Por Mauro Lopes, em seu blog:
A democracia no Brasil entrou em colapso e estamos nos primeiros momentos de um novo regime de tipo ditatorial.
Há resistências quanto a esta assertiva.
Na direita, a rejeição é óbvia: são as forças políticas que estão demolindo a democracia e jamais admitirão isso. Como em 1964, sufocam a democracia dizendo defendê-la. Basta ver a reação dos jornais das elites em 1 de abril de 1964: “Vitorioso o movimento democrático” (manchete de O Estado de S.Paulo) e “Ressurge a democracia” (editorial de O Globo) . Agora, não é diferente, como temos assistido à farta.
No entanto, mesmo entre as forças de esquerda, há desacordo. Um sintoma do que parece ser uma miopia que acometeu amplos segmentos da esquerda foi a postura diante da intervenção federal/militar no Rio: em vez da denúncia de seu caráter autoritário, líderes e analistas políticos de esquerda dedicaram-se a especular sobre as decorrências políticas e sobretudo eleitorais do ato, acolhendo a tese de que a intervenção estaria ainda nos parâmetros de “normalidade institucional”. Da mesma forma, estes mesmos analistas anunciaram o “constrangimento” dos militares em suas novas funções, a que teriam sido praticamente “arrastados” quando o que se vê é o contrário: os generais estão à vontade e cada dia mais explicitam seu prazer pelo exercício de um poder que consideraram roubado com a redemocratização do país nos anos 1980.
O fato é que temos escorregado ladeira abaixo desde a noite da reeleição de Dilma Roussef, quando o candidato derrotado anunciou que o resultado não seria respeitado e iniciou-se a trama do golpe abertamente. Escorregamos de início lentamente, mas a velocidade aumentou de maneira alucinante nas últimas semanas. Não vivemos uma ditadura militar sanguinária como a que testemunhamos no país por longos anos desde 1964 e em quase toda a América Latina entre mais ou menos contemporaneamente. Mas isso que está aí não é mais democracia, e continua a decair.
Leia a seguir nove evidências de que a democracia brasileira não merece mais este nome. É preciso tirar as decorrências desta constatação, porque ela traz graves implicações à luta política no país –mas este não é o objetivo deste artigo.
1. Houve um golpe de Estado contra uma presidenta eleita – a falta de tropas na rua, como já ficou patente, não serve para descaracterizar o que aconteceu em 2015/16: um golpe de Estado que articulou a elite dos poderes Legislativo, Judiciário e Executivo para arrancar do poder uma presidenta eleita pelo povo. A fúria da direita e de suas mídias em relação ao uso da palavra “golpe” é a evidência cabal de fundo psicanalítico mesmo para eles tratou-se de um golpe de estado -e, por isso, é crucial riscar a palavra do mapa. O último episódio foi a tentativa autoritária e ridícula do ministro da Educação, Mendonça Filho (o Mendoncinha) de atropelar a autonomia universitária e proibir um curso da UNB sob o título O Golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil, mobilizando todo o aparato de Estado à sua disposição contra um simples professor, o cientista social Luis Felipe Miguel. Durante o regime do golpe de 1964 foi assim: ai de quem ousasse chamar a ditadura de ditadura.
2. O Poder Judiciário sublevou-se contra a Constituição e tornou-se algoz da Justiça – o Poder Judiciário é por excelência aquele dedicado à manutenção do status quo vigente nas sociedades –por isso, é tendencialmente conservador. O que cumpria ao Judiciário conservarno Brasil? O marco legal fundado no Brasil com a Constituinte de 1988. No entanto, quem deveria ser o fiador deste marco legal, em especial o Supremo Tribunal Federal, rasgou-o. O Judiciário tornou-se aríete do golpismo, estabeleceu nos últimos anos uma dinâmica de perseguição aos políticos de esquerda e proteção aos de direita (gente da convivência, intimidade e identidade com a elite do Judiciário) e um encarcerador em massa dos pobres, alçando o país à triste condição de 3ª maior população carcerária do planeta.
3. Os militares deixaram os quartéis e agora coagem o país –decretou-se –com apoio do mesmo Congresso que deu o golpe em Dilma- uma intervenção federal-militar no Rio de Janeiro. Os militares, que saíam às ruas de maneira esporádica e pontual, sem qualquer efeito positivo na segurança pública e, diga-se, ainda como forças auxiliares do poder civil, agora assumem funções de governo, em comum acordo com os golpistas encastelados no Executivo, Legislativo e Judiciário. Deixam a subalternidade para serem os protagonistas. Generais assumiram de uma penada só os cargos de general-interventor no Rio, secretário de Segurança no Estado e ministro da Defesa –um rompimento com uma das regras de ouro do regime democrático pós-1988, no qual só civis comandavam a Pasta. Os militares vieram para ficar: i) general interventor Braga Neto anunciou que o Rio é só o começo, um “laboratório para o Brasil”; ii) o comandante do Exército, general Villas Bôas, anunciou que os militares querem mãos livres para fazer o que quiserem e exigiu do governo Temer “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”; iii) em outubro passado, o mesmo Villas Bôas, em aliança com o general Sérgio Etchegoyen, chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI) obtiveram do Senado a aprovação (com votos contrários apenas do PT e Rede) de projeto de lei imediatamente sancionado por Jungmann e Temer segundo o qual os militares os militares que cometerem crimes contra civis passaram a ser julgados pelos tribunais militares, como no tempo da ditadura pós-1964; iv) finalmente, nesta quarta (28), o comandante do Exército defendeu que os militares tenham autorização para matar pessoas armadas nas ruas do Rio de Janeiro –quem definirá se os mortos de fato estavam armados ou havia apenas suspeita de que estivessem? É uma autorização para execuções sumárias, praticadas nas periferias de São Paulo pela PM e, ao longo da história, pelos “esquadrões da morte” e “justiceiros”.
