sexta-feira, 27 de abril de 2018

Os descaminhos da globalização

Por Luiz Gonzaga Belluzzo, na revista CartaCapital:

CartaCapital nasceu em 1994, ano do Plano Real, com o mundo e o Brasil em êxtase desde os 80 com as pregações da nova economia. Crises financeiras fustigaram o Japão em 1989, o México em 1994, iriam abalar a Ásia em 1997 e o Brasil em 1999, mas, na visão de muitos, a economia global vivia os confortos da “Grande Moderação”.

Essa senhora exibiu seus brilhos nos 90 e chegou ao narcisismo autocongratulatório na primeira década do Terceiro Milênio. A “Grande Moderação” alimentava certezas pacificadoras que garantiam o caráter benfazejo da globalização e de seus frutos sociais, bons para todos. Eram celebrados os benefícios da abertura comercial e da liberalização das contas de capital.

Os mercados financeiros eram eficientes na alocação global do investimento que escorregava dos países mais ricos para os mais pobres. Tudo isso escoltado pela segurança dos bancos centrais independentes, gestores do regime de metas de inflação, do câmbio flutuante e fiadores da limitação às desnecessárias e danosas interferências do Estado.

A crise de 2007-2008 foi um terremoto. A violência e a amplitude do colapso financeiro não afetaram, porém, os poderes do establishment e o protagonismo de seus ideólogos. No ambiente acadêmico, não foram poucos os que questionaram as arengas pseudocientíficas da teoria econômica dominante. Mas suas dúvidas e interpelações foram mantidas à distância dos centros de decisão.

Ainda assim, recentemente, dois expoentes das teorias do capitalismo bem-comportado, Lawrence Summers e Olivier Blanchard, admitiram que a “Grande Moderação” encaminhou os modelos macroeconômicos para as ilusões do equilíbrio e da estabilidade.

Confessaram os arrependidos: “Os eventos dos últimos dez anos colocaram em dúvida a presunção de que as economias são capazes de se autoestabilizarem, levantaram novamente a questão se choques temporários produzem efeitos permanentes, e demonstraram a importância das não linearidades”.

Os dois inconformados tiveram a coragem de admitir que, na euforia das autocongratulações, os corifeus da “Velha Matriz Macroeconômica” se esqueceram de incluir em seus modelitos os bancos, o crédito e os volúveis humores dos mercados que negociam títulos de dívida e ações.

A macroeconomia dos modelos dinâmicos de equilíbrio geral não consegue acompanhar as transmutações do capitalismo nas últimas quatro décadas. A despeito de se autodenominar “dinâmicos”, não têm movimento no tempo histórico.

Na contramão da “dinâmica” sem tempo nem movimento, portanto sem lenço nem documento, arriscamos estabelecer as relações entre os fatores que hoje comandam as transformações da economia globalizada, financeirizada e automatizada.

Começamos com a desregulamentação financeira e a abertura das contas de capital que promoveram o crescimento continuado dos fluxos brutos de capitais entre as economias nacionais. No início dos anos 80, a elevação da taxa de juros americana recuperou o papel do dólar como moeda-reserva. Em meados da mesma década, os capitais engordaram o mercado financeiro de Tio Sam e, ao mesmo tempo, empurraram a migração da produção manufatureira para a China, recém-incorporada às fronteiras do capitalismo.

O baixo custo da mão de obra nas regiões receptoras suscitou o acirramento da concorrência entre as grandes empresas transnacionais em busca de uma nova localização espacial da produção. Essa redistribuição espacial da indústria manufatureira foi acompanhada da hiperindustrialização, ou seja, da difusão dos métodos e dos sistemas de máquinas concebidas pelas tecnologias da informação na manufatura, na agricultura e nos serviços.

Em simultâneo, a desregulamentação dos mercados financeiros incitou a concentração do controle das empresas produtivas nas grandes instituições bancárias globalizadas e nos fundos direta e indiretamente administrados por elas. A dominância dos bancos e de seus fundos associados ditou alterações profundas na estratégia das empresas.

Centralização do controle nas grandes instituições financeiras e descentralização da produção. O propósito da competição entre os grandes blocos de capital é o de assegurar simultaneamente a diversificação espacial, o “livre” acesso a mercados e a maximização dos resultados a curto prazo. A nova etapa do capitalismo é marcada por desencontros entre a estratégia da grande empresa transnacional e os espaços jurídico-políticos nacionais, espaços “desintegrados” pela aceleração dos tempos de produção e circulação do capital globalizado.

