Por André Barrocal, na revista CartaCapital:
Fernando Segóvia, o delegado degolado do comando da Polícia Federal há menos de um mês, será adido policial na embaixada brasileira na Itália e só espera o aval daquele país para assumir. É uma recompensa de Michel Temer, que não se importou de passar por cima de normas diplomáticas e da PF. Merecido. Em três meses no posto, Segóvia agiu feito advogado presidencial na investigação que atazana o mandatário devido a um decreto com mimos ao setor portuário.
Em Brasília, há quem aposte ser difícil de Temer escapar de outra denúncia criminal. A aposta depende, porém, da caneta de outro personagem devedor do cargo ao peemedebista, a enigmática Raquel Dodge, única pessoa no País autorizada a acusar o presidente na Justiça. E aí começam as desconfianças. Uma história que também teria um prêmio no fim do arco-íris.
Na Procuradoria-Geral da República, corre em certos gabinetes que Temer teria feito chegar a Raquel, a discreta chefe da PGR, o recado de que topa indicá-la ao Supremo Tribunal Federal (STF). Seria um jeito de conseguir docilidade dela. Uma pessoa conhecedora da procuradora-geral acha que ela tem ambições de selar a carreira sentada na corte.
Até o fim do governo, em dezembro, nenhum dos 11 juízes se aposentará no STF devido à idade (75 anos). Mas a atual comandante do tribunal, Cármen Lúcia, declarou certa vez em Minas Gerais, sua terra natal, que gostaria de voltar a dar aulas em 2018. Teria planos de sair de cena no fim de seu mandato à frente da corte, em setembro?
No próximo governo, surgirão duas vagas. Celso de Mello pendura a toga em 2020 e Marco Aurélio Mello, em 2021. Temer quer ter influência sobre seu sucessor no Palácio do Planalto, pois precisará encarar dois processos a partir de 2019, nascidos do escândalo JBS/Friboi. Foi por isso que decretou a intervenção federal na segurança do Rio e botou o Exército na missão, esperança de melhorar a popularidade e ser protagonista na eleição.
Em troca do apoio, poderia barganhar com algum candidato, como o tucano Geraldo Alckmin, que caberia a ele, Temer, indicar um nome ao STF. A única escolha que fez para a Corte, um acaso resultado da morte de Teori Zavascki, foi de um ex-secretário de Alckmin, Alexandre de Moraes.
Nas cercanias da “xerife”, há quem não leve a ideia a sério. Raquel está há seis meses no cargo, completados no domingo 18, tem ainda um ano e meio ali, não haveria razão para deixar sua casa. De qualquer forma, a cronologia recente a respeito da investigação do decreto dos portos alimenta suspeitas de proteção da procuradora-geral a Temer.
Em dezembro, o delegado do inquérito, Cleyber Malta Lopes, decidiu espiar as contas bancárias, os telefonemas e os dados fiscais dos investigados, inclusive os de Temer, em busca de pistas. A dúvida desde o início do inquérito é se houve grana por trás do decreto, um presentão presidencial a um setor de empresas amigas de Temer, como a Rodrimar, do empresário Antônio Celso Grecco.
Lopes propôs a linha investigatória ao juiz Luís Roberto Barroso, que cuida do processo no Supremo. Caberia a Barroso quebrar os sigilos. Em 23 de fevereiro, O Globo noticiou que até então Raquel não tinha dito ao juiz se concordava. Em geral, a Procuradoria endossa perante a Justiça pedidos do gênero. A reportagem parecia uma forma de Lopes reclamar do silêncio.
Em resposta, a Procuradoria informou um dia depois que tinha pedido várias quebras de sigilo em dezembro. Detalhe: não contou o nome dos alvos. Em 27 de fevereiro, O Globo relatou que Temer não estava na mira da PGR. A “xerife” ficou exposta. Parecia realmente interessada em poupar o padrinho de sua indicação. O que os membros de Procuradoria achariam? E a mídia?
E aí, de repente, a surpresa. No mesmo dia, Raquel entrou no Supremo com a proposta de incluir Temer na lista de investigados de um inquérito nascido de delações de criminosos confessos da Odebrecht. Um que trata de um nebuloso jantar no Palácio do Jaburu, a residência oficial do vice-presidente, em maio de 2014. Temer era o anfitrião do repasto, do qual resultaram 10 milhões de reais em dinheiro sujo da empreiteira dados a candidatos do PMDB na eleição daquele ano.