O general ministro do Exército é tido como um “moderado”, zeloso cumpridor da Constituição. Mas suas atitudes e declarações recentes, como se vê, operam em sentido contrário ou indicam que ele busca de composição com os setores radicais dos militares na tentativa de manter a unidade dentro das Forças Armadas. No entanto, suas declarações passadas já deveriam ter acendido o sinal de alerta entre os democratas. Em março de 2016, quando Dilma era a presidenta, Villas Bôas insinuava a correspondentes estrangeiros a possibilidade de uma intervenção militar; em setembro último, numa entrevista à Globo, ele praticamente repetiu as palavras do general Antonio Hamilton Mourão, que por duas vezes no segundo semestre de 2017 defendeu publicamente um golpe militar. Na entrevista, Villas Bôas informou que Mourão não seria punido e que, “na iminência de um caos” a Constituição daria às Forças Armadas um “mandato” para acabar com a democracia –o que é uma assertiva que não encontra qualquer respaldo no texto constitucional. De mais a mais, é sempre conveniente relativizar as juras de amor à democracia dos militares brasileiros. É bom lembrar que o então general Humberto de Alencar Castelo Branco, nomeado por João Goulart como chefe do Estado Maior do Exército, garantiu taxativamente em fevereiro de 1964 que as Forças Armadas não golpeariam a democracia –ele foi o principal líder militar do golpe do mês seguinte.
4. Voltam os “militares linha dura” – durante o regime militar pós-1964, como os comandantes militares concentravam o poder no país, a imprensa e os estudiosos passaram a estudar as diversas facções dentro das Forças Armadas. Foi quando surgiu a expressão “militares linha dura” –ela servia para qualificar coronéis e generais que defendiam a repressão mais feroz contra a oposição e medidas de fechamento político extremo. Ícones da “linha dura” foram os generais: i) Milton Tavares de Souza que, na condição de chefe do Centro de Informações do Exército (CIE), foi o responsável pelos planos de eliminação física dos que se opunham ao regime –a partir de 1969 chefiou o Doi-CODI; e Silvio Frota, ministro do Exército que tentou um golpe dentro do golpe, em outubro de 1977. O termo “militar linha dura” foi abandonado depois da redemocratização do país e, especialmente, depois da Constituição de 1988, quando os militares recolheram-se aos quartéis.
Agora, o termo voltou. E o líder da linha dura é ninguém menos que o general “linha dura” Etchegoyen que, a partir do GSI, tornou-se o homem forte do desmantelado governo Temer e, desde o golpe, articula abertamente a retomada do poder pelos militares. O general Silva e Luna foi apresentado ao país como ministro “interino” da Defesa, mas seu nome é defendido agressivamente por Etchegoyen desde 2016 –veja aqui detalhes sobre jantar com essa agenda, em Brasília, em abril daquele ano. O general Etchegoyen é de uma estirpede militares golpistas e vinculados ao desrespeito aos direitos humanos desde o início do século XX. Seu avô, Alcides Etchegoyen, nos anos 1920 participou de uma tentativa de golpe para impedir a posse do presidente eleito Washington Luis; depois, em 1954, assinou manifesto pela derrubada de Getúlio Vargas. Seus dois filhos seguiram o mesmo caminho: Leo, pai do chefe do GSI, e Cyro, seu tio. O primeiro participou ativamente do golpe de 1964 e assessorou o presidente do período mais sanguinário da ditadura, do general Médici (1969/1974); o segundo foi auxiliar direto do general Milton Tavares. Ambos envolveram-se em violações graves aos direitos humanos e chefiaram a repressão às greves no ABC, no fim dos anos 1970. Em 2014, como general da ativa e integrante do Alto Comando do Exército, Etchegoyen assinou uma nota pública atacando a Comissão da Verdade –sem que tenha sofrido qualquer punição. Ao contrário, depois do golpe de 2015/16, foi premiado com o GSI e agora dá as cartar no governo Temer. Voltamos a ter “linha dura”, e ela quer assumir o controle integral do Exército.
O general Villas Bôas está gravemente doente, vítima de esclerose lateral amiotrófica, uma doença neurológica degenerativa. Já não consegue mais andar e apresenta problemas respiratórios que estão se agravando. Desde que apareceram os sinais mais evidentes da doença, no início de 2017, há pressão da “linha dura” pela sua substituição. Ela intensificou-se ao longo do ano, com a adesão de setores da mídia conservadores. O general passa à reserva no final de março, e os líderes da direita mais radical no Exército esfregam as mãos.
A cerimônia em que o general golpista Mourão passou à reserva, nesta quarta (28), tornou-se uma celebração festiva da “linha dura” militar. Mourão homenageou em seu discurso o coronel torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, que chefiou o Doi-CODI entre 1970 e 1974. Qualificou o “dr. Tibiriçá”, como Ustra era conhecido pelos presos torturados, de “herói” –o coronel morreu em 2015, impune.
5. As liberdades e garantias estão caindo por terra – é fato que a democracia no país, mesmo depois da Constituição de 1988, nunca se espraiou pelas periferias nem subiu nos morros, nas favelas, alagados e cortiços. Mas o que se viu no Rio de Janeiro depois da intervenção militar foi inédito: postos de controle ao estilo dos nazistas à entrada dos guetos na Alemanha e em países ocupados pelo exército de Hitler, comparados pela ONG Justiça Global às práticas do regime do apartheid na África do Sul; e mandados de busca e apreensão coletivos, a serem utilizados nas favelas e periferias cariocas da Baixada Fluminense. Eles são inconstitucionais, segundo nota de quatro procuradores federais: “Mandados em branco, conferindo salvo conduto para prender, apreender e ingressar em domicílios, atentam contra inúmeras garantias individuais, tais como a proibição de violação da intimidade, do domicílio”.
Os principais líderes do governo Temer, a começar por ele próprio, têm estimulado a violência e incitado os militares. “Se houver necessidade, [o militar] parte para o confronto”, afirmou o próprio Temer. O ministro da Justiça, Torquato Jardim, foi acintoso, sugerindo a eliminação de adolescentes: “Se está lá com PM, Polícia Civil e Forças Armadas, se passar um guri de 15 anos de idade, você vê a foto dele, já matou quatro, entrou e saiu do centro de recuperação, uma dúzia de vezes, e está ali com um fuzil exclusivo das Forças Armadas, você vai fazer o quê? Prende. O guri vai lá e sai, na quarta ou quinta vez que você vê o fulano, vai fazer o quê? Você tem uma reação humana aí que deve ser muito bem trabalhada psicologicamente, emocionalmente, no PM ou no soldado. Você está no posto, mirando a distância, na alça da mira aquele guri que já saiu quatro, cinco vezes, está com a arma e já matou uns quatro. E agora? Tem que esperar ele pegar a arma para prender em flagrante ou elimino a distância? Ele é um cidadão sob suspeita porque não está praticando o ato naquele momento ou é um combatente inimigo?”
