domingo, 13 de maio de 2018

Um ano de Macron na França

Foto: Francois Mori/dpa
Por Eduardo Febbro, no site Carta Maior: 

O bom humor com que o periódico matutino Libération celebra o primeiro ano da presidência de Emmanuel Macron é um espelho reflete todas as pesquisas de opinião. A manchete diz: “a direita finalmente tem o seu presidente”. O homem que em algum momento disse ser “socialista” (em 2014) e que logo postulou à presidência com uma proposta “nem de esquerda nem de direita”, ou “ao mesmo tempo de esquerda e de direita”, se afiançou como um dirigente percebido como de direita. O ritmo acelerado das reformas e sua orientação liberal valeram a ele o adjetivo de “presidente dos ricos”, ao qual se agregou outra sentença, pronunciada pelo ex-presidente François Hollande, de quem Macron foi ministro de Finanças: “o presidente dos muito ricos”. 

Tudo é paradoxal demais nesta história política. Primero porque o mesmo Macron é uma invenção dos socialistas, e depois porque seu “ao mesmo tempo” não resistiu à avaliação da realidade. Uma pesquisa realizada pelo Centro de Investigações políticas da Universidade de Ciências Políticas (Cevipof) com a consultora Ipsos-Sopra Steria e o jornal Le Monde, oferece uma radiografia frondosa sobre o mandatário: 70% da população o vê como um “presidente de direita”, 55% dos franceses sente que estes 365 dias de mandato tem sido “negativo”, enquanto 45% o acha positivo. Todos os indicadores o retratam como um chefe de Estado pouco social. Segundo a mesma sondagem, 78% dos entrevistados opina que, no que diz respeito à política para a diminuição das desigualdades, Executivo segue na direção incorreta. O rótulo de “presidente dos ricos” também está refletido na opinião majoritária: 76% estima que sua política “beneficia as classes mais acomodadas”.

Ao longo deste ano transcorrido, o macronismo executou uma sinfonia de reformas de caráter pouco social: retocou o imposto aplicado às grandes fortunas (ISF) e, entre outras modificações, deixou fora das taxações as ações financeiras, recalculou e rebaixou o imposto dos lucros do capital, suprimiu um imposto que as grandes fortunas pagavam quando se instalavam no exterior – e que foi instaurado por Nicolas Sarkozy, em 2011, para combater a evasão fiscal –, diminuiu várias ajudas sociais, incrementou o imposto aos aposentados, flexibilizou o mercado de trabalho mediante decretos – e com isso aprofundou a reforma da lei trabalhista impulsada por François Hollande –, reforçou os poderes do Ministério de Interior em detrimento do Poder Judiciário, lançou uma reforma da Companhia Nacional de Ferrovias (SCNF) que acarretou greves, modificou o funcionamento das universidades e fortaleceu a política migratória da França. 

Tudo isso sem consentir a mais mínima negociação com os sindicatos. “O hemisfério esquerdo do presidente ainda dorme: o outro funciona plenamente”, escreve o semanário Le Nouvel Observateur. Para muitos analistas, a ação do presidente não é outra coisa senão a estrita aplicação do programa do Medef, o organismo que agrupa o patronato francês. Com um presidente “nem de esquerda nem de direita”, seus sonhos se tornaram realidade: cortaram os gastos sociais, facilitaram as demissões, se empreendeu uma cruzada contra o déficit orçamentário, se iniciou um emagrecimento do funcionalismo público e, globalmente, se desenhou uma política para fazer da França um refúgio atrativo para os capitais. O prêmio foi dado pela revista Forbes. Em sua primeira página, com uma foto de Macron com pose de feliz ganhador da loteria, a Forbes o classificou como o leader of the free markets (“líder dos mercados livres). O macronismo têm irmandades evidentes com o macrismo na Argentina. Como escreve o portal Mediapart: “o governo instalado por Emmanuel Macron encarna o caráter poroso entre as grandes esferas do Estado e os interesses dos grupos privados”.

