quinta-feira, 24 de maio de 2018

As reservas internacionais e a democracia

Por Marco Aurélio Cabral Pinto, no site Brasil Debate:

O Brasil conquistou em 2006, pela primeira vez desde 1822, a condição de Estado soberano credor em moeda internacional. As reservas brasileiras, que hoje somam cerca de US$ 400 bilhões, são tratadas como muralha intransponível frente a ataques especulativos contra o Real.

É sabido que candidatos à Presidência da República em 2018, que apoiem medidas que se distanciem do receituário neoliberal, encontrar-se-ão fadados a atrair a desconfiança dos “investidores estrangeiros”. No caso brasileiro, desprovido de barreiras à fuga de capitais (os juros obedecem estritamente o combate à inflação), as reservas brasileiras tornam-se instrumento garantidor da democracia no Brasil.

O objetivo do presente trabalho é mostrar como as reservas brasileiras podem se tornar escassas em cenário de ruptura política com os interesses neoliberais que se beneficiaram do “Golpe dos Corruptos” desde 2015.

Endividamento de firmas industriais em dólares

Segundo dados do Banco Central, o montante contraído por empresas e bancos, em endividamento externo, somou cerca de US$ 471 bilhões em fins de março de 2018.

Ainda que os vencimentos programados destas dívidas não excedam os cerca de 12 bilhões de dólares até o final do ano, estima-se que até 50% do montante total podem ser objeto de swaps cambiais, a serem ofertados pelo Banco Central para permitir liquidação antecipada ou hedge.

Para isso acontecer em larga escala, basta que as “expectativas otimistas” do “mercado”, apoiadas no triunfo eleitoral (ou não) de programas neoliberais, sejam frontalmente ameaçadas.

Instabilidade que vem do estrangeiro

Para que as firmas localizadas no Brasil se desfaçam de risco cambial basta se consolidar posição de que a recente valorização da moeda norte-americana não é exclusividade do país, mas de aumento gradativo nas taxas de juros nos EUA.

Por sua vez, estes aumentos parecem corresponder a deslocamento do eixo econômico mundial em favor da convivência de políticas contraditórias nos EUA – gastos públicos em expansão e política monetária contracionista.

Por meio deste artifício, o pacto político nos EUA parece consolidado entre grupos financeiros e industriais, o qual permitirá ao Governo do empreiteiro D. Trump gerir a macroeconomia de forma muito comparável ao caminho escolhido pelo Brasil após o estopim da crise financeira de 2008.

A indústria brasileira é estrangeira

O elevado endividamento externo das firmas brasileiras na conjuntura decorre não apenas do duradouro diferencial positivo entre juros em Reais e em dólares, mas também do maior acesso por parte das firmas localizadas no país a linhas externas. Este maior acesso, por sua vez, pode ser explicado pelo aumento no controle acionário das firmas brasileiras por estrangeiros.

Na Figura 1 apresenta-se evolução do estoque de patrimônio estrangeiro em relação à atividade econômica no Brasil. Conforme se pode perceber, entre 1995 e 2010 (mandatos de FHC e Lula) aumentou-se significativamente o controle dos estrangeiros sobre a capacidade produtiva. Consumado o “Golpe dos Corruptos”, em 2016, observou-se nova onda de aquisições de participação por estrangeiros, após leve queda observada no mandato da presidente D. Rousseff. No final de 2017 totalizaram-se cerca de US$ 550 bilhões em estoque de IDE no Brasil.



Com isso, ingressaram no país cerca de US$ 120 bilhões ao longo de 2016. Este fluxo menos que compensou a saída observada no ano anterior, quando o “Golpe dos Corruptos” se encaminhava para o impedimento da presidente eleita. Ou seja, percebe-se que ao menos US$ 100 bilhões em IDE reajam a mudanças nas expectativas de curto-prazo na economia política brasileira.

Desta maneira, os empréstimos contraídos pelas firmas no Brasil tiveram origem em holdings industriais situadas no exterior (intercompany). Em 2017, as operações intercompanhias somaram cerca de US$ 228 bilhões, sendo quase 60% destinados à indústria.

Bancos e empréstimos em dólares

A desalavancagem financeira tem sido experimentada pelos principais bancos do mundo como resposta aos requisitos impostos por regras de prudência bancária (Basileia II) praticadas desde a crise financeira de 2008.

Conforme se pode verificar no exame da Figura 2, entre 2009 e 2014 as IFs localizadas no Brasil aumentaram a exposição em dólar, contrariando-se, até certo ponto, o movimento internacional de contração bancária no mesmo período.

No entanto, apesar da conjuntura brasileira ter favorecido os lucros bancários, especialmente após consumado o “Golpe dos Corruptos”, os bancos perceberam a necessidade de redução da exposição.



De maneira similar às firmas industriais, é esperado que os bancos encontrem dificuldades para liquidação de dívidas em dólares até o final do ano e após, considerando-se que não há abundância de oferta de crédito em Reais na economia brasileira, principalmente após sucessivos saques realizados contra reservas do BNDES.

Fuga de capitais e esgotamento de reservas internacionais

Em síntese, estima-se que até US$ 120 bilhões podem sair do país como resultado de liquidação de participações acionárias nas empresas industriais. Adicionalmente, estimam-se em até 50% o montante dos empréstimos intercompany que poderiam ser demandantes de hedge cambial (US$ 110 bilhões) em 2018. Finalmente, estima-se algo em torno de US$ 80 bilhões que poderiam deixar o país na forma de substituição de moedas por parte dos bancos.

Dado que é esperado que a saída de dólares se acelere quanto mais a sociedade brasileira se manifeste contra políticas de corte neoliberal, percebe-se o risco de que o processo eleitoral possa ser contaminado por ataques cambiais especulativos. Em outras palavras, os “mercados” coordenam-se a partir do topo das hierarquias com o objetivo de pressionar politicamente os candidatos a se comprometerem com pontos da agenda neoliberal (privatizações, reforma da previdência, ajuste fiscal etc.).

Neste contexto, dados os montantes envolvidos, as reservas cambiais brasileiras podem se provar insuficientes para conter ataques especulativos contra o Real ainda durante a corrida eleitoral. Considerando-se que o Banco Central, por coerência com as teses ultraliberais, manterá a narrativa de juros proporcionais à inflação, o governo brasileiro será impelido a reconduzir o Brasil novamente à condição de devedor internacional. Aliás, da mesma maneira que o neoliberalismo na Argentina sepultou chances de prosperidade no futuro imediato para o país vizinho.

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