Quando o antecessor de Raquel, Rodrigo Janot, tinha requerido a investigação ao STF, em março de 2017, deixara Temer de fora. É que pela Constituição um presidente só pode ser responsabilizado por atos praticados no cargo. Pelo que fez antes, não. No meio jurídico, controvérsia. Há quem ache possível investigar, coletar provas, só não valeria pedir julgamento, algo que teria de esperar o mandatário entregar a faixa.
Raquel aderiu a essa última corrente. Não que seja uma visão nova dela, ou oposta ao que achava. Durante a eleição interna na PGR para o cargo de “xerife”, ela participou no Rio, em 19 de junho de 2017, de um debate com concorrentes e alguém na plateia perguntou-lhe a opinião. Sua resposta: pode investigar, sim.
O problema é que, ao sacar o argumento e acionar o Supremo repentinamente, a procuradora-geral deixou no ar a ideia de criar uma cortina de fumaça contra a impressão de blindar o presidente. Agiu bem no meio da queda de braço com a PF sobre sigilos de Temer.
Na PGR há quem tenha visto “jogo de cena”. Em vez de apostar na investigação portuária, que anda mais depressa e na qual existem elementos mais concretos, como grampos telefônicos do “homem da mala”, Rodrigo Rocha Loures, Raquel embarcou numa tese que não se sabe se vai prosperar.
De qualquer forma, o presidente esperneia. Em 8 de março, a chefe da Procuradoria recebeu uma carta dele. Algo a ver com o Dia Internacional da Mulher? Nada, nem um pio a respeito para com a primeira mulher no cargo. Era reclamação, embora discreta. Com a carta, Raquel recebeu um parecer encomendado por Temer ao advogado Ives Gandra Martins, a contestar a investigação do presidente por atos pré-mandato.
O juiz do caso “jantar no Jaburu” ignorou a polêmica. Edson Fachin botou Temer para dentro do inquérito, agora o mandatário está ao lado do seu secretário-geral da Presidência, Moreira Franco, e do chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha. Um comentário público feito por este último após a quebra do sigilo bancário presidencial por Barroso adiciona uma pitada de dúvida quanto aos propósitos de Raquel em relação a Temer. “O governo recebeu com surpresa (a notícia), porque é uma decisão singular, inédita, não tínhamos ainda a quebra de sigilo de um presidente da República no exercício do mandato. Ela é singular também porque não foi um requerimento da procuradora-geral da República, Raquel Dodge.”
Barroso está decidido a infernizar Temer. O motivo? Basta lembrar sua reação ante uma foto de peemedebistas de mãos ao alto a celebrar, em março de 2016, a ruptura com Dilma Rousseff e o mergulho do PMDB no impeachment. “Meu Deus do céu! Essa é a nossa alternativa de poder.” Foi sua atuação que levou à degola de Segóvia na PF. Raquel que se cuide se tiver planos de agir feito advogado presidencial.
Em 19 de dezembro, o juiz prorrogou por 60 dias o inquérito dos portos sem ter ouvido a opinião da PGR. Idem para a quebra do sigilo bancário de Temer, um despacho de 27 de fevereiro, no calor do atrito entre a PF e a PGR, embora a notícia só tenha vindo a público em 5 de março. Na antevéspera do despacho, Barroso telefonou para Lopes para saber sobre o aparente atrito dele com Raquel. “O Janot estava em guerra com o Temer, a Raquel é evidente que não está”, diz um policial federal.
Pelo que se ouve na Procuradoria, a explicação para Raquel não ter apostado na quebra do sigilo bancário de Temer é que desse mato não sai coelho. Se o presidente, um político e advogado de longa vida pública, tiver aprontado alguma, não teria usado as próprias contas. Será?
“Nunca subestime a burrice humana. Um depósito de 20 mil do coronel Lima na conta do Temer complica tudo”, afirma um deputado advogado, de oposição ao governo. João Batista Lima Filho, o coronel Lima, está metido na investigação dos portos, um velho amigo do presidente que há meses alega problemas de saúde para não depor à PF.
