Por Mariângela Nascimento, na revista Teoria e Debate:
Estamos comemorando 30 anos da Constituição de 1988, também chamada de “Constituição Cidadã”, tornando-se o símbolo da redemocratização brasileira. Os direitos foram ampliados e garantidos, brasileiros e brasileiras passam a ter acesso universal à educação, à saúde e à cultura. Os direitos humanos e as liberdades fundamentais passam a ter proteção jurídica. Foram estabelecidos mais direitos trabalhistas e os abusos do Estado estariam sob o controle de mecanismos institucionais. No campo da justiça, foi garantido o habeas corpus, além de outras instituições que configuraram a legitimação da retomada da democracia no Brasil.
Foi promulgado pela nova Constituição o princípio da independência e autonomia entre os poderes, e isso significou, para o Poder Judiciário, um princípio básico do constitucionalismo moderno como garantia do direito dos cidadãos e das cidadãs a uma justiça livre de pressões e de interferências do poder político de qualquer natureza. Em uma democracia, esse princípio é a garantia da realização da justiça, afastando, assim, o risco da seletividade e parcialidade.
Entretanto, o que temos visto no processo democrático brasileiro é o deslocamento considerável da ordem das coisas, trazendo para a cena política o embaralhamento das fronteiras entre os poderes, afrontando a “teoria da separação dos poderes”, deixando, assim, para o Poder Judiciário o protagonismo político. O Judiciário vem, há alguns anos, sobrepondo-se ao Congresso Nacional, quando assume a tarefa de legislador, comprometendo a autonomia entre os três poderes.
Essa hipertrofia do Judiciário reflete não apenas a crise de representação, mas a completa incapacidade do Legislativo em acompanhar as incontestáveis mudanças dos tempos atuais, que têm colocado à prova o sistema democrático em âmbito global. A consequência disso é: no lugar das normas promulgadas após extenso e completo processo legislativo democrático, respeitando a soberania popular, estão nos sendo impostas novas “normas”, fruto do arbítrio do Judiciário, o que nos lança em um enorme vazio democrático, transformando a vida pública e política em um tempo de incertezas que nos envolvem em um sentimento de perda dos parâmetros do sentido da justiça. Não há regras e normas que nos façam sentir em segurança, não há garantia de que nossa liberdade e nossos direitos serão mantidos e cumpridos.
A atual supremacia do Judiciário sobre a função legisladora retira do Poder Legislativo, cada vez mais, a sua legitimação dentro da estrutura organizacional do Estado, substituindo, em muitos casos, a vontade popular pela seletividade política de muitos juízes, que transferem aos seus julgados suas próprias experiências e convicções, ainda que absolutamente alheias às normas constituídas. Com isso, acaba prevalecendo a ideia de que aquele que tem poder de julgar pode transformar a sua convicção em força de lei, fundamentada apenas em elementos informativos (delações) colhidos na investigação e não pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial; procedendo assim, coloca à margem o marco legal que temos como parâmetro para que se faça justiça. Apega-se ao julgamento de um determinado caso particular para se valer ou não do texto da lei. Por causa desses acontecimentos, podemos afirmar que estamos diante de um caso de exceção: um juiz que investiga; que, antes mesmo do fato julgado, declara, publicamente, sua intenção punitiva; sente-se à vontade para postar e publicizar fotos com políticos da direita que, comprovadamente, são autores de crimes contra o erário público; promove uma celeridade no julgamento e prisão de Lula, nada comum ao Judiciário brasileiro, rapidez nunca antes vista neste país. Tudo isso já sabemos, é no caso Lula que se evidencia esse jogo perverso motivado por preferências político-partidárias. Não há argumento legal que justifique esse ativismo do Judiciário, e não há denúncia que faça parar as manobras em curso.
Não estamos aqui defendendo que as leis devam seguir sua literalidade exata, temos consciência de que o processo de interpretação normativa não pode se resumir à interpretação gramatical ou meramente literal da norma jurídica. Juízes não trabalham com fórmulas matemáticas, mas com a busca da melhor solução possível em dadas circunstâncias, ou seja, leis são interpretadas, requerem hermenêutica, mas isso pressupõe limites, para que tal interpretação esteja prevista na Constituição e não apenas visando objetivos político-partidários; e, para que não haja abusos e desvios por parte dos juízes, pressupõe-se que a discricionariedade se realize dentro dos limites legais, assegurados pelos valores da ordem democrática.
