Por Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, no blog Tutaméia:
“Estamos às vésperas de uma situação muito difícil, e nós temos de pensar em salvaguardar a democracia. Acho que, neste momento, com essa situação crítica, até setores da direita, que tenham interesse e intenção de manter a democracia, devem ser ouvidos”.
É o que afirma o ministro Celso Amorim em entrevista ao Tutaméia. Ele segue: “Se for necessário ter uma conversa com o Alckmin, tem de ter. Como em 1967 ou 1968 se tentou ter a Frente Ampla, que ia do Jango ao Lacerda, era quem defendia a democracia. Com quem defender a democracia, ainda que com concepções um pouquinho diferentes do que significa democracia, é importante manter canais abertos”.
Ele defende a união das forças progressistas em torno da luta pela liberdade do presidente Lula e do seu direito de ser candidato. Diz: “Sem perder essa característica, a gente tem de manter canais para assegurar a democracia, porque o risco existe. É real”.
Ministro das relações exteriores do governo Lula e da Defesa no governo Dilma, ele fala da conjuntura política, que ganhou elementos mais dramáticos com o movimento dos caminhoneiros. Prossegue Amorim:
“Mesmo que seja um golpe militar que não se sustente… mas, gente, uma coisa que dure dois, três meses, pode ser desastrosa para o país, em termos de violência, em termos de vidas humanas. Eu mesmo digo: não creio que golpe militar no sentido clássico vá ocorrer, mas não posso descansar sobre isso. Primeiro porque o risco existe. E, se a gente não fizer nada, ele pode ocorrer.”
E reforça: “Mesmo que, depois, ele não seja bem-sucedido, ele possa não ter os 21 anos que teve o outro governo militar, mas pode ser o suficiente para causar muito estrago, muita dor para o povo. Então é preciso pensar nessa abertura também, conversar”.
Oportunidade única
Na visão de Amorim, “nem o capital financeiro internacional tem interesse nisso [golpe militar], não pega bem para eles. Não acredito que o golpe militar fique, mas, digamos assim, uma situação que possa ser um civil, sob forte proteção militar… Que é um pouco o que a intervenção no Rio de Janeiro simboliza, quando foi dito que ela poderia ser um laboratório para o Brasil”.
Segue Amorim: “Um laboratório para quê? Se houver uma confusão, como está acontecendo? Às vésperas das eleições? Aí adia as eleições, coloca lá o presidente do Supremo, adia por um ano, para ver se há uma situação nova? Porque acontece o seguinte: hoje o Lula tem 32% ou 35%, dependendo da pesquisa, da preferência. Então eles ficam assim: como é que nós vamos resolver isso com as eleições? Acho que é perigoso”.
Segundo o ministro: “Vivemos em um momento em que há uma oportunidade única para ver, de maneira clara, a influência geopolítica dos Estados Unidos ou de certos setores do governo americano e do capital financeiro norte-americano no Brasil e se pode trabalhar para curar isso, ao mesmo tempo em que se corre o risco de um governo de extrema direita ou de um governo autoritário”.
Diz Amorim: “Estamos vivendo talvez o momento mais crítico, mais crucial, mais complexo que eu vi em toda a minha vida adulta. Não quer dizer que não tenha havido piores. O golpe militar de 64 foi pior. Era uma coisa que estava imposta, a gente, as forças progressistas e democráticas foram derrotadas. Houve outras situações, o AI5”.
Efeitos nefastos da dependência
Na avaliação do ministro, a situação atual “é muito complexa porque, por um lado, ela põe a nu essa dependência e os males da dependência. Por outro lado, as ameaças são muito grandes”. Amorim fala de vídeos de caminhoneiros pedindo intervenção militar. Não se tem ideia da dimensão desse movimento entre os manifestantes; faltam informações básicas sobre os fatos, aponta ele. E continua:
“O que estamos vendo agora com essa crise da Petrobras tem uma raiz. A raiz disso, infelizmente, vem de longe, mas ela se mostrou nesse momento. A raiz disso é o fato de as ações da Petrobras serem vendidas na Bolsa de Nova York. Se não acabar com isso, a Petrobras não será a empresa autônoma e de desenvolvimento [que precisamos]. Petróleo é para desenvolver o país.