Também pelo que se escuta na PGR, Raquel atribui o bate-cabeça com a PF a Barroso, que não teria deixado a Procuradoria a par das iniciativas dos federais e vice-versa. Só em 22 de fevereiro ela tomou conhecimento da linha investigatória do delegado Lopes, aquela que inclui quebras de sigilo.
Era noite de uma quinta-feira, a “xerife” estava em Goiás, quando os autos do processo lhe foram enviados pelo Supremo. Ela devolveu a papelada a Barroso na segunda 26, a dizer por escrito que “as novas diligências (da PF) serão analisadas e poderão ensejar eventuais pedidos complementares deste órgão ministerial”, uma tentativa de dar satisfação. E cutucou Barroso, por ter sido ignorada na prorrogação do inquérito em dezembro e dessa maneira ficar sem saber a linha e o estágio das investigações.
Apesar das faíscas, até que Raquel e Barroso já fizeram uma dobradinha anti-Temer, para irritação do impopular mandatário. O juiz decidiu reescrever o indulto natalino presidencial decretado em dezembro. O Supremo se meteu no assunto, pois foi provocado pela procuradora-geral, com uma ação logo após o indulto.
O decreto favoreceu condenados em geral, como é práxis. Tinha, porém, um benefício para corruptos que Raquel achou demais, um mau exemplo em tempos de Operação Lava Jato. A ação da PGR ficou aos cuidados de Barroso, que tirou a turma do colarinho-branco da lista de indultados e aumentou de um quinto para um terço o tempo mínimo de cumprimento de pena para os condenados terem direito ao perdão.
A decisão foi conhecida na segunda-feira 12 e levou o Palácio do Planalto à loucura. O ministro Carlos Marun, da Secretaria de Governo, famoso pela paixão na defesa de aliados, vide a cassação do condenado Eduardo Cunha, disse que Barroso “legislou” e não é papel de juiz fazer isso. Mesma visão do Instituto de Garantias Penais, que entrou com um habeas corpus no STF em prol de todos os condenados que tirariam proveito do indulto original.
Marun também declarou que o inquérito dos portos é “desperdício de dinheiro público” e promete reassumir o mandato de deputado para pedir o impeachment de Barroso. Guerra à vista do Planalto contra o juiz, alvo de queixas de Temer a Cármen Lúcia durante uma espantosa reunião da dupla na casa dela no sábado 10. Tão espantosa, que Rodriguinho, apelido de Janot perante sua ex-professora Carminha, não se conteve e tascou no Twitter: “perplexidade” diante do “convescote”.
A iniciativa de Raquel sobre o indulto é um dos destaques dos primeiros seis meses de gestão dela, na opinião de José Robalinho Cavalcanti, presidente da ANPR, a Associação Nacional dos Procuradores da República.
O caso é um exemplo do enigmatismo da “xerife”. Raquel às vezes pega no pé do governo. Em dezembro, denunciou à Justiça um ex-ministro de Temer, Geddel Vieira Lima, como chefe de quadrilha, no caso dos incríveis 51 milhões de reais achados na Bahia e até hoje de origem não sabida. Embora nesse episódio haja quem tenha farejado proteção a Temer. “Nunca soube que o Geddel era o chefe. Para mim, o chefe dele era outro. Era ouTro”, escreveu na época, no Twitter, o senador Renan Calheiros, do PMDB.
Em outubro, Raquel fez barulho contra uma portaria do Ministério do Trabalho que tinha como único objetivo facilitar o trabalho escravo. A pressão contribuiu para a suspensão da portaria pela juíza Rosa Weber, do Supremo, em uma ação movida pelo partido Rede. É um assunto de interesse antigo da procuradora-geral, atuante com direitos humanos ao longo da carreira.
No comando da PGR, tem tentado dar mais visibilidade a esses temas. Foi à Costa Rica para uma reunião da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Londres para debater escravidão moderna. Em Brasília, promoveu no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) um seminário Brasil-União Europeia sobre violência doméstica e apoia um evento paralelo ao 8º Fórum Mundial da Água, que ocorre em Brasília, por defender que a água não pode ser privatizada.