O clima de cerceamento às liberdades chegou a ponto de um cientista como o professor Elisaldo Carlini, de 88 anos, uma sumidade internacional no estudo do princípio ativo da maconha, foi convocado a depor há pouco mais de uma semana numa delegacia de São Paulo por “apologia às drogas”. Um ano atrás, havia sido a vez de Guilherme Boulos, detido por PMs durante uma reintegração de posse. A arbitrariedade concede cada vez mais poder de vida e morte a esferas cada vez mais inferiores do aparelho de Estado. Foi o vaticínio de Pedro Aleixo, vice-presidente do general Costa e Silva, ao ser o único a se insurgir e recusar-se a assinar o AI-5 na reunião do Conselho de Segurança Nacional que editou o Ato, em 13 de dezembro de 1968: “Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina” –disse Aleixo. No ano seguinte, com o afastamento de Costa e Silva por conta de uma trombose, Aleixo foi impedido pelos militares de assumir a Presidência e caiu no ostracismo.
6. A censura é cada vez mais agressiva – A censura patronal, existente desde sempre, está num dos momentos-auge da história da imprensa nacional. Os jornalistas que não concordam em escrever nos termos dos donos das mídias de massa do país, todos eles articuladores de primeira hora do golpe, demitem-se ou são afastados das redações de jornais, revistas, rádios e TVs. Em especial nos veículos que atingem o grande público, há um veto indisfarçado à presença de intelectuais, acadêmicos, sindicalistas, estudiosos ou ativistas de esquerda. Um ou outro colunista crítico, em especial nos jornais, são mantidos para inglês ver –mas os jornais estão todos decadentes e com uma repercussão cada dia mais diminuta. Os militares já ensaiam um novo modelo de relacionamento, que insinua uma censura cada dia mais escancarada. Na primeira entrevista coletiva sobre a intervenção, os generais só aceitaram que os jornalistas fizessem perguntas por escrito, com censura prévia por assessores fardados. Apenas perguntas dos órgãos de imprensa mais caninamente fiéis ao golpe foram aceitas: aquelas formuladas pelos jornalistas dos veículos da Globo e de O Estado de S. Paulo. As perguntas dos correspondentes estrangeiros foram todas vetadas. O primeiro passo dos militares, portanto, foi decidir o que respondem; haverá um segundo, para decidirem o que eles e todos nós iremos ler? Outras expressões da agressividade da volta da censura, similar aos movimentos da direita nos anos 1960 são iniciativas como a “Escola sem partido”, com a intimidação de professores e professoras; a tentativa de veto ao curso na UNB; e proibições a exibições e atividades artísticas e culturais que afrontem “os bons costumes”.
7. As primeiras prisões políticas – As primeiras prisões políticas acontecem sem grande alarde e repercussão na imprensa. O caso mais evidente foi o de Rafael Braga, morador de rua do Rio de Janeiro, condenado a 11 anos de prisão por transportar dois frascos de Pinho Sol e água sanitária durante uma manifestação em 2013. O caso foi tão acintoso que despertou uma campanha internacional –ele ficou preso em condições desumanas e até numa solitária por quatro anos, até ter sua prisão transformada em domiciliar em dezembro de 2017.
Apesar de não haver até agora prisões políticas em massa, o caso de Braga não é isolado. Há uma crescente criminalização dos movimentos sociais desde o golpe e militantes do MST têm sido perseguidos e presos em diversos Estados do país (veja aqui casos em Goiás, Paranáe São Paulo).
Há ainda o caso dos 18 jovens detidos em São Paulo, em setembro de 2016, durante protestos contra o governo Temer (PMDB), que estão sendo processados numa ação kafkiana, na qual são acusados de transportar objetos como gaze e vinagre para ferir policiais e depredar o patrimônio público. O caso ficou ganhou notoriedade pela atuação ilegal de um então capitão do Exército, William Pina Botelho, no grupo de jovens. O Exército não apenas furtou-se a apurar a responsabilidade do militar e seus comandantes como promoveu-o a major –montou-se um cerco a ele de tal forma que o “major Balta” não compareceu no processo.
8. O conluio dos golpistas com o crime organizado – i) segundo Temer, a razão primeira da intervenção no Rio seria o combate ao “crime organizado”. Mas foi exatamente em São Paulo –território político de Temer- em que o crime organizado mais avançou por dentro da estrutura estatal.
Nos primórdios, o conluio entre o poder político em São Paulo e o crime organizado em São Paulo aconteceu pelas mãos do próprio Temer. Como secretário de Segurança entre 1984 3 1986 (governo Montoro) e 1992 e 1994 (governo Fleury) costurou uma aliança com os bicheiros, em especial Ivo Noal, garantindo uma gestão tranquila do jogo do bicho e a caixinha da polícia. Foram os primeiros ensaios, de tempos hoje visto como “inocentes”, do que aconteceria em 2006, o acordo entre Cláudio Lembo, que havia assumido o governo depois de Alckmin haver se lançado à Presidência, e o PCC, na esteira dos 251 ataques a prédios das polícias.
Foi um acordo com para a cogestão da segurança pública. O assunto é público nas periferias de São Paulo. Basta visitar as favelas ou as regiões mais periféricas para testemunhar que a PM não entra e que o PCC é quem de fato manda. Alexandre de Moraes, que Temer levou depois para Brasília como primeiro ministro da Justiça do golpe, foi um dos administradores desse acordo, quando foi secretário de Segurança de Alckmin. Ou seja, há um know how acumulado entre Temer e Moraes.
Mas ninguém fala em “intervenção” em São Paulo -porque em São Paulo, como o crime é de fato organizado, a violência não é tão espalhafatosa (nem ali está a sede da Globo).
Crime organizado define-se exatamente por ser… organizado. O que significa necessariamente relações íntimas com agentes públicos -é assim em todo o mundo.
