Por Pedro H. Villas Boas Castelo Branco, na revista Teoria e Debate:
No Rio de Janeiro, vitrine e recentemente também laboratório do país, escalamos das operações de garantia da lei e da ordem à intervenção federal, do esgotamento das forças de segurança ao grave cometimento da ordem pública, do espetáculo do carnaval com carros alegóricos ao carnaval do governo federal com tanques e blindados. Quem poderia imaginar a mudança de cenário do carnaval para a paisagem marcial? Em ano de corrida eleitoral, porém é oportuna a lembrança de que intervenção federal não é carnaval! Enquanto o carnaval é a tradicional e irreverente suspensão lúdica do cotidiano da vida nacional, a intervenção federal, espécie de estado de exceção, é uma intervenção parcial na ordem jurídica de uma unidade federal. Salta aos olhos, no entanto, que seu caráter provisório pareça ter se tornado peremptório, agora não mais como encenação na apoteose, mas como demagogia populista no palco da segurança pública do Rio de Janeiro.
Clausewitz, o famoso general prussiano, cunhou a máxima eloquente de que a guerra é a continuação da política por outros meios. Mas se lançarmos um olhar no ano eleitoral do país, em que está em jogo a disputa presidencial, do Senado, da Câmara Federal e do governo dos estados, visualizaremos a versão jabuticaba e atualizada do aforismo clausewitziano: no Brasil a política se tornou a continuação do carnaval por outros meios e conservou, fora de época e contexto, a encenação: um dos presidentes mais impopulares da história do país, Michel Temer, com a intervenção federal, soou o alarme emergencial da Carta Constitucional e mobilizou um gigantesco aparato bélico para não ver seu governo derrotado nas batalhas de vida e morte travadas na Câmara de Deputados. Com propósito sub-reptício, suspendeu mais de 1.500 emendas constitucionais, entre elas a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 51, que prevê a reconfiguração da arquitetura institucional da segurança pública. Logrou evitar a derrota da polêmica reforma da Previdência na Câmara, adiou a votação da restrição do foro privilegiado e com essa cartada tenta ressuscitar sua existência política e a de seu partido, agora MDB, no palco eleitoral da política nacional.
A escolha do Rio de Janeiro para ser o laboratório da intervenção federal também levanta suspeitas sobre a legitimidade do decreto presidencial. O centro de gravidade dos crimes não está nas favelas cariocas. O governo, ao adotar o inciso III, do Art. 34 da Constituição Federal, que fala em “pôr termo a grave cometimento da ordem pública”, agiu de modo seletivo e oportunista. Sob o ponto de vista do índice de homicídios, o Rio ocupa a décima segunda posição, segundo o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o que não significa que seus índices sejam baixos e que a violência seja um fenômeno somente estatisticamente mensurável. Já com relação a entrada de armas e drogas, o Rio não é o estado geopoliticamente mais relevante para a política de controle de fronteiras.
Concepção bélica da segurança pública
A instrumentalização da intervenção federal e a manipulação do medo da população carioca se revelam nas palavras marciais do presidente Temer ao justificar a medida “para derrotar o crime organizado” que “tomou conta do estado do Rio” e “se espalhou como uma metástase pelo país”. Dias depois se jactou de sua “jogada de mestre”, mas não revelou que sua cartada joga com o temor dos cariocas e transforma as Forças Armadas num joguete a serviço de seus interesses políticos. A fim de salvar sua existência e ressuscitar na cena político-eleitoral, o presidente da República acentua a distorção do papel constitucional precípuo das Forças Armadas, que é a proteção da pátria e o impedimento de invasão externa, o funcionamento das instituições democráticas. O preço da jogada de mestre é alto, além de ameaçar a conquista do equilíbrio democrático da relação civil-militar, abre o flanco de um desgaste ainda maior da soberania do Estado brasileiro. A medida de exceção adotada pelo presidente se traduz no acionamento do alarme de emergência para apagar um incêndio cujas flamas já haviam sido propagadas há anos, muito antes da campanha eleitoral em curso. Transformar o uso episódico das Forças Armadas em uso frequente pode provocar a militarização da política.