O maior sucesso da retórica “nem de esquerda nem de direita”, que se traduziu pela simpática definição de “extremo centro”, radica em que Emmanuel Macron aspirou quase tudo o que se encontrava à direita, e também a chamada “esquerda de governo”. Entenda-se: a socialdemocracia do Partido Socialista. O PS procura a si mesmo, entre um monte de espelhos fragmentados, e a parte da direita moderada, que antes votava pelo partido do ex-presidente Nicolas Sarkozy (Republicanos), não teve outra opção a não ser disputar território com a também convulsionada extrema direita da Frente Nacional, de Marine Le Pen. Seus eleitores se ampararam, em boa parte, sob o guarda-chuvas macronista, e o mesmo fizeram os socialistas. Com isso, Macron consegue reinar no espaço do “ao mesmo tempo”, ou seja, pela antiga esquerda e direita de governo. 

Esta configuração deixou levou a esquerda radical de Jean-Luc Mélenchon a se conformar com principal frente opositora (coalizão França Insubmissa). Essa esquerda radical não conta, por enquanto, com a possibilidade de se tornar uma força de governo. Mélenchon mobilizou muita gente nas ruas contra, por exemplo, a reforma trabalhista, sem que isso pudesse fazer balançar o governo de Emmanuel Macron, que passou a encarnar, após um ano, uma espécie de direita liberal de caráter autoritário. A decomposição do socialismo e dos conservadores Republicanos facilitaram seu passeio anual como presidente. Estes dois eixos opositores, quando muito, fazem cócegas. Macron tem sido um camaleão implacável. Defende um grande projeto eleitoral que consiste em “reformar profundamente” a França, sem se preocupar com a condição estrutural que, antes, dava tantas dores de cabeça aos seus antecessores: a negociação com os setores sociais. 

A greve dos ferroviários persiste (já está em seu segundo mês), muitas universidades continuam ocupadas, os jubilados reclamam pelo sacrifício de seu poder aquisitivo e, há alguns dias, o presidente do grupo Air France renunciou porque foi incapaz de acabar com a greve da companhia. Emmanuel Macron passou por cima dessa e tantas negociações, em grande parte devido à debilidade dos opositores tradicionais, e a perda de eficácia do movimento sindical. Na verdade, seus adversários tradicionais se destruíram antes de poder enfrenta-lo. O PS se desmontou muito antes da eleição presidencial, e a direita viveu um martírio semelhante. Só a esquerda radical prospera, embora, no momento, ainda não tenha conseguido ir além dos seus territórios cativos. Os analistas franceses, aos poucos, despertam de sua letargia. Durante muitos meses, se perguntaram o que era exatamente o macronismo. Não há mais mistério. É um habilidoso sedutor que ofereceu um castelo, que é decorado ocultamente com as cores do mobiliário liberal.

Um comentário:

  1. Com todo respeito, mas as análises do Eduardo Febbro têm ficado cada vez mais ruins. Parece que ele se reporta a um "espelho fragmentado", através do qual enxerga a luta institucional na França. Está perdido ao testemunhar a degenerescência do Estado de Bem Estar na França. Afinal de contas, Febbro é (ou, pelo menos,era, até a eleição de Hollande) confessadamente, um simpatizante da socialdemocracia europeia, e do PS francês, em particular. A meu ver, apenas a título de hipótese, a questão central, que escapa à análise de Febbro, é a incompatibilidade de coexistência entre o atual estágio alcançado pelo capitalismo, hegemonizado pelo capital financeiro globalizado, e os Estados de Bem Estar europeus. Se minha intuição estiver correta, a pergunta pertinente é "aonde é que isso vai dar?". Não vejo solução fora da reafirmação da necessidade de superar o capitalismo revolucionariamente. Uma nova "Era de Revoluções", inscrita naquela sequência descrita por Eric Hobsbawm pode estar sendo gestada, para desespero daqueles que, como Febbro, gostam de taxar os que acreditam na atualidade das perspectivas revolucionárias como "esquerda ultra-radical". Avatar Lincon Bicalho

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