Nada diz mais sobre o Brasil, sobre o que somos há muito tempo, que a caravana de Lula pelo sul do país. Em terras sulistas, por onde Lula passou foi hostilizado pela classe proprietária, pela elite da terra.
Não!
Não!
Chamar de “hostilidade” é pouco.
O que aconteceu na etapa sulista da caravana “Lula pelo Brasil” foi uma sucessão de atentados contra a vida de Lula e de seus correligionários políticos. Começou com chicotadas, agressões e pedradas e chegou, no último dia 27 de março, a tiros de arma de fogo.
Não foi ovo, não foi cocô. Foi tiro. Tiro de arma de fogo.
Como entender essa escalada de violência na política Brasileira?
Muitos falam em “fascismo”, termo que tem notória força política e que por isso seu uso no debate público talvez tenha lá alguma importância.
Mas estou convencido de que se quisermos fazer uma interpretação mais rigorosa da realidade, o termo é equivocado, pois mais confunde do que esclarece. Definir como “fascista” a escalada da violência na política brasileira demandaria tantos reparos e observações para mostrar como o “fascismo brasileiro” é diferente daquele “fascismo clássico” europeu de meados do século XX que o próprio conceito perderia força explicativa.
Por isso, prefiro seguir uma via interpretativa doméstica, tomando as manifestações de violência contra a caravana de Lula no sul do Brasil como representativas daquilo que o Brasil é, do que sempre foi.
É este o meu esforço neste ensaio: tomo a violência contra a caravana de Lula como ponto de partida para uma interpretação do Brasil.
Começo, então, com a pergunta que não quer calar, com a pergunta que, talvez, seja a mais importante de ser feita no atual momento da história do Brasil:
Por que as elites brasileiras odeiam Lula?
Nem de longe Lula foi um Presidente revolucionário, nem de longe relou no “sagrado” direito de propriedade privava. As elites brasileiras não perderam dinheiro nos governos de Lula. Muito pelo contrário, nunca ganharam tanto.
De onde vem todo esse ódio?
Não penso que seja necessária a importação de um conceito específico da história europeia para a compreensão de uma realidade que é tão brasileira quanto a jabuticaba. Não é fascismo não, não tem nada a ver com fascismo.
O fascismo é moderno, é o desdobramento mais grotesco da modernidade.
O ódio a Lula é arcaico, deita suas raízes nos velhos valores aristocráticos, pré-modernos, na lógica da Casa Grande, em uma racionalidade de tipo antigo.
Não é fascismo não. É o Brasil mesmo.
Sei que é difícil reconhecer, mas no fundo, bem no fundinho, é só o velho Brasil de sempre. Em pouco mais de uma década de bonança, nos enganamos, fomos ingênuos, achando que o Brasil estava mudando, melhorando. Mudou não. Melhorou não. Tá igualzinho ao que sempre foi.
Não há como falar nessa atualização do “Brasil de sempre” sem dedicar alguma atenção à “instituição Lula”.
Pois sim, o “homem Lula” já morreu e deu lugar a uma instituição.
Lula é a maior instituição política da história do Brasil. É tolo quem acha que uma instituição pode ser morta com uma bala ou com uma facada. Todos os brasileiros e brasileiras terão que conviver com a “instituição Lula” daqui para frente. Ninguém mais faz política no Brasil sem passar por Lula, seja para negá-lo ou para reivindicar o seu legado.
Mas o que significa essa instituição?
Há pouco tempo, escrevi um ensaio sugerindo que no final da década de 1990 aconteceu dentro do PT a “guinada lulista”, que teve efeitos contraditórios para o maior partido político da história da esquerda latino-americana: o lulismo, ao mesmo tempo em que catapultou o PT à chefia do Poder Executivo, representou o seu colapso ideológico.
É que o lulismo aposta na conciliação de classes e ao fazê-lo acaba negando o princípio da luta de classes, que é o núcleo da identidade ideológica de qualquer partido que pretenda estar à esquerda.
O lulismo achou que era possível “ajudar os pobres sem incomodar os de cima’, na certeira formulação de Marcelo Odebrecht.
No frigir dos ovos, essa conciliação seria mesmo possível.
Com algum sacrifício da classe média e com uma situação econômica relativamente favorável, seria possível distribuir renda para os mais pobres sem contrariar os interesses dos grandes capitalistas.
Dinheiro no bolso do povão, expansão do crédito, incentivo ao consumo, bancarização das relações comerciais, investimento na exportação de commodities. Todo mundo saiu ganhando, ainda que uns tenham ganhado mais que outros.
