Por Luiz Gonzaga Belluzzo, na revista CartaCapital:
Quinta-feira 1º de março, a Folha de S.Paulo estampou longa entrevista com o ex-presidente Lula. Depois de marchas e contramarchas, a jornalista Mônica Bergamo pergunta: “O senhor fala: ‘Eles não me aceitam’. Quem são eles?”. Lula responde: “Ah não sei. São eles. Eu não vou ficar nominando”.
“Quem são eles?”
Em tempos idos, a pergunta suscitaria a velha perplexidade: “Agora é que são elas”. O Novo Dicionário de Expressões Idiomáticas, editado em Portugal em 2006, registra o sentido da expressão: “Exclamação com que o orador reconhece estar perante uma séria dificuldade”. Confrontados com as ambiguidades da condição humana, os da antiga tinham coragem para manifestar dúvidas a respeito da própria sabedoria.
“Quem são eles?’
Depois de reafirmar o “orgulho com seu governo, período em que os empresários mais ganharam dinheiro, os trabalhadores mais ganharam aumento de salário, em que geramos mais empregos etc.”, Lula absolveu os donos dos bancos. Assestou baterias contra “o bando de yuppies, jovens bem aquinhoados que vivem ganhando dinheiro através dos bônus, de não sei das quantas, para vender papel, sem vender um produto”.
Dos baixios de minhas insuficiências, vou arriscar uma aventura quase filosófica. “Eles” são uma construção dos processos de abstração real que comandam a vida dos homens e mulheres nas sociedades contemporâneas. As corporeidades, identidades e individualidades estão aglutinadas em um bloco de interesses classistas, visões do mundo, modos de vida, preconceitos, ancestralidades meritocráticas e escravagistas. A embolada social-ideológica carrega os senhores do dinheiro e seus yuppies.
As engrenagens impessoais da abstração real e da homogeneização das individualidades foram explicitadas nos cordéis da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti. Os cordéis manipulam os movimentos dos manifestoches da Avenida Paulista, a ignorância e grosseria das redes sociais, os acarpetados escritórios ocupados por mesas de operação das instituições financeiras, nas redações cada vez mais obedientes e menos inquietas.
Para essa turma, a eleição de Lula foi a realização do inaceitável. Pouco importa se ganharam muita grana e abasteceram generosamente seus cofres com inúteis e danosas apostas nos mercados de derivativos de câmbio e juros, sempre e cada vez mais respondendo aos movimentos dos mercados financeiros globalizados.
Minha ousadia de recorrer à quase-filosofia exige repetir as considerações de Gilles Deleuze a respeito da Filosofia e das Potências.
Gillles Deleuze, o filósofo, dizia que a “filosofia (e eu acrescentaria a economia política) é inseparável de uma cólera contra a época, mas não é uma Potência. As religiões, os Estados, o capitalismo, a ciência, o direito, a opinião e a mídia são Potências, mas não a filosofia. ... Não sendo Potência, a filosofia não pode empreender uma batalha contra as Potências: em compensação trava com elas uma guerra sem batalhas, uma guerra de guerrilhas. Não pode falar com elas, nada tem a lhes dizer, nada a comunicar, e apenas mantém conversações”.
As Potências estão desinteressadas em sufocar a crítica ou as ideias desviantes. Elas se dedicam a algo muito mais importante: fabricam os espaços da literatura, do econômico, do político, espaços completamente reacionários, pré-fabricados e massacrantes. “É bem pior que uma censura”, continua Deleuze, “pois a censura provoca efervescências subterrâneas, mas a reação quer tornar tudo isso impossível.”
Nesses espaços fabricados pelas Potências talvez seja até mesmo impossível manter conversações, porque a norma não é a crítica racional, mas o exercício da animosidade sob todos os seus disfarces, da agressividade a propósito de tudo e de todos, presentes ou ausentes, amigos ou inimigos. Não se trata de compreender o outro, mas de vigiá-lo. “Estranho ideal policialesco, o de ser a má consciência de alguém.”
Alguns senhoritos da mídia, transformando a opinião em Potência, abandonam a crítica pela vigilância e a vigilância exige convicções esféricas, maciças, impenetráveis, perfeitas. A vigilância deve adquirir aquela solidez própria da turba enfurecida, disposta ao linchamento. Só um insensato, em meio à perseguição, tentaria explicar alguma coisa a esse bando enlouquecido.