Em fevereiro, arrancou de Temer um decreto ao seu gosto a respeito de refugiados, dobradinha com o ministro dos Direitos Humanos, Gustavo do Vale Rocha, contra o da Justiça, Torquato Jardim. Rocha, aliás, é do CNMP dirigido por Raquel. Não seria indesejável um membro do governo dentro de uma instância de uma corporação que fiscaliza o poder?
A maior exposição temática da PGR não é surpresa. Foi com a promessa de dar mais peso à defesa dos direitos sociais que Raquel conseguiu ser eleita para a lista tríplice da categoria de onde sairia o chefe da Procuradoria. Há quem diga que Temer a escolheu por ser o mau menor na lista. Nicolao Dino, o mais votado, era o candidato de Janot. O terceiro, Mario Bonsaglia, é descrito por um colega como de um perfil avesso a PMDB e PSDB.
Um mês antes de assumir, Raquel passou uma hora à noite com Temer no Jaburu, alegadamente a tratar da posse. “As conversas que eles tiveram naquela época quebraram o gelo. O Temer é sedutor no trato, inteligente. Depois de uma convivência dessas, é mais difícil de acreditar em certas coisas sobre uma pessoa”, comenta um deputado do PMDB, ao falar da impressão de Raquel proteger o presidente.
No Congresso, tem havido dificuldade para decifrar a procuradora-geral. “Ficou uma dubiedade no caso do sigilo, ela ainda está sob observação para nossa bancada”, diz o líder do PSOL na Câmara, o paulista Ivan Valente. “No caso do sigilo, ela ajudou a tirar o governo do foco. Para a classe política, ela tem sido boa até agora”, afirma outro parlamentar.
Consequências naturais da atuação de uma PGR que, na comparação com o antecessor, dá ao combate à corrupção menos peso – e menos declarações fortes. Embora tenha adotado até aqui uma postura punitivista, vide sua tentativa de salvar a possibilidade de prisões após a segunda instância, uma contradição com sua retórica pró-direitos humanos.
Raquel ainda não fechou nenhuma delação com investigados, motivo para Janot ter feito um comentário maroto no Twitter: “Vai ser assim?” O estoque de 185 inquéritos carimbados de “Lava Jato” que erla encontrou na Procuradoria baixou a 124 no início de março. Muita coisa foi arquivada a seu pedido.
É o caso de uma investigação do senador tucano José Serra por caixa 2 na eleição de 2010, instaurada em agosto de 2017 por obra da delação da JBS/Friboi. A “xerife” acha que o crime prescreveu, propôs ao STF em janeiro o arquivamento, e a juíza Weber acaba de dar o assunto por encerrado.
É o tipo de situação que inspira suspeitas na Procuradoria quanto a uma paixão enrustida de Raquel pelo PSDB. E também na PF. Nos dois órgãos, há quem diga: como saber qual era o crime em questão, e se este prescreveu, sem investigar primeiro?
CartaCapital mostrou recentemente o inusual comportamento do Ministério Público em um inquérito ainda mais cabeludo para Serra e o PSDB, um em que acabam de aparecer 113 milhões de reais escondidos na Suíça por um prestador de serviços clandestinos aos tucanos, Paulo “Preto”.
Se tem mesmo a pretensão de proteger Temer e os tucanos, não será muito fácil para Raquel. Ela vai ter de manter as aparências. A carreira de procurador e promotor é dominada por pessoas que apontam o combate à corrupção como a missão principal da categoria, conforme a pesquisa Ministério Público: Guardião da democracia brasileira?, feita entre 2015 e 2016 pela Universidade Candido Mendes.
Combate ao abuso policial e defesa de direitos do cidadão, ações que Raquel supostamente quer reforçar, não despertam o mesmo apelo. O MP, diz a pesquisa, é “fortemente elitizado”, com barreiras à entrada de gente mais pobre, daí que seus membros têm estado cada vez mais fechados em gabinetes e distante das ruas.
Assim fica fácil entender o protesto de procuradores na quinta-feira 15 em seis capitais, juntamente com juízes federais, por melhores salários e contra o fim do auxílio-moradia, reação ao iminente julgamento da mordomia pelo STF.
“O Supremo pode acabar com o auxílio, que nós continuaremos com manifestações”, afirma Robalinho, da ANPR, a reclamar de 40% de perdas inflacionárias desde 2006. Um cálculo que, se correto, não tirou as duas carreiras da elite do 1% mais rico da população brasileira. Na PGR cochicha-se que Raquel teria acertado com Cármen Lúcia uma forma de salvar o auxílio de 4,3 mil reais mensais dos procuradores. Será?