O crime no Rio é muito menos “organizado” que em São Paulo, apesar das iniciativas de Moreira Franco –outro líder golpista- de acordos com o Comando Vermelho, que nunca prosperaram com a competência executiva de São Paulo.
Em São Paulo o governo Temer não mexe. Na verdade, nem no Rio se mexerá. Vão ficar no sobe e desce dos morros caceteando os pobres e o fim da linha do tráfico.
Para mexer pra valer com o crime organizado seria necessário ir para cima dos bancos, de parlamentares, de policiais, advogados, juízes…
Combater o crime organizado significaria revolver as entranhas do poder de Estado e do poder financeiro. Como o governo está nas mãos exatamente deles (de parte da elite do aparelho de Estado e dos banqueiros) e alguns de seus principais líderes são interlocutores de uma das facetas do crime organizado (PCC e Comando Vermelho), o resultado que se pode esperar é no máximo a costura de um acordo nacional com as duas organizações, com partilhas que envolvam as taxas e comissões de praxe. Este tipo de acordo, entre as quadrilhas que passaram a controlar o aparelho de Estado e o crime organizado só será possível num regime de corte autoritário, que mantenha uma cortina de silêncio sobre o assunto.
Dará certo? A única coisa certa é que a desgraça continuará a se abater sobre os mais pobres.
ii) Outro aspecto do conluio entre golpistas e o crime organizado guarda semelhança com o que se aconteceu com inúmeros militares durante a ditadura. Um caso atual é exemplar. O general Augusto Heleno, que se tornou “referência de competência” da TV Globo para dar aulas sobre a intervenção militar no Rio de Janeiro e o combate ao crime organizado foi durante sete anos o braço direito de Carlos Arthur Nuzman.
O ex-presidente do COB foi preso em 2017 pela acusação dos crimes de corrupção ativa, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e enriquecimento ilícito. O notável general Heleno tornou-se executivo do COB em 2011, logo depois de ir para a reserva e só largou o osso em novembro de 2017, um mês depois da prisão de seu chefe, recebendo mensalmente a pequena fortuna de R$ 42.951,61.
Durante sete anos, diariamente ao lado de Nuzmam, o general não viu que estava imerso numa organização onde grassava a corrupção, a lavagem de dinheiro, a formação de quadrilha e o enriquecimento ilícito.
Esse mesmo general agora dá aulas sobre o combate ao crime organizado -não deixa de ser um especialista no assunto, não é?
O general Heleno defendeu o golpe militar de 1964 publicamente quando estava na ativa, assim como a candidatura de Bolsonaro, de quem é ardoroso defensor.
De junho de 2004 a setembro de 2005, foi o primeiro comandante militar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH). Por conta disso, virou especialista. Dá aulas na Globosobre a intervenção e sugere a eliminação pura e simples dos “inimigos” nas favelas.
Bem, é óbvio, mas não custa informar: em suas entrevistas aos veículos da Globo, o general até hoje não foi perguntado sobre sua relação com Nuzman, como ele conviveu diariamente no COB durante sete anos e nada viu, e sobre sua defesa apaixonada do golpe militar de 1964.
A contratação de militares da reserva por grandes empresas, em geral envolvidas com atividades extravagantes, foi comum durante a ditadura, e deixou enormes sequelas nas Forças Armadas.
9. Não haverá eleições livres – para que haja democracia, não é suficiente haver eleições. É preciso que elas sejam livres. E o governo do golpe de 2015/16 não pretende que isso aconteça. Em ação conjunta com o Judiciário, o governo prepara-se para impedir Lula de concorrer –ninguém menos que um ex-presidente da República e candidato disparado na preferência dos eleitores, segundo todas as pesquisas.
Durante o regime militar houve eleições, mas a sua realização não conferia à ditadura status de democracia. A cada rodada eleitoral as regras eram mudadas para permitir a vitória dos candidatos protagonistas ou apoiadores do golpe. O caso mais famoso foi o do pacote de abril, editado em 13 de abril de 1977 no governo do general Ernesto Geisel. Os militares sabiam que iriam perder as eleições de 1978. Para evitar, fecharam o Congresso e editaram uma emenda constitucional e seis decretos-leis. Uma das medidas foi instituir os chamados senadores biônicos, escolhidos por um colégio eleitoral definido para garantir que 1/3 das cadeiras do Senado fossem para nomes da confiança do regime.
Desta feita, há outro pacote de abril sendo embrulhado, por enquanto com uma única medida: tirar Lula da disputa. O roteiro não é inédito. É quase uma cópia do que foi feito contra outro ex-presidente de grande relevância para a história do país, Juscelino Kubistchek. Houve acusações de corrupção contra ele (o tema era exatamente um tríplex, só que em vez do Guarujá, no Ipanema, no Rio). JK era denunciado pelos políticos e mídias conservadoras como “rei da corrupção”, exatamente como Lula agora. À diferença de Lula, cuja sentença está nas mãos do Poder Judiciário controlado pelas forças golpistas, a condenação de JK foi de responsabilidade do Conselho de Segurança Nacional. Havia boatos insistentes de que o ex-presidente (JK) seria preso, como Lula. Ambos tiveram suas ligações telefônicas grampeadas ilegalmente. A declaração de Carlos Lacerda, um dos principais animadores do golpe de 1964, à época da cassação de JK, qualificando-a de “um ato de coragem política, de visão, embora preferisse derrotá-lo nas urnas” parece que como que transportada no tempo para a boca de Fernando Henrique Cardoso. O ex-“príncipe dos sociólogos”, que se tornou animador do golpe 2015/16 disse sobre a condenação de Lula que “teria sido melhor que Lula pudesse concorrer”, “mas tem a lei”.
Há uma espantosa profusão de fatos, atos, evidências, declarações, decisões, movimentos. Dela emerge uma conclusão inescapável: isso que está aí não é mais democracia.
A democracia no Brasil entrou em colapso e estamos nos primeiros momentos de um novo regime de tipo ditatorial.
Há resistências quanto a esta assertiva.