No Estado democrático, as decisões dos juízes estão sujeitas a vários fatores condicionantes, que os impedem de julgar como se o direito fosse livre, ao gosto do juiz. Isso exige que, em um processo, o juiz indique na sentença os motivos que formaram seu convencimento. No entanto, no caso Lula, valeram as convicções e não decisões assentadas na materialidade de provas, nas previsões da lei. É isso que mostra que não houve autonomia do Judiciário frente ao jogo político partidário e eleitoral.
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao interpretar uma regra constitucional e confirmar um precedente de que o cumprimento da pena (a prisão de Lula), quando esgotados os recursos de segunda instância, não fere a presunção de inocência, está sim em desacordo com a Constituição. Com essa interpretação, é negado o habeas corpus e confirmada a prisão de Lula antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, o que endossa uma decisão judicial carente de provas que justifiquem a condenação e confirma as intenções prévias de fazer valer a condenação a qualquer custo.
Agindo assim, o STF abre um precedente perigoso, expõe uma fissura jurídica difícil de ser removida. Precedente que coloca a sociedade em situação de vulnerabilidade diante dos intérpretes da lei. Que credibilidade a sociedade passará a ter por um sistema judicial que se vale de artifícios que não correspondem ao que reza a Constituição? Quem confiará em um sistema judicial que sofre pressões de um coronel e não se preocupa em se posicionar publicamente em relação a esse fato gravíssimo (exceto o ministro do STF Celso de Mello)?
Por essas razões, o que está posto no cenário da crise política, além do combate à corrupção, é o respeito e a credibilidade que serão prestados, a partir daí, pela população à Constituição.
Nesse cenário difícil, uma parcela da sociedade, incluindo muitos magistrados, tem questionado os métodos de investigação, o desrespeito aos direitos e garantias constitucionais, tem apontado as deficiências das provas e denunciado as atitudes autoritárias do Judiciário e a sua seletividade política. Diante desses fatos, a sociedade sabe que tem uma tarefa difícil pela frente, que é reverter a condição ficcional em que se encontra o nosso Estado de direito.
Quanto ao Poder Executivo, estamos vendo a celebração da força como instrumento legítimo para resolver conflitos. Com a intervenção federal (militar) no Rio de Janeiro (um laboratório para o Brasil), a violência foi instituída como dispositivo de controle e regulamento que mantém a vida das pessoas subalternizadas das favelas cariocas sob a vigilância total dos instrumentos “legais” de coerção. Essas são investidas antidemocráticas, são medidas de exceção que comprometem, em definitivo, a Constituição de 1988, que interrompem o processo democrático.
Estamos vivendo situações-limite, em que a vida não está segura em absoluto, em que cidadãs e cidadãos se encontram em tamanho estado de vulnerabilidade que o seu desaparecimento nem ao menos vem a se constituir em um fato, como acontece com jovens moradores da periferia deste país. As vozes dissonantes, que resistem a esse estado de coisas, que denunciam a criminalização do povo pobre, negro e trabalhador deste país, são brutalmente caladas, como foi Marielle Franco.
Nessas situações políticas excepcionais, lembra o filósofo Giorgio Agamben, as pessoas se encontram incluídas na ordem jurídica unicamente sob a forma de sua exclusão, pois constituem a figura jurídica daquele(a) que pode ser morto(a) por qualquer um, desde que tal morte não resulte em um ato ritualístico ou um processo jurídico. A excepcionalidade da intervenção e o uso da força policial encerram a noção de direito; em vista disso, as fronteiras que limitam o lícito do ilícito, o legal do ilegal já não fazem sentido.
A crise não é pequena. Este é o momento em que a esquerda poderá avaliar o passado, reconhecer erros, repensar estratégias de lutas e abrir as novas dinâmicas sociais em direção à radicalização da democracia, começando por democratizar o funcionamento interno dos partidos. Um novo horizonte abre-se como uma oportunidade única para que a esquerda encontre novas alternativas de conceber e praticar a política, e isso pressupõe abrir mão de posturas arrogantes e centralizadoras, respeitar a vontade popular, a mobilização social e não deixar de lado a formação política. Acho que esse é um bom começo para a construção de uma nova cultura política.
Lula livre tem que ser, além do cumprimento da justiça, o retorno à crença nas instituições deste país.