É mais uma para a coleção de desconfianças sobre a “xerife”.
Em Brasília, há quem aposte ser difícil de Temer escapar de outra denúncia criminal. A aposta depende, porém, da caneta de outro personagem devedor do cargo ao peemedebista, a enigmática Raquel Dodge, única pessoa no País autorizada a acusar o presidente na Justiça. E aí começam as desconfianças. Uma história que também teria um prêmio no fim do arco-íris.
Na Procuradoria-Geral da República, corre em certos gabinetes que Temer teria feito chegar a Raquel, a discreta chefe da PGR, o recado de que topa indicá-la ao Supremo Tribunal Federal (STF). Seria um jeito de conseguir docilidade dela. Uma pessoa conhecedora da procuradora-geral acha que ela tem ambições de selar a carreira sentada na corte.
Até o fim do governo, em dezembro, nenhum dos 11 juízes se aposentará no STF devido à idade (75 anos). Mas a atual comandante do tribunal, Cármen Lúcia, declarou certa vez em Minas Gerais, sua terra natal, que gostaria de voltar a dar aulas em 2018. Teria planos de sair de cena no fim de seu mandato à frente da corte, em setembro?
No próximo governo, surgirão duas vagas. Celso de Mello pendura a toga em 2020 e Marco Aurélio Mello, em 2021. Temer quer ter influência sobre seu sucessor no Palácio do Planalto, pois precisará encarar dois processos a partir de 2019, nascidos do escândalo JBS/Friboi. Foi por isso que decretou a intervenção federal na segurança do Rio e botou o Exército na missão, esperança de melhorar a popularidade e ser protagonista na eleição.
Em troca do apoio, poderia barganhar com algum candidato, como o tucano Geraldo Alckmin, que caberia a ele, Temer, indicar um nome ao STF. A única escolha que fez para a Corte, um acaso resultado da morte de Teori Zavascki, foi de um ex-secretário de Alckmin, Alexandre de Moraes.
Nas cercanias da “xerife”, há quem não leve a ideia a sério. Raquel está há seis meses no cargo, completados no domingo 18, tem ainda um ano e meio ali, não haveria razão para deixar sua casa. De qualquer forma, a cronologia recente a respeito da investigação do decreto dos portos alimenta suspeitas de proteção da procuradora-geral a Temer.
Em dezembro, o delegado do inquérito, Cleyber Malta Lopes, decidiu espiar as contas bancárias, os telefonemas e os dados fiscais dos investigados, inclusive os de Temer, em busca de pistas. A dúvida desde o início do inquérito é se houve grana por trás do decreto, um presentão presidencial a um setor de empresas amigas de Temer, como a Rodrimar, do empresário Antônio Celso Grecco.
Lopes propôs a linha investigatória ao juiz Luís Roberto Barroso, que cuida do processo no Supremo. Caberia a Barroso quebrar os sigilos. Em 23 de fevereiro, O Globo noticiou que até então Raquel não tinha dito ao juiz se concordava. Em geral, a Procuradoria endossa perante a Justiça pedidos do gênero. A reportagem parecia uma forma de Lopes reclamar do silêncio.
Em resposta, a Procuradoria informou um dia depois que tinha pedido várias quebras de sigilo em dezembro. Detalhe: não contou o nome dos alvos. Em 27 de fevereiro, O Globo relatou que Temer não estava na mira da PGR. A “xerife” ficou exposta. Parecia realmente interessada em poupar o padrinho de sua indicação. O que os membros de Procuradoria achariam? E a mídia?
E aí, de repente, a surpresa. No mesmo dia, Raquel entrou no Supremo com a proposta de incluir Temer na lista de investigados de um inquérito nascido de delações de criminosos confessos da Odebrecht. Um que trata de um nebuloso jantar no Palácio do Jaburu, a residência oficial do vice-presidente, em maio de 2014. Temer era o anfitrião do repasto, do qual resultaram 10 milhões de reais em dinheiro sujo da empreiteira dados a candidatos do PMDB na eleição daquele ano.