Na direita, a rejeição é óbvia: são as forças políticas que estão demolindo a democracia e jamais admitirão isso. Como em 1964, sufocam a democracia dizendo defendê-la. Basta ver a reação dos jornais das elites em 1 de abril de 1964: “Vitorioso o movimento democrático” (manchete de O Estado de S.Paulo) e “Ressurge a democracia” (editorial de O Globo) . Agora, não é diferente, como temos assistido à farta.
No entanto, mesmo entre as forças de esquerda, há desacordo. Um sintoma do que parece ser uma miopia que acometeu amplos segmentos da esquerda foi a postura diante da intervenção federal/militar no Rio: em vez da denúncia de seu caráter autoritário, líderes e analistas políticos de esquerda dedicaram-se a especular sobre as decorrências políticas e sobretudo eleitorais do ato, acolhendo a tese de que a intervenção estaria ainda nos parâmetros de “normalidade institucional”. Da mesma forma, estes mesmos analistas anunciaram o “constrangimento” dos militares em suas novas funções, a que teriam sido praticamente “arrastados” quando o que se vê é o contrário: os generais estão à vontade e cada dia mais explicitam seu prazer pelo exercício de um poder que consideraram roubado com a redemocratização do país nos anos 1980.
O fato é que temos escorregado ladeira abaixo desde a noite da reeleição de Dilma Roussef, quando o candidato derrotado anunciou que o resultado não seria respeitado e iniciou-se a trama do golpe abertamente. Escorregamos de início lentamente, mas a velocidade aumentou de maneira alucinante nas últimas semanas. Não vivemos uma ditadura militar sanguinária como a que testemunhamos no país por longos anos desde 1964 e em quase toda a América Latina entre mais ou menos contemporaneamente. Mas isso que está aí não é mais democracia, e continua a decair.
Leia a seguir nove evidências de que a democracia brasileira não merece mais este nome. É preciso tirar as decorrências desta constatação, porque ela traz graves implicações à luta política no país –mas este não é o objetivo deste artigo.
1. Houve um golpe de Estado contra uma presidenta eleita – a falta de tropas na rua, como já ficou patente, não serve para descaracterizar o que aconteceu em 2015/16: um golpe de Estado que articulou a elite dos poderes Legislativo, Judiciário e Executivo para arrancar do poder uma presidenta eleita pelo povo. A fúria da direita e de suas mídias em relação ao uso da palavra “golpe” é a evidência cabal de fundo psicanalítico mesmo para eles tratou-se de um golpe de estado -e, por isso, é crucial riscar a palavra do mapa. O último episódio foi a tentativa autoritária e ridícula do ministro da Educação, Mendonça Filho (o Mendoncinha) de atropelar a autonomia universitária e proibir um curso da UNB sob o título O Golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil, mobilizando todo o aparato de Estado à sua disposição contra um simples professor, o cientista social Luis Felipe Miguel. Durante o regime do golpe de 1964 foi assim: ai de quem ousasse chamar a ditadura de ditadura.
2. O Poder Judiciário sublevou-se contra a Constituição e tornou-se algoz da Justiça – o Poder Judiciário é por excelência aquele dedicado à manutenção do status quo vigente nas sociedades –por isso, é tendencialmente conservador. O que cumpria ao Judiciário conservarno Brasil? O marco legal fundado no Brasil com a Constituinte de 1988. No entanto, quem deveria ser o fiador deste marco legal, em especial o Supremo Tribunal Federal, rasgou-o. O Judiciário tornou-se aríete do golpismo, estabeleceu nos últimos anos uma dinâmica de perseguição aos políticos de esquerda e proteção aos de direita (gente da convivência, intimidade e identidade com a elite do Judiciário) e um encarcerador em massa dos pobres, alçando o país à triste condição de 3ª maior população carcerária do planeta.
3. Os militares deixaram os quartéis e agora coagem o país –decretou-se –com apoio do mesmo Congresso que deu o golpe em Dilma- uma intervenção federal-militar no Rio de Janeiro. Os militares, que saíam às ruas de maneira esporádica e pontual, sem qualquer efeito positivo na segurança pública e, diga-se, ainda como forças auxiliares do poder civil, agora assumem funções de governo, em comum acordo com os golpistas encastelados no Executivo, Legislativo e Judiciário. Deixam a subalternidade para serem os protagonistas. Generais assumiram de uma penada só os cargos de general-interventor no Rio, secretário de Segurança no Estado e ministro da Defesa –um rompimento com uma das regras de ouro do regime democrático pós-1988, no qual só civis comandavam a Pasta. Os militares vieram para ficar: i) general interventor Braga Neto anunciou que o Rio é só o começo, um “laboratório para o Brasil”; ii) o comandante do Exército, general Villas Bôas, anunciou que os militares querem mãos livres para fazer o que quiserem e exigiu do governo Temer “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”; iii) em outubro passado, o mesmo Villas Bôas, em aliança com o general Sérgio Etchegoyen, chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência (GSI) obtiveram do Senado a aprovação (com votos contrários apenas do PT e Rede) de projeto de lei imediatamente sancionado por Jungmann e Temer segundo o qual os militares os militares que cometerem crimes contra civis passaram a ser julgados pelos tribunais militares, como no tempo da ditadura pós-1964; iv) finalmente, nesta quarta (28), o comandante do Exército defendeu que os militares tenham autorização para matar pessoas armadas nas ruas do Rio de Janeiro –quem definirá se os mortos de fato estavam armados ou havia apenas suspeita de que estivessem? É uma autorização para execuções sumárias, praticadas nas periferias de São Paulo pela PM e, ao longo da história, pelos “esquadrões da morte” e “justiceiros”.