* Mariangela Nascimento é cientista política e professora na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
“A liberdade política do cidadão é aquela tranquilidade de espírito que vem da opinião de que todos têm segurança e, para que se possa estar de posse desta liberdade, o governo deve ser tal que um cidadão não tenha medo do outro." Montesquieu, O Espírito das Leis
Estamos comemorando 30 anos da Constituição de 1988, também chamada de “Constituição Cidadã”, tornando-se o símbolo da redemocratização brasileira. Os direitos foram ampliados e garantidos, brasileiros e brasileiras passam a ter acesso universal à educação, à saúde e à cultura. Os direitos humanos e as liberdades fundamentais passam a ter proteção jurídica. Foram estabelecidos mais direitos trabalhistas e os abusos do Estado estariam sob o controle de mecanismos institucionais. No campo da justiça, foi garantido o habeas corpus, além de outras instituições que configuraram a legitimação da retomada da democracia no Brasil.
Foi promulgado pela nova Constituição o princípio da independência e autonomia entre os poderes, e isso significou, para o Poder Judiciário, um princípio básico do constitucionalismo moderno como garantia do direito dos cidadãos e das cidadãs a uma justiça livre de pressões e de interferências do poder político de qualquer natureza. Em uma democracia, esse princípio é a garantia da realização da justiça, afastando, assim, o risco da seletividade e parcialidade.
Entretanto, o que temos visto no processo democrático brasileiro é o deslocamento considerável da ordem das coisas, trazendo para a cena política o embaralhamento das fronteiras entre os poderes, afrontando a “teoria da separação dos poderes”, deixando, assim, para o Poder Judiciário o protagonismo político. O Judiciário vem, há alguns anos, sobrepondo-se ao Congresso Nacional, quando assume a tarefa de legislador, comprometendo a autonomia entre os três poderes.
Essa hipertrofia do Judiciário reflete não apenas a crise de representação, mas a completa incapacidade do Legislativo em acompanhar as incontestáveis mudanças dos tempos atuais, que têm colocado à prova o sistema democrático em âmbito global. A consequência disso é: no lugar das normas promulgadas após extenso e completo processo legislativo democrático, respeitando a soberania popular, estão nos sendo impostas novas “normas”, fruto do arbítrio do Judiciário, o que nos lança em um enorme vazio democrático, transformando a vida pública e política em um tempo de incertezas que nos envolvem em um sentimento de perda dos parâmetros do sentido da justiça. Não há regras e normas que nos façam sentir em segurança, não há garantia de que nossa liberdade e nossos direitos serão mantidos e cumpridos.
A atual supremacia do Judiciário sobre a função legisladora retira do Poder Legislativo, cada vez mais, a sua legitimação dentro da estrutura organizacional do Estado, substituindo, em muitos casos, a vontade popular pela seletividade política de muitos juízes, que transferem aos seus julgados suas próprias experiências e convicções, ainda que absolutamente alheias às normas constituídas. Com isso, acaba prevalecendo a ideia de que aquele que tem poder de julgar pode transformar a sua convicção em força de lei, fundamentada apenas em elementos informativos (delações) colhidos na investigação e não pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial; procedendo assim, coloca à margem o marco legal que temos como parâmetro para que se faça justiça. Apega-se ao julgamento de um determinado caso particular para se valer ou não do texto da lei. Por causa desses acontecimentos, podemos afirmar que estamos diante de um caso de exceção: um juiz que investiga; que, antes mesmo do fato julgado, declara, publicamente, sua intenção punitiva; sente-se à vontade para postar e publicizar fotos com políticos da direita que, comprovadamente, são autores de crimes contra o erário público; promove uma celeridade no julgamento e prisão de Lula, nada comum ao Judiciário brasileiro, rapidez nunca antes vista neste país. Tudo isso já sabemos, é no caso Lula que se evidencia esse jogo perverso motivado por preferências político-partidárias. Não há argumento legal que justifique esse ativismo do Judiciário, e não há denúncia que faça parar as manobras em curso.
Não estamos aqui defendendo que as leis devam seguir sua literalidade exata, temos consciência de que o processo de interpretação normativa não pode se resumir à interpretação gramatical ou meramente literal da norma jurídica. Juízes não trabalham com fórmulas matemáticas, mas com a busca da melhor solução possível em dadas circunstâncias, ou seja, leis são interpretadas, requerem hermenêutica, mas isso pressupõe limites, para que tal interpretação esteja prevista na Constituição e não apenas visando objetivos político-partidários; e, para que não haja abusos e desvios por parte dos juízes, pressupõe-se que a discricionariedade se realize dentro dos limites legais, assegurados pelos valores da ordem democrática.