Em conformidade com a Constituição Federal, as polícias militares são forças auxiliares e reservas do Exército, mas este vem sendo utilizado como se fosse força auxiliar e reserva das polícias militares. Insistir nessa inversão é uma ameaça, não só à segurança pública em todo território nacional, mas também ao último recurso da soberania brasileira, que é o emprego das Forças Armadas em caso de esgotamento das forças policiais. Provoca instabilidade e imprevisibilidade permitir que se confundam as Forças Armadas com as polícias, a segurança pública com a defesa da pátria e o criminoso com o inimigo. O criminoso não luta contra o Estado, não é anarquista ou revolucionário, mas um comerciante ilegal que quer defender seu negócio ilícito e ampliar suas zonas de atuação. A ele não interessa a tomada do poder do Estado, mas um Estado no qual a corrupção de agentes públicos é sistêmica e endêmica.
A banalização do termo “guerra” pela mídia tradicional e por agentes públicos, ao repetir exaustivamente o mantra da “guerra às drogas”, “guerra às organizações criminosas”, eleva-os à categoria de inimigo, provocando a escalada da violência e a militarização da política.
Não se trata de guerra convencional entre exércitos nacionais, controlada pelas regras das convenções internacionais. Fazer guerra tem decorrências: destruir o inimigo, reconquistar o território e fazer acordo de paz. Só há possibilidade de celebrar a paz quando ao inimigo é atribuída capacidade de negociação. A guerra convencional pressupõe algum equilíbrio entre adversários e simetria capazes de possibilitar a limitação recíproca na intensidade da violência física entre combatentes.
O aumento dos confrontos armados no Rio, percebido pelo número exacerbado de mortos, mesmo que policiais, não justifica uma ação de guerra. Enquanto a organização criminosa age com propósito de cometer crimes para obtenção direta ou indireta de fins econômicos, a guerra, independentemente de ser interestatal, civil, regular ou não, tem objetivo político. A intenção da organização é negar a ordem legal para aumentar seus lucros; os inimigos dela são mutáveis e circunstanciais.
Controle civil das Forças Armadas
A despeito de a intervenção federal ter sido motivada por razões estratégicas de sobrevivência política do presidente Temer, pôr em risco o último recurso da soberania nacional e ensejar a militarização da política, o comando das Forças Armadas agiu corretamente ao se submeter à missão que a máxima autoridade civil lhe incumbiu. O fundamento democrático da Constituição de 1988, alicerçado na relação civil-militar, se expressa inequivocamente no controle civil das Forças Armadas. O presidente, sob ponto de vista da cadeia de comando constitucional, é o supremo comandante das Forças Armadas e elas se submetem à sua autoridade em virtude de seu cargo ser representativo da soberania popular. Não importa quem seja o presidente, o critério é institucional e não pessoal, vincula-se à representatividade do cargo que garante a estabilidade democrática pelo controle civil, prescrito na Magna Carta, da destinação constitucional das Forças Armadas. Se a autoridade militar não se submetesse ao chamado do presidente da República, a instável democracia brasileira poderia estar com seus dias contados.
As medidas anunciadas pelo interventor general Braga Netto são procedentes: combate à corrupção policial, controle dos presídios, reestruturação das polícias e abertura de caminho para as ações sociais. A intervenção é polêmica, sua marca de nascença padece do pecado original traduzido pelo uso estratégico que o presidente da República faz do medo da população carioca, desamparada por um Estado falido e vítima de uma política de segurança pública calcada na lógica da guerra à criminalidade. O número aterrorizador de homicídios, com média anual de mais de 60 mil por ano, que inclui inocentes e policiais, é equiparado a países em guerra civil como a Síria. Com a intervenção federal em curso e sua amplitude e prazo fixados, é mais sensato apoiá-la e controlá-la do que se voltar contra ela a fim de não se correr o risco da falência do último recurso da soberania estatal.