O general ministro do Exército é tido como um “moderado”, zeloso cumpridor da Constituição. Mas suas atitudes e declarações recentes, como se vê, operam em sentido contrário ou indicam que ele busca de composição com os setores radicais dos militares na tentativa de manter a unidade dentro das Forças Armadas. No entanto, suas declarações passadas já deveriam ter acendido o sinal de alerta entre os democratas. Em março de 2016, quando Dilma era a presidenta, Villas Bôas insinuava a correspondentes estrangeiros a possibilidade de uma intervenção militar; em setembro último, numa entrevista à Globo, ele praticamente repetiu as palavras do general Antonio Hamilton Mourão, que por duas vezes no segundo semestre de 2017 defendeu publicamente um golpe militar. Na entrevista, Villas Bôas informou que Mourão não seria punido e que, “na iminência de um caos” a Constituição daria às Forças Armadas um “mandato” para acabar com a democracia –o que é uma assertiva que não encontra qualquer respaldo no texto constitucional. De mais a mais, é sempre conveniente relativizar as juras de amor à democracia dos militares brasileiros. É bom lembrar que o então general Humberto de Alencar Castelo Branco, nomeado por João Goulart como chefe do Estado Maior do Exército, garantiu taxativamente em fevereiro de 1964 que as Forças Armadas não golpeariam a democracia –ele foi o principal líder militar do golpe do mês seguinte.
4. Voltam os “militares linha dura” – durante o regime militar pós-1964, como os comandantes militares concentravam o poder no país, a imprensa e os estudiosos passaram a estudar as diversas facções dentro das Forças Armadas. Foi quando surgiu a expressão “militares linha dura” –ela servia para qualificar coronéis e generais que defendiam a repressão mais feroz contra a oposição e medidas de fechamento político extremo. Ícones da “linha dura” foram os generais: i) Milton Tavares de Souza que, na condição de chefe do Centro de Informações do Exército (CIE), foi o responsável pelos planos de eliminação física dos que se opunham ao regime –a partir de 1969 chefiou o Doi-CODI; e Silvio Frota, ministro do Exército que tentou um golpe dentro do golpe, em outubro de 1977. O termo “militar linha dura” foi abandonado depois da redemocratização do país e, especialmente, depois da Constituição de 1988, quando os militares recolheram-se aos quartéis.
Agora, o termo voltou. E o líder da linha dura é ninguém menos que o general “linha dura” Etchegoyen que, a partir do GSI, tornou-se o homem forte do desmantelado governo Temer e, desde o golpe, articula abertamente a retomada do poder pelos militares. O general Silva e Luna foi apresentado ao país como ministro “interino” da Defesa, mas seu nome é defendido agressivamente por Etchegoyen desde 2016 –veja aqui detalhes sobre jantar com essa agenda, em Brasília, em abril daquele ano. O general Etchegoyen é de uma estirpede militares golpistas e vinculados ao desrespeito aos direitos humanos desde o início do século XX. Seu avô, Alcides Etchegoyen, nos anos 1920 participou de uma tentativa de golpe para impedir a posse do presidente eleito Washington Luis; depois, em 1954, assinou manifesto pela derrubada de Getúlio Vargas. Seus dois filhos seguiram o mesmo caminho: Leo, pai do chefe do GSI, e Cyro, seu tio. O primeiro participou ativamente do golpe de 1964 e assessorou o presidente do período mais sanguinário da ditadura, do general Médici (1969/1974); o segundo foi auxiliar direto do general Milton Tavares. Ambos envolveram-se em violações graves aos direitos humanos e chefiaram a repressão às greves no ABC, no fim dos anos 1970. Em 2014, como general da ativa e integrante do Alto Comando do Exército, Etchegoyen assinou uma nota pública atacando a Comissão da Verdade –sem que tenha sofrido qualquer punição. Ao contrário, depois do golpe de 2015/16, foi premiado com o GSI e agora dá as cartar no governo Temer. Voltamos a ter “linha dura”, e ela quer assumir o controle integral do Exército.
O general Villas Bôas está gravemente doente, vítima de esclerose lateral amiotrófica, uma doença neurológica degenerativa. Já não consegue mais andar e apresenta problemas respiratórios que estão se agravando. Desde que apareceram os sinais mais evidentes da doença, no início de 2017, há pressão da “linha dura” pela sua substituição. Ela intensificou-se ao longo do ano, com a adesão de setores da mídia conservadores. O general passa à reserva no final de março, e os líderes da direita mais radical no Exército esfregam as mãos.
A cerimônia em que o general golpista Mourão passou à reserva, nesta quarta (28), tornou-se uma celebração festiva da “linha dura” militar. Mourão homenageou em seu discurso o coronel torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, que chefiou o Doi-CODI entre 1970 e 1974. Qualificou o “dr. Tibiriçá”, como Ustra era conhecido pelos presos torturados, de “herói” –o coronel morreu em 2015, impune.
5. As liberdades e garantias estão caindo por terra – é fato que a democracia no país, mesmo depois da Constituição de 1988, nunca se espraiou pelas periferias nem subiu nos morros, nas favelas, alagados e cortiços. Mas o que se viu no Rio de Janeiro depois da intervenção militar foi inédito: postos de controle ao estilo dos nazistas à entrada dos guetos na Alemanha e em países ocupados pelo exército de Hitler, comparados pela ONG Justiça Global às práticas do regime do apartheid na África do Sul; e mandados de busca e apreensão coletivos, a serem utilizados nas favelas e periferias cariocas da Baixada Fluminense. Eles são inconstitucionais, segundo nota de quatro procuradores federais: “Mandados em branco, conferindo salvo conduto para prender, apreender e ingressar em domicílios, atentam contra inúmeras garantias individuais, tais como a proibição de violação da intimidade, do domicílio”.
Os principais líderes do governo Temer, a começar por ele próprio, têm estimulado a violência e incitado os militares. “Se houver necessidade, [o militar] parte para o confronto”, afirmou o próprio Temer. O ministro da Justiça, Torquato Jardim, foi acintoso, sugerindo a eliminação de adolescentes: “Se está lá com PM, Polícia Civil e Forças Armadas, se passar um guri de 15 anos de idade, você vê a foto dele, já matou quatro, entrou e saiu do centro de recuperação, uma dúzia de vezes, e está ali com um fuzil exclusivo das Forças Armadas, você vai fazer o quê? Prende. O guri vai lá e sai, na quarta ou quinta vez que você vê o fulano, vai fazer o quê? Você tem uma reação humana aí que deve ser muito bem trabalhada psicologicamente, emocionalmente, no PM ou no soldado. Você está no posto, mirando a distância, na alça da mira aquele guri que já saiu quatro, cinco vezes, está com a arma e já matou uns quatro. E agora? Tem que esperar ele pegar a arma para prender em flagrante ou elimino a distância? Ele é um cidadão sob suspeita porque não está praticando o ato naquele momento ou é um combatente inimigo?”
