A narrativa golpista, a despeito da força inicial demonstrada na legitimação do golpe, entrou em um processo de crise explicitado pela impopularidade das lideranças golpistas, pela rejeição das reformas neoliberais e, principalmente,pela forte ascensão de Lula nas pesquisas, indicando, inclusive, a possibilidade de uma vitória inédita no primeiro turno das eleições presidenciais. Um contradiscurso, fruto de certo fortalecimento e da atuação da mídia alternativa, emergiu e se mostrou capaz de desnudar, pelo menos em parte, o deliberado enviesamento da cobertura da imprensa corporativa. Esse contradiscurso, apesar de um alcance ainda pequeno da mídia alternativa diante da absurda concentração midiática, sobretudo da TV Globo, tem sido capaz de abalar a credibilidade da narrativa golpista. Sobretudo, ele se mostra mais coerente e muito mais sensível à experiência sofrida pela maioria da população brasileira após o golpe parlamentar de 2016.
Dados recentes de uma pesquisa divulgada pela Vox Populi, no dia 2 de fevereiro de 2018, confirmam essa tendência de crise da narrativa golpista, indicando uma forte deslegitimação das autoridades do judiciário empenhadas em condenar Lula e impugnar a sua candidatura à presidência. Dos entrevistados, 56% consideram o julgamento de Lula político, contra 35% que o consideram realizado dentro dos marcos jurídicos normais;54% dizem que ele deveria poder ser candidato a presidente (contra 37%), e 49% avaliam que ele não deve ser preso (contra 36%). E o mais impressionante: 62%, quase dois terços, opinaram que seus governos tiveram mais acertos do que erros, contra 29% que têm uma opinião contrária.
A pesquisa do Instituto Ipsos, realizada no mês de fevereiro, antes da intervenção militar no Rio, indica esse mesmo cenário: o juiz Moro apareceu, pela primeira vez, com um índice de rejeição de 51%, contra apenas 39% de aprovação. A presidente do STF, Carmem Lúcia, apresentou um índice de 49% de rejeição e de apenas 23% de aprovação. Segundo o diretor do Instituto, a aprovação de 42% a Lula seria ainda fortemente superior à de Alckmin (20%) e de Bolsonaro (24%), tendo uma rejeição de 56%, portanto, menor que a deles: Alckmin teria uma rejeição de 68%, e Bolsonaro, já de 58%.
No entanto, esse conjunto de elementos, embora muito expressivo, não significa o aniquilamento dessa narrativa. Com sua força midiática, bem estruturada e legitimada por agrupamentos à direita, a narrativa golpista age, no momento, no sentido de retomar sua credibilidade. A jogada mais clara é a inserção de um novo e potente repertório no noticiário: o combate à violência e à criminalidade. Para que esse novo repertório se legitime, há um alinhamento entre as forças/grupos dominantes (Mídia – Judiciário – Forças do establishment político mais conservadoras) em favor de uma visão de mundo dominante, com a conformação e consolidação de uma cadeia de reciprocidade que se retroalimenta e define o que importa e o que não importa na notícia sob esse enfoque, criando uma agenda e determinando fortemente o que se discute.
Como demonstra o tom dos telejornais - sobretudo o Jornal Nacional -, a Rede Globo retomou a aliança abalada, mas nunca perdida, com Michel Temer. A militarização emerge, nesse momento, como a ação salvadora capaz de resgatar uma população refém da violência. Já no carnaval, esse foi o repertório que dominou a cobertura, ressaltando uma situação extrema e sem controle. Nossa relação com o real é mediada pelos meios de comunicação, portanto, nossa percepção de certos fenômenos (como a violência e suas manifestações) é dada pela cobertura feita por esses meios.
Pois bem, a cobertura do Jornal Nacional no carnaval trouxe ao primeiro plano esse viés de violência extrema e sem controle, apesar de dados de fontes respeitáveis mostrarem que não, que aquele não foi o carnaval mais violento do Rio de Janeiro. No entanto, isso pouco importa, pois o que domina é a impressão que se tem e que se sobrepõe à experiência concreta. E a imprensa corporativa, representada aqui pelo Jornal Nacional, trabalha isso de modo magistral, recuperando medos que assolam a população, trabalhando enquadramentos e operando o silenciamento como política editorial para garantir que a violência se instaure e que a militarização seja aceita como a resposta possível.
Nesse momento, observando-se as edições do Jornal Nacional, sobretudo a partir do carnaval, vamos encontrar esse cenário, que tem uma marcação bem precisa e aspectos que podemos pontuar aqui, como se segue.
- Silenciamento como política editorial - Essa estratégia não se esgota apenas na ocultação ou na censura a fatos. É um trabalho muito bem elaborado discursivamente, com objetivos bem claros. Quando um repertório como crise econômica sai de cena, num momento histórico em que o desemprego bate recorde e há queda na remuneração dos trabalhadores, ou quando o desemprego é exposto de forma lateral, apenas numericamente, sem contextualização ou desdobramentos, está em vigor uma política de silenciamento.
O silêncio trabalha, portanto, para que se construa um único sentido na interpretação e na compreensão dos acontecimentos. No período pós-carnaval, por exemplo, vieram à tona os dados fundamentais sobre o desemprego e a queda de remuneração dos trabalhadores informais em comparação com aqueles com carteira de trabalho, dados que foram silenciados, ainda que tenham sido marginalmente mencionados. Pelo silenciamento, o impacto desses números é neutralizado.