Atentado à democracia e reação à intervenção
Há menos de uma semana, no dia 14 de março, sob intervenção federal, o Rio de Janeiro foi palco de um crime político brutal que ceifou a vida de Marielle Franco, vereadora do Psol eleita em 2016. Marielle era relatora de uma comissão formada pela Câmara Municipal do Rio para acompanhar a intervenção federal e já havia denunciado episódios de violência e truculência policial na favela de Acari, na zona Norte. Este não foi mais um capítulo do trágico cotidiano da vida carioca, mas um atentado à democracia, um crime abjeto perpetrado contra o estado democrático de direito que não afeta apenas o estado do Rio, mas todo o país. A falência do Estado, a corrupção desenfreada de seus agentes, a ausência de políticas sociais eficientes e a estratégia bélica da segurança pública converteram-se em uma máquina de eliminação de vidas, inclusive a de policiais. Se a intervenção federal antes do assassinato da vereadora já suscitava controvérsia, agora foi alçada a um elevado grau de polarização em que somos instados a decidir se nos posicionamos contra ou a favor. A análise do curso dos acontecimentos, porém, permite suspeitar, ao contrário da torrente opinativa da polarização, que o assassinato de Marielle Franco pode ter sido cometido como um ato, não só contrário à democracia, mas também à intervenção federal. Assim que o general Braga Netto anunciou as medidas para conter a violência no Rio, elegeu o combate à corrupção policial como eixo central das medidas interventivas. Para tanto, ordenou a troca nos comandos das polícias civil e militar. Somado a isso, as recentes prisões efetuadas pela operação Pão Nosso, desdobramento da Lava Jato, como a do delegado Marcelo Martins, atual diretor-geral de Polícia Especializada e do coronel César Rubens Monteiro de Carvalho, ex-secretário de Administração Penitenciária da gestão Sérgio Cabral Filho, podem ter levado setores das polícias a reagir contra a intervenção por meio da execução da relatora da comissão para acompanhar seu funcionamento. A escolha da vereadora seria parte do plano do crime premeditado para jogar a população carioca e do país contra a intervenção.
O nexo de causalidade do curso dos eventos e o profissionalismo da execução em plena intervenção sugerem que o assassinato pode ter sido perpetrado por quem é o alvo das principais medidas da intervenção federal: as polícias civil e militar. Se tal hipótese se confirmar, é possível observar uma modificação na condução da segurança pública do Rio sob comando das Forças Armadas: o deslocamento do centro da estratégia da segurança pública concentrada na lógica bélica do confronto armado para o combate à corrupção policial e de outros agentes públicos.
O que fazer?
A opção pela intervenção federal, agora conjugada com a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), tem elevados custos financeiros e políticos. Tais gastos deveriam ser redirecionados para as causas que justificam o emprego episódico de medidas extremas. Mais do que o emprego das Forças Armadas, o governo do estado do Rio precisa regularizar a situação do Regime Adicional de Serviço (RAS) dos policiais e quitar suas dívidas com as polícias que operam com equipamentos precários e salários atrasados. Urge elevar os salários das polícias militar e civil, investir no aprimoramento de sua formação, contribuir com a construção de presídios, produzir e alimentar um banco nacional de dados compartilhados pelos diferentes órgãos de segurança pública, promover a integração das polícias, da justiça criminal e do sistema penitenciário e criar um órgão federal de coordenação das ações das polícias. Investir em inteligência e investigação é uma reivindicação que já constou de diversos planos de segurança como o último, um plano nacional, elaborado sob pressão pelo então ministro da Justiça, Alexandre de Morais, em meio a massacres provocados pelas rebeliões em presídios de Manaus e Roraima que resultaram na morte de 33 pessoas. Jamais, porém, as medidas dos planos saíram do papel porque a concepção essencial da segurança pública sempre foi reduzida a uma lógica de guerra, ao confronto armado contra “inimigos”, que com frequência são traficantes varejistas. Há pelo menos três décadas a estratégia da política de segurança no Rio se apoia em uma concepção militarista e belicista que reproduz a velha trama do confronto armado entre policiais e bandidos. Os moradores pobres que vivem sob a tirania dos traficantes e em meio ao fogo cruzado pagam com a vida pela insistência na lógica de guerra às facções criminosas. A trágica novidade dessa trama é o elevado índice de policiais assassinados nos últimos anos que também passaram a integrar a estatística de vítimas da estratégia belicista de combate ao crime.