“Eu acho tudo isso muito triste. Eu sou de uma geração que, embora tenha tomado muita cacetada, acreditava que Petrobras, Volta Redonda etc eram instrumentos para o desenvolvimento brasileiro, para a sociedade brasileira. Progressivamente, foi havendo uma distorção. [Foi sendo afirmado] que o importante eram elas como empresas. E da empresa passa para a lucratividade e daí para espalhar o capital. Agora vai acontecer com a Embraer, que vai ser absorvida pela Boeing, no setor elétrico. Essa dependência é muito difícil de acabar, mas nunca vivemos um momento que seus efeitos nefastos sejam tão óbvios”.
Soberania e preço do gás
Perguntamos: o senhor está otimista? Resposta:
“Se vocês tivessem feito essa pergunta 15 dias atrás, eu diria pessimista no curto prazo. Hoje não sei. Porque essa greve pela primeira vez, de uma forma muito clara, pôs a nu essas questões. Você precisa ligar a soberania com o preço do gás. Isso agora ficou claro. A soberania nacional e o preço do gás são a mesma coisa. O fato de nós termos cedido um número importante de ações da Petrobras ao capital financeiro internacional limita a liberdade de ação da Petrobras ou a nossa liberdade de ação como acionista majoritário de conduzir a Petrobrás para os objetivos do desenvolvimento. Ao não permitir isso, não permite que ocorra um certo subsídio, sim, em benefício do povo brasileiro não permitindo que os problemas internacionais viessem onerar mais ainda o povo”.
E continua:
“Essa ligação entre questões que têm a ver diretamente com o bem estar o povo brasileiro — que vai do preço dos alimentos, do gás etc– com o domínio do capital financeiro internacional –não só sobre as nossas riquezas, mas sobre as nossas estruturas empresariais –isso ficou claro e isso tem um espelho político. A gente vai votar em quem: em quem defende esse processo ou em quem quer mudar isso ou pelo menos mitigar isso? Essa é a opção. Espero que mude”.
Segue: “Soberania é uma palavra chave. Democracia e justiça social. São três coisas que estão juntas. Democracia sem justiça social será uma falsa democracia, será como na Grécia antiga, só entre os aristocratas. Democracia sem soberania também não existe: se o Estado não é livre, o homem não é livre, a mulher não é livre, o cidadão não é livre”.
Temer devia demitir Parente
Celso Amorim comenta observação feita por Samuel Pinheiro Guimarães ao Tutaméia. Na semana passada, o embaixador nos disse aqui que Pedro Parente, presidente da Petrobras, é o representante dos interesses do Estado norte-americano no Brasil. Diz o ministro:
“Não sei se ele foi oficialmente nomeado como tal. Ele não é o único; deve haver outros. Se Temer quisesse mostrar que tem algum poder, a primeira coisa a fazer seria demitir o presidente da Petrobras. Quem manda no Brasil? A solução que está sendo dada terá custo direto para o povo brasileiro. Para salvar o dinheiro dos acionistas. Uma parte desse dinheiro vai ser renúncia fiscal e outra parte vai ser mesmo aporte orçamentário. Isso para evitar que os acionistas em Nova York –e tem acionista brasileiro também–, fundos de pensão tenham prejuízo. Isso é uma coisa totalmente absurda, gente! Como próprio Pedro parente disse que não mudaria a política de preços, acho que o afastamento dele seria fundamental. Nada pessoal, mas é uma questão simbólica, se o governo quiser demonstrar que tenha ainda algum controle sobre o que ocorre no Brasil”.
Destruição do país
A política anti-Petrobras faz parte de um projeto de desmonte da nação, no entender de Amorim:
“Tudo que é a base do crescimento econômico brasileiro, da presença do Brasil no mundo nos últimos anos está sendo destruído [pela Lava Jato]. Independentemente dos erros que possam ter sido cometidos, que têm de ser corrigidos.