Há silenciamento também em relação aos excessos e abusos dos militares nas favelas. Não se tem, pela mídia corporativa, notícias sobre isso, e a população afetada (pobres moradores das favelas) não tem voz.
- Descontextualização- O repertório violência é tratado a partir do binômio violência (ordem) x segurança - ou seja, é preciso adotar medidas de força para acabar com a violência e garantir a segurança dos cidadãos de bem. O tráfico - no Rio de Janeiro - aparece como agente dessa violência, mas uma recuperação histórica do problema não tem lugar. A que se liga a violência? Quais suas raízes? Há ligação com a crise, ela pode explicar o suposto aumento?
- A corrupção como repertório perde eficácia, apesar de manter o mesmo formato (é um evento seletivo, que se refere apenas a um grupo específico, no caso, Lula e o PT). Não é um repertório que desapareceu: a operação seletiva da Polícia Federal contra Jacques Wagner bem evidencia isso. Esse repertório perde alguma centralidade, nesse momento, mas será retomado, com certeza. E o repertório crise econômica também sai de cena (para ser redimensionado, não tenham dúvidas), pois não há qualquer interesse em mostrar que agora, verdadeiramente, o país vive uma crise econômica grave, e apesar do aumento pífio do PIB (festejado pela mídia corporativa), a realidade de mais de 12 milhões de desempregados e uma crescente e assustadora falta de perspectivas agride a sociedade brasileira.
- Enquadramento - O novo repertório é “violência”, e a “moldura” para enquadrá-lo é: a ordem (numa dimensão militar) é imprescindível para garantir a segurança. Como feito na propaganda nazista ou de regimes repressivos, alguns conceitos e ideias precisam ser destruídos, como respeito aos direitos humanos. Isso é secundário na proposta maior que é manter a ordem para garantir a segurança da população.
E como esse tema é tratado? A ausência de contextualização é uma marca, e o tema da violência é desvinculado da crise social (desemprego, miséria, ausência de políticas sociais para as populações carentes) e tratado sob a ótica bruta da violência e da punição. O circuito das drogas não alcança os bairros ricos.
Quatro aspectos se destacam nesse enquadramento:
Fragmentação - não é trazida a perspectiva de um todo, o fato reportado aparece quase sempre deslocado, sem outros elementos que o liguem a processo conjuntural.
Evidências tomadas como fatos – o noticiário toma casos de violência como prova irrefutável de que existe uma situação sistemática de violência, fora de controle, e que somente a ordem poderá restaurar a paz e a segurança. Nesse momento, é importante a “voz de autoridade” - autoridades judiciais, militares - para corroborar esse aspecto.
Pathos ou a emoção no discurso: é um elemento marcante e constantemente presente na cobertura da violência. É necessário trazer uma carga dramática efetiva para que o público seja sensibilizado. E é claro que a emoção é trabalhada e também trazida no noticiário a partir de determinado viés.
Ausência de pluralidade de vozes: o enquadramento do repertório define que vozes serão trazidas à tona na cobertura. Dessa forma, aparecem somente vozes oficiais (autoridades) e especialistas para atestar o “caos” e ressaltar a necessidade de medidas mais duras. As críticas das populações mais atingidas pela intervenção são silenciadas, assim como a voz predominantemente crítica dos especialistas em segurança pública, no Jornal Nacional. Nesse molde, a intervenção militar parece ter apoio unânime e inquestionável.
- Mascaramento da realidade: toma fôlego quando, nos relatos da mídia corporativa, a desigualdade e o aumento da pobreza deixam de ser apontados como fatores geradores da criminalidade. Há a construção de um imaginário sociodiscursivo que modela a forma como o público em geral percebe o tema violência.
É inegável, portanto, o poder de agenda da mídia corporativa: de acordo com a pesquisa Ibope realizada entre 7 e 10 de dezembro de 2017, o tema segurança não é o prioritário para a população.Ele aparece em nono lugar, atrás de saúde, aumento do salário-mínimo, controle da inflação, geração de empregos e redução de impostos, educação, combate à corrupção e diminuição dos gastos do Estado. Mas ele foi sobrevalorizado na cobertura do Jornal Nacionalpara justificar sua prioridade, indo ao centro da cena.
Nessas teias de sentido, a mídia corporativa vai procurando refazer a narrativa golpista, com nova roupagem e novos temas, influenciando a opinião dos cidadãos, criando agendas que passam a pautar esse espaço e estando legitimada como instância autorizada a transmitir a informação. Essa narrativa em crise, mas reciclada, faz circular um sistema de valores, operando num processo de seleção-construção de notícias, impostas e disseminadas como as únicas possíveis. Nesse processo, a perspectiva histórica e a contextualização são relegadas, construindo-se uma visão de mundo única, para ser rapidamente absorvida, sem espaço a outras vozes ou outras perspectivas.
Assim midiatizado, pretende-se que o debate político vá se convertendo num grande espetáculo, em que o público é forçosamente homogeneizado pelo viés único reiteradamente marcado da narrativa golpista.
Mas não é um tema aleatório servindo de cortina de fumaça. É o endurecimento entrando em campo.
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