O clima de cerceamento às liberdades chegou a ponto de um cientista como o professor Elisaldo Carlini, de 88 anos, uma sumidade internacional no estudo do princípio ativo da maconha, foi convocado a depor há pouco mais de uma semana numa delegacia de São Paulo por “apologia às drogas”. Um ano atrás, havia sido a vez de Guilherme Boulos, detido por PMs durante uma reintegração de posse. A arbitrariedade concede cada vez mais poder de vida e morte a esferas cada vez mais inferiores do aparelho de Estado. Foi o vaticínio de Pedro Aleixo, vice-presidente do general Costa e Silva, ao ser o único a se insurgir e recusar-se a assinar o AI-5 na reunião do Conselho de Segurança Nacional que editou o Ato, em 13 de dezembro de 1968: “Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina” –disse Aleixo. No ano seguinte, com o afastamento de Costa e Silva por conta de uma trombose, Aleixo foi impedido pelos militares de assumir a Presidência e caiu no ostracismo.
6. A censura é cada vez mais agressiva – A censura patronal, existente desde sempre, está num dos momentos-auge da história da imprensa nacional. Os jornalistas que não concordam em escrever nos termos dos donos das mídias de massa do país, todos eles articuladores de primeira hora do golpe, demitem-se ou são afastados das redações de jornais, revistas, rádios e TVs. Em especial nos veículos que atingem o grande público, há um veto indisfarçado à presença de intelectuais, acadêmicos, sindicalistas, estudiosos ou ativistas de esquerda. Um ou outro colunista crítico, em especial nos jornais, são mantidos para inglês ver –mas os jornais estão todos decadentes e com uma repercussão cada dia mais diminuta. Os militares já ensaiam um novo modelo de relacionamento, que insinua uma censura cada dia mais escancarada. Na primeira entrevista coletiva sobre a intervenção, os generais só aceitaram que os jornalistas fizessem perguntas por escrito, com censura prévia por assessores fardados. Apenas perguntas dos órgãos de imprensa mais caninamente fiéis ao golpe foram aceitas: aquelas formuladas pelos jornalistas dos veículos da Globo e de O Estado de S. Paulo. As perguntas dos correspondentes estrangeiros foram todas vetadas. O primeiro passo dos militares, portanto, foi decidir o que respondem; haverá um segundo, para decidirem o que eles e todos nós iremos ler? Outras expressões da agressividade da volta da censura, similar aos movimentos da direita nos anos 1960 são iniciativas como a “Escola sem partido”, com a intimidação de professores e professoras; a tentativa de veto ao curso na UNB; e proibições a exibições e atividades artísticas e culturais que afrontem “os bons costumes”.
7. As primeiras prisões políticas – As primeiras prisões políticas acontecem sem grande alarde e repercussão na imprensa. O caso mais evidente foi o de Rafael Braga, morador de rua do Rio de Janeiro, condenado a 11 anos de prisão por transportar dois frascos de Pinho Sol e água sanitária durante uma manifestação em 2013. O caso foi tão acintoso que despertou uma campanha internacional –ele ficou preso em condições desumanas e até numa solitária por quatro anos, até ter sua prisão transformada em domiciliar em dezembro de 2017.
Apesar de não haver até agora prisões políticas em massa, o caso de Braga não é isolado. Há uma crescente criminalização dos movimentos sociais desde o golpe e militantes do MST têm sido perseguidos e presos em diversos Estados do país (veja aqui casos em Goiás, Paranáe São Paulo).
Há ainda o caso dos 18 jovens detidos em São Paulo, em setembro de 2016, durante protestos contra o governo Temer (PMDB), que estão sendo processados numa ação kafkiana, na qual são acusados de transportar objetos como gaze e vinagre para ferir policiais e depredar o patrimônio público. O caso ficou ganhou notoriedade pela atuação ilegal de um então capitão do Exército, William Pina Botelho, no grupo de jovens. O Exército não apenas furtou-se a apurar a responsabilidade do militar e seus comandantes como promoveu-o a major –montou-se um cerco a ele de tal forma que o “major Balta” não compareceu no processo.
8. O conluio dos golpistas com o crime organizado – i) segundo Temer, a razão primeira da intervenção no Rio seria o combate ao “crime organizado”. Mas foi exatamente em São Paulo –território político de Temer- em que o crime organizado mais avançou por dentro da estrutura estatal.
Nos primórdios, o conluio entre o poder político em São Paulo e o crime organizado em São Paulo aconteceu pelas mãos do próprio Temer. Como secretário de Segurança entre 1984 3 1986 (governo Montoro) e 1992 e 1994 (governo Fleury) costurou uma aliança com os bicheiros, em especial Ivo Noal, garantindo uma gestão tranquila do jogo do bicho e a caixinha da polícia. Foram os primeiros ensaios, de tempos hoje visto como “inocentes”, do que aconteceria em 2006, o acordo entre Cláudio Lembo, que havia assumido o governo depois de Alckmin haver se lançado à Presidência, e o PCC, na esteira dos 251 ataques a prédios das polícias.
Foi um acordo com para a cogestão da segurança pública. O assunto é público nas periferias de São Paulo. Basta visitar as favelas ou as regiões mais periféricas para testemunhar que a PM não entra e que o PCC é quem de fato manda. Alexandre de Moraes, que Temer levou depois para Brasília como primeiro ministro da Justiça do golpe, foi um dos administradores desse acordo, quando foi secretário de Segurança de Alckmin. Ou seja, há um know how acumulado entre Temer e Moraes.
Mas ninguém fala em “intervenção” em São Paulo -porque em São Paulo, como o crime é de fato organizado, a violência não é tão espalhafatosa (nem ali está a sede da Globo).
Crime organizado define-se exatamente por ser… organizado. O que significa necessariamente relações íntimas com agentes públicos -é assim em todo o mundo.
O crime no Rio é muito menos “organizado” que em São Paulo, apesar das iniciativas de Moreira Franco –outro líder golpista- de acordos com o Comando Vermelho, que nunca prosperaram com a competência executiva de São Paulo.