As regiões que perdem posição na disputa competitiva da manufatura, os Estados Unidos e a Europa, buscam acelerar uma nova rodada de inovações, aquelas que seriam classificadas de “poupadoras de mão de obra”.

Hoje quase todos concordam que a economia globalizada vive um intenso movimento de automação baseado na utilização de redes de “máquinas inteligentes”. Nanotecnologia, neurociência, biotecnologia, novas formas de energia e novos materiais formam o bloco de inovações com enorme potencial de revolucionar outra vez as bases técnicas do capitalismo.

Como Marx preconizou nos Grudrisse, “o desenvolvimento do capital fixo revela até que ponto o conhecimento social geral se converteu em uma força produtiva imediata e, portanto, até que ponto as condições da própria vida social foram submetidas ao controle do general intellect e remodeladas segundo seus ditames.”

Os métodos que nascem dessa base técnica não podem senão confirmar sua razão interna. São métodos de produção destinados a aumentar a produtividade social do trabalho em escala crescente. Sua aplicação continuada torna o trabalho imediato cada vez mais redundante. A autonomização da estrutura técnica significa que a aplicação da ciência se torna o critério dominante no desenvolvimento da produção e na conformação da vida social.

A conjugação dessas forças tectônicas (financeiras, espaciais e tecnológicas) promoveram nos países centrais consequências aparentemente paradoxais. A introdução das novas tecnologias conviveu com reduções das taxas de investimento e com o declínio das taxas de crescimento da produtividade total dos fatores.

É provável que a segmentação dos mercados de trabalho entre os qualificados em tempo integral e os “desqualificados precários” tenha efeitos na medição da produtividade social. Já a insignificante evolução dos rendimentos dos trabalhadores deprimiu a capacidade de gasto dos “precarizados” e “empobrecidos” e abriu espaço para a “financeirização do consumo”. A queda nos rendimentos das camadas menos favorecidas foi contrabalançada pelo endividamento imprudente das famílias.

No artigo “A Financeirização da Grande Empresa Americana”, o economista William Lazonik escreveu: “Desde o começo dos anos 80, as relações de emprego nos Estados Unidos sofreram três grandes transformações estruturais, que vou designar de forma sintética como ‘racionalização’, ‘mercantilização’ e ‘globalização’.

A racionalização implicou o fechamento de fábricas e eliminação permanente de operários sindicalizados. Nos anos 90, a mercantilização foi marcada pelo encerramento das carreiras nas empresas, pondo em risco a segurança no emprego dos trabalhadores de classe média mais veteranos. Já no início do Terceiro Milênio a globalização promoveu a exportação de empregos, deixando todos os trabalhadores vulneráveis, mesmo os dotados de maiores credenciais de educação.

Essas mudanças estruturais no emprego foram promovidas pela perseguição de estratégias que visavam simplesmente os ganhos financeiros. Muitas empresas fechavam as fábricas, eliminavam trabalhadores mais caros e mais experientes, deslocavam a produção para outros países às expensas da competitividade de longo prazo.

O comportamento das empresas e as práticas dos mercados financeiros incitaram a conservação e a valorização da riqueza na sua forma mais estéril, abstrata, que, em contraposição à aquisição de máquinas e equipamentos, não carrega qualquer expectativa de geração de novo valor, emprego e renda. A mudança da composição da riqueza provoca o necrosamento do tecido econômico.

A globalização produtiva, a liberalização da finança e a dominância do rentismo também produziram efeitos negativos nas finanças públicas. Primeiro, estimularam a multiplicação dos paraísos fiscais. A fuga sistemática das obrigações fiscais foi acompanhada da crescente regressividade dos sistemas de tributação.

A predominância dos impostos indiretos conferiu maior sensibilidade das receitas fiscais às flutuações da economia. Os sistemas fiscais tornaram-se desagradavelmente pró-cíclicos: quando a economia desacelera, os pobres aprisionados em seus territórios consomem pouco e pagam menos impostos. Enquanto isso, os enriquecidos aceleram as remessas para os paraísos fiscais.

Assim, na posteridade da crise, o baixo crescimento sancionou a persistência de déficits orçamentários alentados. Tudo a ver: baixo crescimento, déficits fiscais e intervenção saneadora dos bancos centrais e dos tesouros nacionais para salvar as grandes instituições financeiras. Isso resultou na expansão das dívidas dos governos, aprofundando as mutações na composição da riqueza.

Essa combinação perversa legitimou as políticas de austeridade, políticas que puniram os sistemas de proteção social e maltrataram a vida dos empobrecidos.

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