Quando o antecessor de Raquel, Rodrigo Janot, tinha requerido a investigação ao STF, em março de 2017, deixara Temer de fora. É que pela Constituição um presidente só pode ser responsabilizado por atos praticados no cargo. Pelo que fez antes, não. No meio jurídico, controvérsia. Há quem ache possível investigar, coletar provas, só não valeria pedir julgamento, algo que teria de esperar o mandatário entregar a faixa.
Raquel aderiu a essa última corrente. Não que seja uma visão nova dela, ou oposta ao que achava. Durante a eleição interna na PGR para o cargo de “xerife”, ela participou no Rio, em 19 de junho de 2017, de um debate com concorrentes e alguém na plateia perguntou-lhe a opinião. Sua resposta: pode investigar, sim.
O problema é que, ao sacar o argumento e acionar o Supremo repentinamente, a procuradora-geral deixou no ar a ideia de criar uma cortina de fumaça contra a impressão de blindar o presidente. Agiu bem no meio da queda de braço com a PF sobre sigilos de Temer.
Na PGR há quem tenha visto “jogo de cena”. Em vez de apostar na investigação portuária, que anda mais depressa e na qual existem elementos mais concretos, como grampos telefônicos do “homem da mala”, Rodrigo Rocha Loures, Raquel embarcou numa tese que não se sabe se vai prosperar.
De qualquer forma, o presidente esperneia. Em 8 de março, a chefe da Procuradoria recebeu uma carta dele. Algo a ver com o Dia Internacional da Mulher? Nada, nem um pio a respeito para com a primeira mulher no cargo. Era reclamação, embora discreta. Com a carta, Raquel recebeu um parecer encomendado por Temer ao advogado Ives Gandra Martins, a contestar a investigação do presidente por atos pré-mandato.
O juiz do caso “jantar no Jaburu” ignorou a polêmica. Edson Fachin botou Temer para dentro do inquérito, agora o mandatário está ao lado do seu secretário-geral da Presidência, Moreira Franco, e do chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha. Um comentário público feito por este último após a quebra do sigilo bancário presidencial por Barroso adiciona uma pitada de dúvida quanto aos propósitos de Raquel em relação a Temer. “O governo recebeu com surpresa (a notícia), porque é uma decisão singular, inédita, não tínhamos ainda a quebra de sigilo de um presidente da República no exercício do mandato. Ela é singular também porque não foi um requerimento da procuradora-geral da República, Raquel Dodge.”
Barroso está decidido a infernizar Temer. O motivo? Basta lembrar sua reação ante uma foto de peemedebistas de mãos ao alto a celebrar, em março de 2016, a ruptura com Dilma Rousseff e o mergulho do PMDB no impeachment. “Meu Deus do céu! Essa é a nossa alternativa de poder.” Foi sua atuação que levou à degola de Segóvia na PF. Raquel que se cuide se tiver planos de agir feito advogado presidencial.
Em 19 de dezembro, o juiz prorrogou por 60 dias o inquérito dos portos sem ter ouvido a opinião da PGR. Idem para a quebra do sigilo bancário de Temer, um despacho de 27 de fevereiro, no calor do atrito entre a PF e a PGR, embora a notícia só tenha vindo a público em 5 de março. Na antevéspera do despacho, Barroso telefonou para Lopes para saber sobre o aparente atrito dele com Raquel. “O Janot estava em guerra com o Temer, a Raquel é evidente que não está”, diz um policial federal.
Pelo que se ouve na Procuradoria, a explicação para Raquel não ter apostado na quebra do sigilo bancário de Temer é que desse mato não sai coelho. Se o presidente, um político e advogado de longa vida pública, tiver aprontado alguma, não teria usado as próprias contas. Será?
“Nunca subestime a burrice humana. Um depósito de 20 mil do coronel Lima na conta do Temer complica tudo”, afirma um deputado advogado, de oposição ao governo. João Batista Lima Filho, o coronel Lima, está metido na investigação dos portos, um velho amigo do presidente que há meses alega problemas de saúde para não depor à PF.
Também pelo que se escuta na PGR, Raquel atribui o bate-cabeça com a PF a Barroso, que não teria deixado a Procuradoria a par das iniciativas dos federais e vice-versa. Só em 22 de fevereiro ela tomou conhecimento da linha investigatória do delegado Lopes, aquela que inclui quebras de sigilo.