Com o boom do consumo, ganhou o capital produtivo.
Com a bancarização das relações comerciais, ganhou o rentismo.
Com o micro-crédito, ganhou o pobre, que comprou geladeira, TV de plasma e viajou de avião pra lá e pra cá.
A fórmula funcionou durante dez anos. O fator “Dilma Rousseff” foi o principal elemento de desestabilização do sistema. Não foi o único elemento, é claro que não. Mas foi o principal.
É que Dilma tensionou demais.
Dilma tensionou com o rentismo na batalha dos spreads, tensionou com a classe política, quando acreditou que a “Operação Lava Jato” seria de fato republicana.
O golpe de 2016 não foi exatamente contra o lulismo. Foi contra o dilmismo.
Duvido que Lula cairia, duvido muito. Mas não é disso que quero falar, não aqui, não agora.
O que estou querendo dizer é que pela lógica racional do mercado, do capitalismo, não há nenhum motivo para as elites brasileiras odiarem Lula.
Os donos de terra do sul do Brasil receberam muito dinheiro do governo federal durante a Era Lula, pois a exportação das commodities era o grande combustível econômico da conciliação lulista. Era importante para o governo que os proprietários produzissem, vendessem, ganhassem dinheiro.
Lula tratou o agronegócio com muito carinho, com muito carinho mesmo.
De onde vem esse ódio? Por que os proprietários sulistas tentaram matar Lula? É por causa da corrupção?
Não, não tem nada a ver com corrupção. Há outros políticos notoriamente corruptos que não despertam o mesmo ódio. Nunca é demais lembrar que os mesmos que hoje odeiam Lula aplaudiram Eduardo Cunha e votaram em Aécio Neves. O problema dessas pessoas nunca foi a corrupção.
O ódio é arcaico, é de tipo antigo.
Lula é o nordestino, trabalhador manual, homem de berço plebeu que ousou governar.
Num país em que a política formal sempre foi assunto a ser tratado entre iguais, entre oligarcas, Lula representa o radicalismo, ainda que na posição de mandatário maior da República tenha sido bem tímido, talvez até um tanto conservador.
É que o radicalismo de Lula independe de suas ações. Lula é o próprio radicalismo, é o radicalismo em pessoa, não importa o que faça, não importa o que deixe de fazer, não importa o quanto tente conciliar.
Com aquela “alma de pobre”, com aquelas escorregadelas nas concordâncias e nos plurais, Lula jamais conseguirá conciliar por muito tempo, pois para conciliar carece antes de ser aceito como mediador. Precisa sentar à mesa.
O aristocrata não aceita sentar à mesa com o plebeu.
As elites brasileiras têm nojo de Lula, sempre tiveram. Mesmo ganhando dinheiro durante o governo Lula, elas continuaram sentindo nojo, odiando. É que para as elites brasileiras o mais importante não é, exatamente, o dinheiro. O mais importante é a distinção.
Não importa se o aquecimento do consumo é positivo para a cadeia produtiva. Quando a empregada usa o mesmo perfume que a patroa, quando o filho do porteiro começa a estudar na universidade, é o regime da distinção que está sendo abalado.
Patroa e empregada, sinhá e mucama, não podem ter o mesmo cheiro. Não importa se a empregada “tirou” o tal perfume no cartão de crédito, pra pagar em 12 suaves prestações. Não importa se a empregada, depois da jornada de trabalho, vai sacolejar duas horas no trem e no ônibus para chegar em casa, no outro lado da cidade.
O que importa é o cheiro, é o signo de distinção.
Não importa se o morador do 10° andar vai passear em Paris nas férias, enquanto o porteiro vai visitar “mainha” em Santo Amaro. O que importa mesmo é que quando começar o semestre, o filho do porteiro estará lá, na mesma sala que filho do morador do 10° andar. Olhando de longe, bem de longe, eles são iguais, são estudantes. O absurdo está aqui. O ódio vem daqui.
É isso: não tem nada a ver com fascismo. O que explica a escalada de violência na política brasileira é o ódio de uma elite arcaica que goza com a distinção.
Não é fascismo. O fascismo é a tragédia da Europa moderna. Nossa tragédia é outra.
É a tragédia de uma sociedade de modernização incompleta, forjada no escravismo e controlada por uma elite historicamente comprometida com o atraso.
* Rodrigo Perez Oliveira é professor de Teoria da História da UFBA.
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