No Estado democrático, as decisões dos juízes estão sujeitas a vários fatores condicionantes, que os impedem de julgar como se o direito fosse livre, ao gosto do juiz. Isso exige que, em um processo, o juiz indique na sentença os motivos que formaram seu convencimento. No entanto, no caso Lula, valeram as convicções e não decisões assentadas na materialidade de provas, nas previsões da lei. É isso que mostra que não houve autonomia do Judiciário frente ao jogo político partidário e eleitoral.
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao interpretar uma regra constitucional e confirmar um precedente de que o cumprimento da pena (a prisão de Lula), quando esgotados os recursos de segunda instância, não fere a presunção de inocência, está sim em desacordo com a Constituição. Com essa interpretação, é negado o habeas corpus e confirmada a prisão de Lula antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, o que endossa uma decisão judicial carente de provas que justifiquem a condenação e confirma as intenções prévias de fazer valer a condenação a qualquer custo.
Agindo assim, o STF abre um precedente perigoso, expõe uma fissura jurídica difícil de ser removida. Precedente que coloca a sociedade em situação de vulnerabilidade diante dos intérpretes da lei. Que credibilidade a sociedade passará a ter por um sistema judicial que se vale de artifícios que não correspondem ao que reza a Constituição? Quem confiará em um sistema judicial que sofre pressões de um coronel e não se preocupa em se posicionar publicamente em relação a esse fato gravíssimo (exceto o ministro do STF Celso de Mello)?
Por essas razões, o que está posto no cenário da crise política, além do combate à corrupção, é o respeito e a credibilidade que serão prestados, a partir daí, pela população à Constituição.
Nesse cenário difícil, uma parcela da sociedade, incluindo muitos magistrados, tem questionado os métodos de investigação, o desrespeito aos direitos e garantias constitucionais, tem apontado as deficiências das provas e denunciado as atitudes autoritárias do Judiciário e a sua seletividade política. Diante desses fatos, a sociedade sabe que tem uma tarefa difícil pela frente, que é reverter a condição ficcional em que se encontra o nosso Estado de direito.
Quanto ao Poder Executivo, estamos vendo a celebração da força como instrumento legítimo para resolver conflitos. Com a intervenção federal (militar) no Rio de Janeiro (um laboratório para o Brasil), a violência foi instituída como dispositivo de controle e regulamento que mantém a vida das pessoas subalternizadas das favelas cariocas sob a vigilância total dos instrumentos “legais” de coerção. Essas são investidas antidemocráticas, são medidas de exceção que comprometem, em definitivo, a Constituição de 1988, que interrompem o processo democrático.
Estamos vivendo situações-limite, em que a vida não está segura em absoluto, em que cidadãs e cidadãos se encontram em tamanho estado de vulnerabilidade que o seu desaparecimento nem ao menos vem a se constituir em um fato, como acontece com jovens moradores da periferia deste país. As vozes dissonantes, que resistem a esse estado de coisas, que denunciam a criminalização do povo pobre, negro e trabalhador deste país, são brutalmente caladas, como foi Marielle Franco.
Nessas situações políticas excepcionais, lembra o filósofo Giorgio Agamben, as pessoas se encontram incluídas na ordem jurídica unicamente sob a forma de sua exclusão, pois constituem a figura jurídica daquele(a) que pode ser morto(a) por qualquer um, desde que tal morte não resulte em um ato ritualístico ou um processo jurídico. A excepcionalidade da intervenção e o uso da força policial encerram a noção de direito; em vista disso, as fronteiras que limitam o lícito do ilícito, o legal do ilegal já não fazem sentido.
A crise não é pequena. Este é o momento em que a esquerda poderá avaliar o passado, reconhecer erros, repensar estratégias de lutas e abrir as novas dinâmicas sociais em direção à radicalização da democracia, começando por democratizar o funcionamento interno dos partidos. Um novo horizonte abre-se como uma oportunidade única para que a esquerda encontre novas alternativas de conceber e praticar a política, e isso pressupõe abrir mão de posturas arrogantes e centralizadoras, respeitar a vontade popular, a mobilização social e não deixar de lado a formação política. Acho que esse é um bom começo para a construção de uma nova cultura política.
Lula livre tem que ser, além do cumprimento da justiça, o retorno à crença nas instituições deste país.
* Mariangela Nascimento é cientista política e professora na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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