“Isso acontece. Aconteceu nos Estados Unidos, aconteceu na Alemanha com a Volkswagen, mas ninguém faz essa campanha para destruir as empresas. As empresas brasileiras, que tinham uma presença enorme na África… Foi destruída a presença do Brasil, o enfraquecimento da Petrobrás, as empresas de engenharia, o BNDES, a diminuição dos investimentos militares –o submarino nuclear.., agora a Embraer.
“O objetivo é botar o Brasil no seu lugar –entre aspas.
“É da essência da geopolítico. Não interessa aos Estados Unidos a emergência de outra potência no hemisfério. Eles sempre tratam do conceito hemisfério, é como eles veem isso. E o hemisfério tem UM patrão.”
Voltar a ser quintal
Diz Amorim: “Nos Estados Unidos, o presidente opera dentro de limites. Há um governo oculto, invisível, que é quem manda em última instância e dita os limites. Quando eles viram um país como o Brasil… Primeiro o Pré-sal. Tem a ganância das multinacionais, mas não é só isso. É também estratégico. Nessa nova geopolítica, é saber quem vai dispor desses recursos no caso de conflito. [Devem ter dito:] Esse Brasil está ficando muito independente, criou o conselho de defesa na América do Sul, tem uma política para a África para o Atlântico Sul, [faz reuniões com] países árabes e cria os BRICS. Esse negócio de BRICS, no momento que houver uma crise maior, como se vai fazer? Tem essa riqueza enorme do Pré-sal, sem falar da água, biodiversidade etc. Nessa visão geopolítica tem os interesses econômicos das multinacionais, o interesse do capital financeiro de dominar e extrair mais lucro dos países e o interesse político militar da defesa. Acho que houve um momento em que houve uma decisão: vamos acabar com essa festa.
Para Amorim, duas coisas tocaram que mais profundamente nesse estado profundo que existe nos EUA: os BRICS e a capa da revista “Economist” com a América de cabeça para baixo e dizendo: não é mais o quintal de ninguém. “Gente! Tudo isso é para fazer voltar a ser o quintal. Tem que ser quintal”, afirma.
Desconforto militar
Ex-ministro da Defesa do governo Dilma, Celso Amorim afirma que os militares não devem estar confortáveis com as missões impostas à instituição por Temer. “Acho um perigo. Seguramente no caso do Rio de Janeiro eles não estarão confortáveis. Como instituição nem todos pensam a mesma coisa. Conheço militares de alta patente que estavam muito desconfortáveis com essas ações”.
Ele diz considerar estranha a própria forma como foi feita essa ação militar sobre o movimento dos caminhoneiros. Observa que, apesar da ambiguidade da legislação, um ato como esse –de “garantia da lei e da ordem”—precisa ser feito numa área pré-estabelecida e por tempo determinado.
Legalmente discutível
Agora, enfatiza, “a área pré-estabelecida foi o território nacional. Então é quase o equivalente ao estado de sítio”. Além disso, como constitucionalmente a segurança pública é responsabilidade dos Estados, teria que ter havido peidos de todos os governadores –o que não se tem notícia de ter havido. Então, declara Amorim, “não sei nem se legalmente ela [a ação militar no caso dos caminhoneiros] é sustentável”.
O ministro alerta pra o fato de a ação militar gerar inspirações autoritárias, com parcela da população identificando nas Forças Armadas uma solução para o impasse no país:
“É aí que mora o perigo. Há uma coisa curiosa. Se der errado [a ação dos militares agora] e houver violência, é perigoso. Por outro lado, se der certo, também é perigoso. Porque é uma inspiração de que se esteja caminhando … sobretudo na extensão em que foi feita, da maneira como foi feita. Não se decretou intervenção federal nem estado de sítio. É muito discutível”.
Lula e a classe dominante
Do ponto de vista das elites, Lula não poderia ser o personagem capaz de reorganizar isso?, perguntamos a Celso Amorim. A resposta:
“Essa ideia também me passou pela cabeça. O Lula é o único realmente pacificador. É um conciliador no bom sentido, porque ele não vai deixar de lado o povo. Não é só aquela conciliação das elites. Ele é o único que tem capacidade e revelou isso no meio da crise: ele conseguiu que o Brasil vencesse aquele momento difícil de crise, quando nenhum país vencia.