Era noite de uma quinta-feira, a “xerife” estava em Goiás, quando os autos do processo lhe foram enviados pelo Supremo. Ela devolveu a papelada a Barroso na segunda 26, a dizer por escrito que “as novas diligências (da PF) serão analisadas e poderão ensejar eventuais pedidos complementares deste órgão ministerial”, uma tentativa de dar satisfação. E cutucou Barroso, por ter sido ignorada na prorrogação do inquérito em dezembro e dessa maneira ficar sem saber a linha e o estágio das investigações.
Apesar das faíscas, até que Raquel e Barroso já fizeram uma dobradinha anti-Temer, para irritação do impopular mandatário. O juiz decidiu reescrever o indulto natalino presidencial decretado em dezembro. O Supremo se meteu no assunto, pois foi provocado pela procuradora-geral, com uma ação logo após o indulto.
O decreto favoreceu condenados em geral, como é práxis. Tinha, porém, um benefício para corruptos que Raquel achou demais, um mau exemplo em tempos de Operação Lava Jato. A ação da PGR ficou aos cuidados de Barroso, que tirou a turma do colarinho-branco da lista de indultados e aumentou de um quinto para um terço o tempo mínimo de cumprimento de pena para os condenados terem direito ao perdão.
A decisão foi conhecida na segunda-feira 12 e levou o Palácio do Planalto à loucura. O ministro Carlos Marun, da Secretaria de Governo, famoso pela paixão na defesa de aliados, vide a cassação do condenado Eduardo Cunha, disse que Barroso “legislou” e não é papel de juiz fazer isso. Mesma visão do Instituto de Garantias Penais, que entrou com um habeas corpus no STF em prol de todos os condenados que tirariam proveito do indulto original.
Marun também declarou que o inquérito dos portos é “desperdício de dinheiro público” e promete reassumir o mandato de deputado para pedir o impeachment de Barroso. Guerra à vista do Planalto contra o juiz, alvo de queixas de Temer a Cármen Lúcia durante uma espantosa reunião da dupla na casa dela no sábado 10. Tão espantosa, que Rodriguinho, apelido de Janot perante sua ex-professora Carminha, não se conteve e tascou no Twitter: “perplexidade” diante do “convescote”.
A iniciativa de Raquel sobre o indulto é um dos destaques dos primeiros seis meses de gestão dela, na opinião de José Robalinho Cavalcanti, presidente da ANPR, a Associação Nacional dos Procuradores da República.
O caso é um exemplo do enigmatismo da “xerife”. Raquel às vezes pega no pé do governo. Em dezembro, denunciou à Justiça um ex-ministro de Temer, Geddel Vieira Lima, como chefe de quadrilha, no caso dos incríveis 51 milhões de reais achados na Bahia e até hoje de origem não sabida. Embora nesse episódio haja quem tenha farejado proteção a Temer. “Nunca soube que o Geddel era o chefe. Para mim, o chefe dele era outro. Era ouTro”, escreveu na época, no Twitter, o senador Renan Calheiros, do PMDB.
Em outubro, Raquel fez barulho contra uma portaria do Ministério do Trabalho que tinha como único objetivo facilitar o trabalho escravo. A pressão contribuiu para a suspensão da portaria pela juíza Rosa Weber, do Supremo, em uma ação movida pelo partido Rede. É um assunto de interesse antigo da procuradora-geral, atuante com direitos humanos ao longo da carreira.
No comando da PGR, tem tentado dar mais visibilidade a esses temas. Foi à Costa Rica para uma reunião da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Londres para debater escravidão moderna. Em Brasília, promoveu no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) um seminário Brasil-União Europeia sobre violência doméstica e apoia um evento paralelo ao 8º Fórum Mundial da Água, que ocorre em Brasília, por defender que a água não pode ser privatizada.
Em fevereiro, arrancou de Temer um decreto ao seu gosto a respeito de refugiados, dobradinha com o ministro dos Direitos Humanos, Gustavo do Vale Rocha, contra o da Justiça, Torquato Jardim. Rocha, aliás, é do CNMP dirigido por Raquel. Não seria indesejável um membro do governo dentro de uma instância de uma corporação que fiscaliza o poder?
