1º, caput), reintroduz no cenário político brasileiro a figura do Governador-Interventor (art. 2º) e, em consequência, priva o governador eleito das competências e atribuições institucionais contempladas no art. 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro no que se refere às ações de segurança pública (art. 3º). Com a mesma caneta intervencionista, reinsere a gestão militar em atividade que é de natureza civil por excelência (art. 2º, parágrafo único) e, como no Estado Novo e na ditadura civil-militar, subordina a política estadual ao querer absoluto do poder presidencial (art. 3º, § 1º).
Não se está a afirmar, ao menos por agora, que o Decreto nº 9.288/18 tem como finalidade reviver os tempos sombrios, que é necessário sempre nominarmos de ditadura civil/militar e foram sepultados pela Constituição Federal de 1988; tampouco que foram repristinadas as “forças ocultas” apontadas como motivadoras da obscura renúncia do presidente Jânio Quadros. Sequer se está a enunciar qualquer juízo de valor sobre a existência de similitude entre a ruptura constitucional de 1964 e a de 2016, bem assim que o Ato Institucional nº 1/64, ao suspender, parcialmente, a vigência da Constituição de 1946, serviu de inspiração à Ementa Constitucional 95/96 quando “congelou” por vinte anos, a vigência dos artigos 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108 e 109 da Constituição de 1988. Também não se está a assoalhar que o irreverente protesto da escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti decretou a vindita presidencial, da mesma forma que o histórico discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves desencadeara a superveniência do nefasto Ato Institucional nº 5/68.
Cabe-nos apenas, também e por ora, externar algumas preocupações sobre os acontecimentos que soam como já antes vividos pela cidadania brasileira e que, por isso mesmo, não merecem e não podem ser reprisados. A primeira questão decorre da manifesta inconstitucionalidade do malfadado decreto intervencionista, a saber: a) ausência de fundamentação quanto às reais motivações da precipitada intervenção (art. 93, inciso X); b) ausência de esclarecimento sobre a alteração do status da atuação do aparato militar em ações conjuntas nos moldes até então praticados, também utilizada em razão do “grave comprometimento da ordem pública” (art. 34, II); c) impossibilidade de transformar a intervenção federal em intervenção militar na gestão pública (art. 142); d) usurpação da competência executiva estadual e irregular suspensão da atividade legislativa do Estado do Rio de Janeiro (art. 144, CF, art. 145, CERJ); e) ausência de especificidade e das condições necessárias à execução da intervenção militar (art. 36, § 1º); f) ausência de prévia consulta ao Conselho da República e ao Conselho da Defesa Nacional (art. 90, inciso I e o art. 91, § 1º).
O segundo questionamento decorre da própria natureza da proposta de combate à violência pelo uso da força em indisfarçado “Estado de Guerra”, experiência reconhecidamente fracassada em todos os países que a adotaram. Não se pode esquecer, ainda, que tratar a cidadania brasileira como inimiga externa não encontra amparo nos valores republicanos adotados pela Constituição de 1988. Ainda mais quando o governo central, antes mesmo de iniciar a sua gestão militar, anuncia que pretende quebrar princípios e garantias fundamentais, a exemplo de retirar do Poder Judiciário, como estabelecido expressamente em todos os atos institucionais, a apreciação individual e prévia dos mandados judiciais constritivos. E não se pode esquecer, também, a recente declaração do interventor militar quando alude à possibilidade de prática de atos que futuramente justificariam a criação de uma nova Comissão da Verdade.
As instituições militares pertencem ao país e não a um grupo político. Desde a redemocratização, têm sido exemplares no cumprimento de seus deveres, alheias aos embates e ao varejo do jogo político-partidário. Daí a improcedência de transformá-las, em seu conjunto, em instrumento de um jogo eleitoral sem regras definidas e com resultados imprevisíveis para a preservação do próprio Estado Democrático de Direito. Neste momento em que o Estado policialesco ganha força, criminalizando a política e o direito de defesa, necessário se faz o alerta para os riscos decorrentes de um decreto presidencial que flerta com o autoritarismo.
O Brasil precisa livrar-se do hábito de varrer para debaixo do tapete da História as suas abjeções. Precisa entender que um povo que não conhece o seu passado está condenado a repeti-lo. É o que ensinou a Alemanha no episódio conhecido como Historikerstreit, ao rejeitar a proposta de silêncio defendida por Ernst Nolte, Hillgruber e Sturmer, fazendo vencedora a tese de Habermas que defendia o confronto aberto com o passado. Não se sabe, em conclusão, se os acontecimentos autoritários que macularam a História do Brasil se repetirão como tragédia ou farsa, mas não podemos jamais olvidar o alerta proferido pelo irlandês Edmund Burke, que se faz oportuno e pertinente: “Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la.”
* Ex-presidentes do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
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