“Eu falei isso com a minha mulher, ela disse: “Você é um otimista!”. E eu: “Ainda vão chamar o presidente Lula para resolver essas questões”.
“Veja bem: essa greve dos caminhoneiros não se presta a simplificações. Tem de ter uma cabeça com capacidade de ver as coisas na sua pluralidade, e acho que o Lula é talvez uma das pouquíssimas pessoas com essa capacidade no Brasil, se não a única.
“O que ele fez no Brasil foi isso, um reformismo. Ele não atacou a propriedade privada, também não reprimiu os movimentos sociais. Continuou a reforma agrária num ritmo razoável, não incomodou muito o capital financeiro, mas também não se deixou escravizar por ele.
“É possível que os setores mais lúcidos da própria burguesia, das classes médias, percebam que é necessário ter uma conciliação”.
Mandela do Brasil
Celso Amorim fala da campanha internacional pela libertação de Lula:
“A prisão do Lula é uma mancha na imagem do Brasil. Ouço de diplomatas estrangeiros: “Gente, como é que vocês fazem isso? O Lula é o Mandela de vocês…”
“Eles estão entendendo totalmente que a ação pela qual o Lula está preso não é pela corrupção no Brasil”.
Elite tacanha
Mais: “Falam que a nossa elite é tacanha, estreita. Não é só isso. Isso é uma questão estrutural. Não ela é vira-lata porque quer se considerar pior. Ela é vira lata por opção. A sua função estrutural no sistema econômico e político mundial é a de ser mediação da dominação externa. Ela ganha com isso e tem medo de perder essa mediação. Não são todos”.
A conversa vai para as ideias de burguesia nacional, de pilares do desenvolvimento, do papel do Estado. E trata em vários pontos do golpe de 2016.
Diz Amorim:
“Lamentavelmente, graças à visão que veio de fora, à estreiteza de visão interna e à ingenuidade de alguns e, talvez, à má fé de outros, nós estamos nessa situação em que o Brasil está sofrendo como há muito tempo não sofre. Eu nunca vi uma situação que gerasse o nível de perplexidade que a atual situação geral”.
Vergonha
Amorim conta que sentiu vergonha do país em duas ocasiões. Na primeira, durante o governo militar, quando era um jovem diplomata estudante em Londres, e leu a reportagem sobre a morte, sob tortura, de Chael Schreier (1946-1969), militante da VAR-Palmares. “Estava subindo o metrô de Londres, e a minha impressão era de todo mundo estava olhando para mim. Vergonha profunda”.
A segunda vez foi agora, quando o Nobel da Paz Perez Esquivel e o teólogo Leonardo Boff não puderam visitar o presidente Lula em Curitiba. “A foto Leonardo Boff sentadinho do lado de fora. Que país é esse? Que tristeza, que coisa sádica, cruel, para além do erro político”.
Guerra fria não terminou
Antes disso, falamos de EUA, de Europa, de geopolítica. Destacamos aqui um dos pontos: a entrada da Colômbia na OTAN –a primeira vez que um país da América do Sul se envolve nisso.
Nas palavras de Amorim: “Embora não exista a guerra fria no sentido tradicional, a guerra fria não terminou do ponto de vista geopolítico. A disputa por recursos naturais, por mercados, continua. Temos, com a entrada da Colômbia na OTAN, uma militarização dessa disputa na nossa fronteira. Acho uma coisa extremamente perigosa”.
Aliado a isso, Amorim acrescenta o cerco à Venezuela. “Trump chegou a dizer que não excluía a opção militar, uma coisa absolutamente louca. Não me lembro de um presidente ter dito isso sobre um país da América do Sul. Então, se tem um aliado militar dos EUA e uma situação delicada na Venezuela. Esse risco de uma ação militar que poderia até, no limite, esperamos que não, [tornar] a Venezuela num novo Vietnã”.
Amorim lamenta o fato de o Brasil ter hoje uma “política externa totalmente passiva e até submissa nesse aspecto”. Recorda que o ministro brasileiro declarou não poder trabalhar pela mediação na busca da paz da Venezuela porque o Brasil tem partido. “Isso faria o Rio Branco tremer no túmulo”, afirma.
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