O filósofo Franco Berardi vai além e conclui que o vendaval de abstrações e imediatismos produzido pelos mercados financeiros, pela mídia e pelas tecnologias de informação capturou as energias cognitivas da sociedade. De um lado, diz ele, são ondas avassaladoras de sofrimento mental e, de outra parte, a depressão e o rebaixamento intelectual encontram remédio no fanatismo e no fascismo.
“Quem são eles?”
Em tempos idos, a pergunta suscitaria a velha perplexidade: “Agora é que são elas”. O Novo Dicionário de Expressões Idiomáticas, editado em Portugal em 2006, registra o sentido da expressão: “Exclamação com que o orador reconhece estar perante uma séria dificuldade”. Confrontados com as ambiguidades da condição humana, os da antiga tinham coragem para manifestar dúvidas a respeito da própria sabedoria.
“Quem são eles?’
Depois de reafirmar o “orgulho com seu governo, período em que os empresários mais ganharam dinheiro, os trabalhadores mais ganharam aumento de salário, em que geramos mais empregos etc.”, Lula absolveu os donos dos bancos. Assestou baterias contra “o bando de yuppies, jovens bem aquinhoados que vivem ganhando dinheiro através dos bônus, de não sei das quantas, para vender papel, sem vender um produto”.
Dos baixios de minhas insuficiências, vou arriscar uma aventura quase filosófica. “Eles” são uma construção dos processos de abstração real que comandam a vida dos homens e mulheres nas sociedades contemporâneas. As corporeidades, identidades e individualidades estão aglutinadas em um bloco de interesses classistas, visões do mundo, modos de vida, preconceitos, ancestralidades meritocráticas e escravagistas. A embolada social-ideológica carrega os senhores do dinheiro e seus yuppies.
As engrenagens impessoais da abstração real e da homogeneização das individualidades foram explicitadas nos cordéis da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti. Os cordéis manipulam os movimentos dos manifestoches da Avenida Paulista, a ignorância e grosseria das redes sociais, os acarpetados escritórios ocupados por mesas de operação das instituições financeiras, nas redações cada vez mais obedientes e menos inquietas.
Para essa turma, a eleição de Lula foi a realização do inaceitável. Pouco importa se ganharam muita grana e abasteceram generosamente seus cofres com inúteis e danosas apostas nos mercados de derivativos de câmbio e juros, sempre e cada vez mais respondendo aos movimentos dos mercados financeiros globalizados.
Minha ousadia de recorrer à quase-filosofia exige repetir as considerações de Gilles Deleuze a respeito da Filosofia e das Potências.
Gillles Deleuze, o filósofo, dizia que a “filosofia (e eu acrescentaria a economia política) é inseparável de uma cólera contra a época, mas não é uma Potência. As religiões, os Estados, o capitalismo, a ciência, o direito, a opinião e a mídia são Potências, mas não a filosofia. ... Não sendo Potência, a filosofia não pode empreender uma batalha contra as Potências: em compensação trava com elas uma guerra sem batalhas, uma guerra de guerrilhas. Não pode falar com elas, nada tem a lhes dizer, nada a comunicar, e apenas mantém conversações”.
As Potências estão desinteressadas em sufocar a crítica ou as ideias desviantes. Elas se dedicam a algo muito mais importante: fabricam os espaços da literatura, do econômico, do político, espaços completamente reacionários, pré-fabricados e massacrantes. “É bem pior que uma censura”, continua Deleuze, “pois a censura provoca efervescências subterrâneas, mas a reação quer tornar tudo isso impossível.”
Nesses espaços fabricados pelas Potências talvez seja até mesmo impossível manter conversações, porque a norma não é a crítica racional, mas o exercício da animosidade sob todos os seus disfarces, da agressividade a propósito de tudo e de todos, presentes ou ausentes, amigos ou inimigos. Não se trata de compreender o outro, mas de vigiá-lo. “Estranho ideal policialesco, o de ser a má consciência de alguém.”
Alguns senhoritos da mídia, transformando a opinião em Potência, abandonam a crítica pela vigilância e a vigilância exige convicções esféricas, maciças, impenetráveis, perfeitas. A vigilância deve adquirir aquela solidez própria da turba enfurecida, disposta ao linchamento. Só um insensato, em meio à perseguição, tentaria explicar alguma coisa a esse bando enlouquecido.
O filósofo Franco Berardi vai além e conclui que o vendaval de abstrações e imediatismos produzido pelos mercados financeiros, pela mídia e pelas tecnologias de informação capturou as energias cognitivas da sociedade. De um lado, diz ele, são ondas avassaladoras de sofrimento mental e, de outra parte, a depressão e o rebaixamento intelectual encontram remédio no fanatismo e no fascismo.
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