Conclusão
A decisão presidencial de concentrar os recursos em operações militares, sob o comando do general de Exército Walter Braga Netto, é uma escolha cosmético-eleitoral. Seres humanos tendem a se impressionar mais com a plasticidade performática do desfile do aparato bélico do que pelas ações silenciosas de inteligência, investigação e prevenção. Em vez de optar pela concentração de gastos com as ações episódicas de intervenção e operação de garantia da lei e da ordem caberia tomar decisões de médio e longo prazo para além da redução da sensação de insegurança. O uso populista da ferramenta da intervenção federal, com prazo para até 31 de dezembro, com propósito de reduzir os índices de criminalidade e elevar a sensação de segurança, foi recentemente encurtado para setembro, um mês antes das eleições. O propósito de “derrotar o crime organizado” no Rio antes das eleições é uma manipulação dos sentimentos de uma população prostrada, acuada e intimidada por uma violência desmedida que dura há pelo menos três décadas e se move no círculo vicioso da lógica dos confrontos armados.
Intervir na teia de relações promíscuas entre agentes corruptos e grupos criminosos provoca reações de extrema violência, com propósito de esvaziar e provocar uma espiral de ações contrárias à intervenção. Se a intervenção abrir caminho para a redução da corrupção policial ela terá escapado do fracasso a que parece fadada em razão de sua motivação original. Não devemos deixar a intervenção federal com medidas importantes se converter no fermento da polarização eleitoral. O que está em jogo é a fundação sobre a qual se edifica o Estado moderno: a segurança pública. O monopólio do Estado da violência legítima voltado à garantia de direitos individuais e sociais, como é o direito básico à segurança pública, vem sendo privatizado por traficantes, policiais, políticos, milicianos, empresários etc. A declaração do Art. 144 da Constituição Federal de 1988 de que “a segurança é dever do Estado e responsabilidade de todos” significa que estamos todos no mesmo barco: se o recurso último da soberania, o emprego das Forças Armadas, não desvendar o crime político contrário à democracia e à intervenção por meio da descoberta da autoria dos mandantes e executores do assassinato de Marielle Franco, a soberania democrática estará mais abalada que nunca.
* Pedro H. Villas Boas Castelo Branco é professor no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
No Rio de Janeiro, vitrine e recentemente também laboratório do país, escalamos das operações de garantia da lei e da ordem à intervenção federal, do esgotamento das forças de segurança ao grave cometimento da ordem pública, do espetáculo do carnaval com carros alegóricos ao carnaval do governo federal com tanques e blindados. Quem poderia imaginar a mudança de cenário do carnaval para a paisagem marcial? Em ano de corrida eleitoral, porém é oportuna a lembrança de que intervenção federal não é carnaval! Enquanto o carnaval é a tradicional e irreverente suspensão lúdica do cotidiano da vida nacional, a intervenção federal, espécie de estado de exceção, é uma intervenção parcial na ordem jurídica de uma unidade federal. Salta aos olhos, no entanto, que seu caráter provisório pareça ter se tornado peremptório, agora não mais como encenação na apoteose, mas como demagogia populista no palco da segurança pública do Rio de Janeiro.
Clausewitz, o famoso general prussiano, cunhou a máxima eloquente de que a guerra é a continuação da política por outros meios. Mas se lançarmos um olhar no ano eleitoral do país, em que está em jogo a disputa presidencial, do Senado, da Câmara Federal e do governo dos estados, visualizaremos a versão jabuticaba e atualizada do aforismo clausewitziano: no Brasil a política se tornou a continuação do carnaval por outros meios e conservou, fora de época e contexto, a encenação: um dos presidentes mais impopulares da história do país, Michel Temer, com a intervenção federal, soou o alarme emergencial da Carta Constitucional e mobilizou um gigantesco aparato bélico para não ver seu governo derrotado nas batalhas de vida e morte travadas na Câmara de Deputados. Com propósito sub-reptício, suspendeu mais de 1.500 emendas constitucionais, entre elas a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 51, que prevê a reconfiguração da arquitetura institucional da segurança pública. Logrou evitar a derrota da polêmica reforma da Previdência na Câmara, adiou a votação da restrição do foro privilegiado e com essa cartada tenta ressuscitar sua existência política e a de seu partido, agora MDB, no palco eleitoral da política nacional.