Em São Paulo o governo Temer não mexe. Na verdade, nem no Rio se mexerá. Vão ficar no sobe e desce dos morros caceteando os pobres e o fim da linha do tráfico.
Para mexer pra valer com o crime organizado seria necessário ir para cima dos bancos, de parlamentares, de policiais, advogados, juízes…
Combater o crime organizado significaria revolver as entranhas do poder de Estado e do poder financeiro. Como o governo está nas mãos exatamente deles (de parte da elite do aparelho de Estado e dos banqueiros) e alguns de seus principais líderes são interlocutores de uma das facetas do crime organizado (PCC e Comando Vermelho), o resultado que se pode esperar é no máximo a costura de um acordo nacional com as duas organizações, com partilhas que envolvam as taxas e comissões de praxe. Este tipo de acordo, entre as quadrilhas que passaram a controlar o aparelho de Estado e o crime organizado só será possível num regime de corte autoritário, que mantenha uma cortina de silêncio sobre o assunto.
Dará certo? A única coisa certa é que a desgraça continuará a se abater sobre os mais pobres.
ii) Outro aspecto do conluio entre golpistas e o crime organizado guarda semelhança com o que se aconteceu com inúmeros militares durante a ditadura. Um caso atual é exemplar. O general Augusto Heleno, que se tornou “referência de competência” da TV Globo para dar aulas sobre a intervenção militar no Rio de Janeiro e o combate ao crime organizado foi durante sete anos o braço direito de Carlos Arthur Nuzman.
O ex-presidente do COB foi preso em 2017 pela acusação dos crimes de corrupção ativa, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e enriquecimento ilícito. O notável general Heleno tornou-se executivo do COB em 2011, logo depois de ir para a reserva e só largou o osso em novembro de 2017, um mês depois da prisão de seu chefe, recebendo mensalmente a pequena fortuna de R$ 42.951,61.
Durante sete anos, diariamente ao lado de Nuzmam, o general não viu que estava imerso numa organização onde grassava a corrupção, a lavagem de dinheiro, a formação de quadrilha e o enriquecimento ilícito.
Esse mesmo general agora dá aulas sobre o combate ao crime organizado -não deixa de ser um especialista no assunto, não é?
O general Heleno defendeu o golpe militar de 1964 publicamente quando estava na ativa, assim como a candidatura de Bolsonaro, de quem é ardoroso defensor.
De junho de 2004 a setembro de 2005, foi o primeiro comandante militar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH). Por conta disso, virou especialista. Dá aulas na Globosobre a intervenção e sugere a eliminação pura e simples dos “inimigos” nas favelas.
Bem, é óbvio, mas não custa informar: em suas entrevistas aos veículos da Globo, o general até hoje não foi perguntado sobre sua relação com Nuzman, como ele conviveu diariamente no COB durante sete anos e nada viu, e sobre sua defesa apaixonada do golpe militar de 1964.
A contratação de militares da reserva por grandes empresas, em geral envolvidas com atividades extravagantes, foi comum durante a ditadura, e deixou enormes sequelas nas Forças Armadas.
9. Não haverá eleições livres – para que haja democracia, não é suficiente haver eleições. É preciso que elas sejam livres. E o governo do golpe de 2015/16 não pretende que isso aconteça. Em ação conjunta com o Judiciário, o governo prepara-se para impedir Lula de concorrer –ninguém menos que um ex-presidente da República e candidato disparado na preferência dos eleitores, segundo todas as pesquisas.
Durante o regime militar houve eleições, mas a sua realização não conferia à ditadura status de democracia. A cada rodada eleitoral as regras eram mudadas para permitir a vitória dos candidatos protagonistas ou apoiadores do golpe. O caso mais famoso foi o do pacote de abril, editado em 13 de abril de 1977 no governo do general Ernesto Geisel. Os militares sabiam que iriam perder as eleições de 1978. Para evitar, fecharam o Congresso e editaram uma emenda constitucional e seis decretos-leis. Uma das medidas foi instituir os chamados senadores biônicos, escolhidos por um colégio eleitoral definido para garantir que 1/3 das cadeiras do Senado fossem para nomes da confiança do regime.
Desta feita, há outro pacote de abril sendo embrulhado, por enquanto com uma única medida: tirar Lula da disputa. O roteiro não é inédito. É quase uma cópia do que foi feito contra outro ex-presidente de grande relevância para a história do país, Juscelino Kubistchek. Houve acusações de corrupção contra ele (o tema era exatamente um tríplex, só que em vez do Guarujá, no Ipanema, no Rio). JK era denunciado pelos políticos e mídias conservadoras como “rei da corrupção”, exatamente como Lula agora. À diferença de Lula, cuja sentença está nas mãos do Poder Judiciário controlado pelas forças golpistas, a condenação de JK foi de responsabilidade do Conselho de Segurança Nacional. Havia boatos insistentes de que o ex-presidente (JK) seria preso, como Lula. Ambos tiveram suas ligações telefônicas grampeadas ilegalmente. A declaração de Carlos Lacerda, um dos principais animadores do golpe de 1964, à época da cassação de JK, qualificando-a de “um ato de coragem política, de visão, embora preferisse derrotá-lo nas urnas” parece que como que transportada no tempo para a boca de Fernando Henrique Cardoso. O ex-“príncipe dos sociólogos”, que se tornou animador do golpe 2015/16 disse sobre a condenação de Lula que “teria sido melhor que Lula pudesse concorrer”, “mas tem a lei”.
Há uma espantosa profusão de fatos, atos, evidências, declarações, decisões, movimentos. Dela emerge uma conclusão inescapável: isso que está aí não é mais democracia.
Há muito mais evidências. Em primeiro lugar, a mais gritante de todas: o programa de governo (ponte para o futuro) foi escrito em 2015 e nunca passou por uma eleição (até hoje não entendo porque Requião apareceu naquela propaganda ridícula e prenunciadora do apocalispe, já que ele - acertadamente - votou contra o impedimento fraudulento). Além disso, é só comparar: em que país democrático o governante tem menos de 1% de aprovação e não é nem será substituído. O Brasil, insistindo na denominação "Estado democrático de direito" compete com a extinta República Democrática Alemã que também insistia no título de "democracia"
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