A maior exposição temática da PGR não é surpresa. Foi com a promessa de dar mais peso à defesa dos direitos sociais que Raquel conseguiu ser eleita para a lista tríplice da categoria de onde sairia o chefe da Procuradoria. Há quem diga que Temer a escolheu por ser o mau menor na lista. Nicolao Dino, o mais votado, era o candidato de Janot. O terceiro, Mario Bonsaglia, é descrito por um colega como de um perfil avesso a PMDB e PSDB.
Um mês antes de assumir, Raquel passou uma hora à noite com Temer no Jaburu, alegadamente a tratar da posse. “As conversas que eles tiveram naquela época quebraram o gelo. O Temer é sedutor no trato, inteligente. Depois de uma convivência dessas, é mais difícil de acreditar em certas coisas sobre uma pessoa”, comenta um deputado do PMDB, ao falar da impressão de Raquel proteger o presidente.
No Congresso, tem havido dificuldade para decifrar a procuradora-geral. “Ficou uma dubiedade no caso do sigilo, ela ainda está sob observação para nossa bancada”, diz o líder do PSOL na Câmara, o paulista Ivan Valente. “No caso do sigilo, ela ajudou a tirar o governo do foco. Para a classe política, ela tem sido boa até agora”, afirma outro parlamentar.
Consequências naturais da atuação de uma PGR que, na comparação com o antecessor, dá ao combate à corrupção menos peso – e menos declarações fortes. Embora tenha adotado até aqui uma postura punitivista, vide sua tentativa de salvar a possibilidade de prisões após a segunda instância, uma contradição com sua retórica pró-direitos humanos.
Raquel ainda não fechou nenhuma delação com investigados, motivo para Janot ter feito um comentário maroto no Twitter: “Vai ser assim?” O estoque de 185 inquéritos carimbados de “Lava Jato” que erla encontrou na Procuradoria baixou a 124 no início de março. Muita coisa foi arquivada a seu pedido.
É o caso de uma investigação do senador tucano José Serra por caixa 2 na eleição de 2010, instaurada em agosto de 2017 por obra da delação da JBS/Friboi. A “xerife” acha que o crime prescreveu, propôs ao STF em janeiro o arquivamento, e a juíza Weber acaba de dar o assunto por encerrado.
É o tipo de situação que inspira suspeitas na Procuradoria quanto a uma paixão enrustida de Raquel pelo PSDB. E também na PF. Nos dois órgãos, há quem diga: como saber qual era o crime em questão, e se este prescreveu, sem investigar primeiro?
CartaCapital mostrou recentemente o inusual comportamento do Ministério Público em um inquérito ainda mais cabeludo para Serra e o PSDB, um em que acabam de aparecer 113 milhões de reais escondidos na Suíça por um prestador de serviços clandestinos aos tucanos, Paulo “Preto”.
Se tem mesmo a pretensão de proteger Temer e os tucanos, não será muito fácil para Raquel. Ela vai ter de manter as aparências. A carreira de procurador e promotor é dominada por pessoas que apontam o combate à corrupção como a missão principal da categoria, conforme a pesquisa Ministério Público: Guardião da democracia brasileira?, feita entre 2015 e 2016 pela Universidade Candido Mendes.
Combate ao abuso policial e defesa de direitos do cidadão, ações que Raquel supostamente quer reforçar, não despertam o mesmo apelo. O MP, diz a pesquisa, é “fortemente elitizado”, com barreiras à entrada de gente mais pobre, daí que seus membros têm estado cada vez mais fechados em gabinetes e distante das ruas.
Assim fica fácil entender o protesto de procuradores na quinta-feira 15 em seis capitais, juntamente com juízes federais, por melhores salários e contra o fim do auxílio-moradia, reação ao iminente julgamento da mordomia pelo STF.
“O Supremo pode acabar com o auxílio, que nós continuaremos com manifestações”, afirma Robalinho, da ANPR, a reclamar de 40% de perdas inflacionárias desde 2006. Um cálculo que, se correto, não tirou as duas carreiras da elite do 1% mais rico da população brasileira. Na PGR cochicha-se que Raquel teria acertado com Cármen Lúcia uma forma de salvar o auxílio de 4,3 mil reais mensais dos procuradores. Será?
É mais uma para a coleção de desconfianças sobre a “xerife”.
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