A escolha do Rio de Janeiro para ser o laboratório da intervenção federal também levanta suspeitas sobre a legitimidade do decreto presidencial. O centro de gravidade dos crimes não está nas favelas cariocas. O governo, ao adotar o inciso III, do Art. 34 da Constituição Federal, que fala em “pôr termo a grave cometimento da ordem pública”, agiu de modo seletivo e oportunista. Sob o ponto de vista do índice de homicídios, o Rio ocupa a décima segunda posição, segundo o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o que não significa que seus índices sejam baixos e que a violência seja um fenômeno somente estatisticamente mensurável. Já com relação a entrada de armas e drogas, o Rio não é o estado geopoliticamente mais relevante para a política de controle de fronteiras.
Concepção bélica da segurança pública
A instrumentalização da intervenção federal e a manipulação do medo da população carioca se revelam nas palavras marciais do presidente Temer ao justificar a medida “para derrotar o crime organizado” que “tomou conta do estado do Rio” e “se espalhou como uma metástase pelo país”. Dias depois se jactou de sua “jogada de mestre”, mas não revelou que sua cartada joga com o temor dos cariocas e transforma as Forças Armadas num joguete a serviço de seus interesses políticos. A fim de salvar sua existência e ressuscitar na cena político-eleitoral, o presidente da República acentua a distorção do papel constitucional precípuo das Forças Armadas, que é a proteção da pátria e o impedimento de invasão externa, o funcionamento das instituições democráticas. O preço da jogada de mestre é alto, além de ameaçar a conquista do equilíbrio democrático da relação civil-militar, abre o flanco de um desgaste ainda maior da soberania do Estado brasileiro. A medida de exceção adotada pelo presidente se traduz no acionamento do alarme de emergência para apagar um incêndio cujas flamas já haviam sido propagadas há anos, muito antes da campanha eleitoral em curso. Transformar o uso episódico das Forças Armadas em uso frequente pode provocar a militarização da política.
Em conformidade com a Constituição Federal, as polícias militares são forças auxiliares e reservas do Exército, mas este vem sendo utilizado como se fosse força auxiliar e reserva das polícias militares. Insistir nessa inversão é uma ameaça, não só à segurança pública em todo território nacional, mas também ao último recurso da soberania brasileira, que é o emprego das Forças Armadas em caso de esgotamento das forças policiais. Provoca instabilidade e imprevisibilidade permitir que se confundam as Forças Armadas com as polícias, a segurança pública com a defesa da pátria e o criminoso com o inimigo. O criminoso não luta contra o Estado, não é anarquista ou revolucionário, mas um comerciante ilegal que quer defender seu negócio ilícito e ampliar suas zonas de atuação. A ele não interessa a tomada do poder do Estado, mas um Estado no qual a corrupção de agentes públicos é sistêmica e endêmica.
A banalização do termo “guerra” pela mídia tradicional e por agentes públicos, ao repetir exaustivamente o mantra da “guerra às drogas”, “guerra às organizações criminosas”, eleva-os à categoria de inimigo, provocando a escalada da violência e a militarização da política.
Não se trata de guerra convencional entre exércitos nacionais, controlada pelas regras das convenções internacionais. Fazer guerra tem decorrências: destruir o inimigo, reconquistar o território e fazer acordo de paz. Só há possibilidade de celebrar a paz quando ao inimigo é atribuída capacidade de negociação. A guerra convencional pressupõe algum equilíbrio entre adversários e simetria capazes de possibilitar a limitação recíproca na intensidade da violência física entre combatentes.
O aumento dos confrontos armados no Rio, percebido pelo número exacerbado de mortos, mesmo que policiais, não justifica uma ação de guerra. Enquanto a organização criminosa age com propósito de cometer crimes para obtenção direta ou indireta de fins econômicos, a guerra, independentemente de ser interestatal, civil, regular ou não, tem objetivo político. A intenção da organização é negar a ordem legal para aumentar seus lucros; os inimigos dela são mutáveis e circunstanciais.
Controle civil das Forças Armadas
A despeito de a intervenção federal ter sido motivada por razões estratégicas de sobrevivência política do presidente Temer, pôr em risco o último recurso da soberania nacional e ensejar a militarização da política, o comando das Forças Armadas agiu corretamente ao se submeter à missão que a máxima autoridade civil lhe incumbiu. O fundamento democrático da Constituição de 1988, alicerçado na relação civil-militar, se expressa inequivocamente no controle civil das Forças Armadas. O presidente, sob ponto de vista da cadeia de comando constitucional, é o supremo comandante das Forças Armadas e elas se submetem à sua autoridade em virtude de seu cargo ser representativo da soberania popular. Não importa quem seja o presidente, o critério é institucional e não pessoal, vincula-se à representatividade do cargo que garante a estabilidade democrática pelo controle civil, prescrito na Magna Carta, da destinação constitucional das Forças Armadas. Se a autoridade militar não se submetesse ao chamado do presidente da República, a instável democracia brasileira poderia estar com seus dias contados.
As medidas anunciadas pelo interventor general Braga Netto são procedentes: combate à corrupção policial, controle dos presídios, reestruturação das polícias e abertura de caminho para as ações sociais. A intervenção é polêmica, sua marca de nascença padece do pecado original traduzido pelo uso estratégico que o presidente da República faz do medo da população carioca, desamparada por um Estado falido e vítima de uma política de segurança pública calcada na lógica da guerra à criminalidade. O número aterrorizador de homicídios, com média anual de mais de 60 mil por ano, que inclui inocentes e policiais, é equiparado a países em guerra civil como a Síria. Com a intervenção federal em curso e sua amplitude e prazo fixados, é mais sensato apoiá-la e controlá-la do que se voltar contra ela a fim de não se correr o risco da falência do último recurso da soberania estatal.
Atentado à democracia e reação à intervenção
Há menos de uma semana, no dia 14 de março, sob intervenção federal, o Rio de Janeiro foi palco de um crime político brutal que ceifou a vida de Marielle Franco, vereadora do Psol eleita em 2016. Marielle era relatora de uma comissão formada pela Câmara Municipal do Rio para acompanhar a intervenção federal e já havia denunciado episódios de violência e truculência policial na favela de Acari, na zona Norte. Este não foi mais um capítulo do trágico cotidiano da vida carioca, mas um atentado à democracia, um crime abjeto perpetrado contra o estado democrático de direito que não afeta apenas o estado do Rio, mas todo o país. A falência do Estado, a corrupção desenfreada de seus agentes, a ausência de políticas sociais eficientes e a estratégia bélica da segurança pública converteram-se em uma máquina de eliminação de vidas, inclusive a de policiais. Se a intervenção federal antes do assassinato da vereadora já suscitava controvérsia, agora foi alçada a um elevado grau de polarização em que somos instados a decidir se nos posicionamos contra ou a favor. A análise do curso dos acontecimentos, porém, permite suspeitar, ao contrário da torrente opinativa da polarização, que o assassinato de Marielle Franco pode ter sido cometido como um ato, não só contrário à democracia, mas também à intervenção federal. Assim que o general Braga Netto anunciou as medidas para conter a violência no Rio, elegeu o combate à corrupção policial como eixo central das medidas interventivas. Para tanto, ordenou a troca nos comandos das polícias civil e militar. Somado a isso, as recentes prisões efetuadas pela operação Pão Nosso, desdobramento da Lava Jato, como a do delegado Marcelo Martins, atual diretor-geral de Polícia Especializada e do coronel César Rubens Monteiro de Carvalho, ex-secretário de Administração Penitenciária da gestão Sérgio Cabral Filho, podem ter levado setores das polícias a reagir contra a intervenção por meio da execução da relatora da comissão para acompanhar seu funcionamento. A escolha da vereadora seria parte do plano do crime premeditado para jogar a população carioca e do país contra a intervenção.
O nexo de causalidade do curso dos eventos e o profissionalismo da execução em plena intervenção sugerem que o assassinato pode ter sido perpetrado por quem é o alvo das principais medidas da intervenção federal: as polícias civil e militar. Se tal hipótese se confirmar, é possível observar uma modificação na condução da segurança pública do Rio sob comando das Forças Armadas: o deslocamento do centro da estratégia da segurança pública concentrada na lógica bélica do confronto armado para o combate à corrupção policial e de outros agentes públicos.
O que fazer?
A opção pela intervenção federal, agora conjugada com a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), tem elevados custos financeiros e políticos. Tais gastos deveriam ser redirecionados para as causas que justificam o emprego episódico de medidas extremas. Mais do que o emprego das Forças Armadas, o governo do estado do Rio precisa regularizar a situação do Regime Adicional de Serviço (RAS) dos policiais e quitar suas dívidas com as polícias que operam com equipamentos precários e salários atrasados. Urge elevar os salários das polícias militar e civil, investir no aprimoramento de sua formação, contribuir com a construção de presídios, produzir e alimentar um banco nacional de dados compartilhados pelos diferentes órgãos de segurança pública, promover a integração das polícias, da justiça criminal e do sistema penitenciário e criar um órgão federal de coordenação das ações das polícias. Investir em inteligência e investigação é uma reivindicação que já constou de diversos planos de segurança como o último, um plano nacional, elaborado sob pressão pelo então ministro da Justiça, Alexandre de Morais, em meio a massacres provocados pelas rebeliões em presídios de Manaus e Roraima que resultaram na morte de 33 pessoas. Jamais, porém, as medidas dos planos saíram do papel porque a concepção essencial da segurança pública sempre foi reduzida a uma lógica de guerra, ao confronto armado contra “inimigos”, que com frequência são traficantes varejistas. Há pelo menos três décadas a estratégia da política de segurança no Rio se apoia em uma concepção militarista e belicista que reproduz a velha trama do confronto armado entre policiais e bandidos. Os moradores pobres que vivem sob a tirania dos traficantes e em meio ao fogo cruzado pagam com a vida pela insistência na lógica de guerra às facções criminosas. A trágica novidade dessa trama é o elevado índice de policiais assassinados nos últimos anos que também passaram a integrar a estatística de vítimas da estratégia belicista de combate ao crime.
Conclusão
A decisão presidencial de concentrar os recursos em operações militares, sob o comando do general de Exército Walter Braga Netto, é uma escolha cosmético-eleitoral. Seres humanos tendem a se impressionar mais com a plasticidade performática do desfile do aparato bélico do que pelas ações silenciosas de inteligência, investigação e prevenção. Em vez de optar pela concentração de gastos com as ações episódicas de intervenção e operação de garantia da lei e da ordem caberia tomar decisões de médio e longo prazo para além da redução da sensação de insegurança. O uso populista da ferramenta da intervenção federal, com prazo para até 31 de dezembro, com propósito de reduzir os índices de criminalidade e elevar a sensação de segurança, foi recentemente encurtado para setembro, um mês antes das eleições. O propósito de “derrotar o crime organizado” no Rio antes das eleições é uma manipulação dos sentimentos de uma população prostrada, acuada e intimidada por uma violência desmedida que dura há pelo menos três décadas e se move no círculo vicioso da lógica dos confrontos armados.
Intervir na teia de relações promíscuas entre agentes corruptos e grupos criminosos provoca reações de extrema violência, com propósito de esvaziar e provocar uma espiral de ações contrárias à intervenção. Se a intervenção abrir caminho para a redução da corrupção policial ela terá escapado do fracasso a que parece fadada em razão de sua motivação original. Não devemos deixar a intervenção federal com medidas importantes se converter no fermento da polarização eleitoral. O que está em jogo é a fundação sobre a qual se edifica o Estado moderno: a segurança pública. O monopólio do Estado da violência legítima voltado à garantia de direitos individuais e sociais, como é o direito básico à segurança pública, vem sendo privatizado por traficantes, policiais, políticos, milicianos, empresários etc. A declaração do Art. 144 da Constituição Federal de 1988 de que “a segurança é dever do Estado e responsabilidade de todos” significa que estamos todos no mesmo barco: se o recurso último da soberania, o emprego das Forças Armadas, não desvendar o crime político contrário à democracia e à intervenção por meio da descoberta da autoria dos mandantes e executores do assassinato de Marielle Franco, a soberania democrática estará mais abalada que nunca.
* Pedro H. Villas Boas Castelo Branco é professor no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
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