Por Vitor Filgueiras e José Dari Krein, no site Brasil Debate:
Os preços dos combustíveis têm sido o foco dos debates relacionados ao movimento que praticamente paralisou o transporte de mercadorias no Brasil desde a semana passada. Isso não surpreende, pois, de fato, esses preços (particularmente do diesel) foram o estopim da disputa que estamos assistindo.
Desde então, muito tem se falado na Petrobras e na gestão da empresa, o que é certamente algo bastante relevante, não apenas pela sua influência nos preços dos combustíveis, bem como por conta do papel que a maior empresa do país tem em seu desenvolvimento.Também têm aparecido muitas referências à dependência da economia brasileira em relação ao transporte rodoviário como a variável chave para explicar o imenso impacto das paralisações nas rodovias.
Mas há algo essencial que não tem aparecido nas discussões: como a forma de regulação do trabalho no transporte rodoviário de cargas é uma raiz da crise. O modo como muitas empresas organizam os trabalhadores que transportam as mercadorias é muito interessante para os seus negócios sob diferentes aspectos, dentre eles, a tendência a externalizar os conflitos distributivos inerentes à produção baseada no trabalho assalariado.
Ao invés de contratar trabalhadores formalmente como empregados, empresas que distribuem suas mercadorias ou aquelas especializadas em transporte de carga contratam centenas de milhares de motoristas como se fossem autônomos (via pessoa física ou jurídica). Essa estratégia não é exclusividade do setor, nem se restringe ao Brasil. Pelo contrário, é um expediente que tem se expandido em várias atividades e em diversas partes do mundo. No nosso país, com a crise do emprego nos últimos anos, essa forma de contratação tem crescido no conjunto do mercado de trabalho [1].
Não se pode confundir o verdadeiro trabalhador autônomo, aquele não submetido ao arbítrio alheio, com a estratégia de contratação na qual as empresas não admitem sua condição de empregadoras. Motorista autônomo, de fato, é aquele que presta serviços para diferentes clientes, sem depender, nem estar subordinado, a nenhum deles. Por exemplo, autônomo é aquele motorista para o qual você liga uma vez para fazer o carreto de sua geladeira. Existem muitos trabalhadores com esse perfil, mas eles não são a maioria, nem os protagonistas do transporte de cargas no Brasil.
Quem dita a dinâmica do setor são empresas, sejam elas donas das cargas ou firmas especializadas no próprio transporte. Elas contratam e gerem centenas de milhares de trabalhadores para realizar as atividades de distribuição. Para isso, uma parte dos motoristas é admitida como empregado, enquanto outra fatia, provavelmente a maior, é contratada como se não fosse assalariada, a despeito da sua subordinação aos ditames empresariais. No início de 2017, de acordo com a Confederação Nacional dos Transportes (CNT), estavam inscritos 1.664 milhão de veículos para transporte de cargas no país, sendo 1.088 milhão de propriedade de empresas e 553 mil vinculados a motoristas classificados como autônomos [2].
Enquanto isso, segundo a RAIS, as empresas de transporte de carga mantinham não mais do que 868 mil trabalhadores como empregados formais, aí incluídos não apenas motoristas, mas todas as demais funções.
As nomenclaturas podem confundir (carreteiro/agregado – Transportador Autônomo de Carga (TAC) – Eventual/(TAC) – Agregado, Empresa de Transporte Rodoviário de Cargas – ETC), mas a contratação de motoristas sem a admissão do vínculo de emprego tem a mesma lógica: é uma estratégia de gestão do trabalho. É comum motoristas supostamente autônomos (muitas vezes contratados como pessoas jurídicas) trabalharem sempre para a mesma empresa e com exclusividade, em horário e com preços de frete unilateralmente impostos pela contratante. O pagamento desses motoristas depende exclusivamente do número de fretes realizados, e seu trabalho é meticulosamente monitorado por satélite/GPS. As empresas também dirigem as atividades impondo prazos exíguos e multas para atrasos. Em suma, há uma série de evidências da completa falta de autonomia desses “autônomos”.
É possível ter uma ideia da dimensão da gestão do trabalho via contratação de motoristas sem formalização do vínculo de emprego por meio de dados das Fiscalizações do Ministério do Trabalho. Para ilustrar, em 2012, auditorias em apenas 9 empresas de transporte de carga identificaram que 92.654 motoristas de caminhão trabalharam como empregados sem carteira assinada, sendo irregularmente contratados como “autônomos” pessoas físicas ou vinculados a 20.458 pessoas jurídicas terceirizadas.
Ao contratar motoristas sem admitir sua condição de empregadoras, as empresas não cumprem nenhum direito trabalhista. Assim, tornam a vida desses trabalhadores completamente inseguras, sem sequer uma renda mínima (um salário básico) para sobreviver. O frete, que, de fato, constitui o salário desses trabalhadores, costuma não obedecer qualquer parâmetro mínimo. Também não há descanso remunerado, férias etc. O motorista se sente completamente dependente da execução de cada serviço,e por isso tende a trabalhar mais e descansar menos.
Apenas nas Fiscalizações do Ministério do Trabalho citadas foram identificadas 472.606 jornadas de trabalho superiores a 10 horas por dia. Segundo o órgão, a maioria dos acidentes envolvendo caminhões está relacionado ao cansaço por jornadas excessivas. Não parece ser coincidência que, em pesquisa da própria CNT[3], de 2016, só 23,3% dos motoristas entrevistados ditos autônomos afirmaram estar satisfeitos e cumprindo as normas de descanso e 65% disseram não cumprir a lei, enquanto entre os motoristas empregados, 67% estavam satisfeitos e 51,7% afirmaram cumprir os descansos previstos na lei. Apenas 21% dos autônomos disseram que flexibilidade de horário é um ponto positivo do trabalho.
A questão, do ponto de vista da gestão do trabalho, é que o trabalhador contratado como autônomo tende a ser ainda mais subordinado à empresa, pois sua relação é completamente precária e cada frete pode ser o último.
Mas não para por aí. À negação dos direitos trabalhistas se soma a transferência dos custos dos insumos (combustível, pneus, manutenção etc.) aos trabalhadores ditos autônomos. Desse modo, além de não ter renda certa, os motoristas têm que cobrir os custos inerentes à atividade, radicalizando sua insegurança. As empresas gastam menos, correm menos risco e têm um trabalhador ainda mais dócil laborando em seu benefício.
Não bastasse, ao transferir para o trabalhador o risco do negócio, incluindo os custos dos insumos, as empresas têm conseguido desviar da relação de trabalho o foco da disputa distributiva. Aceitando a condição de “autônomo” imposta pelas empresas, o motorista tem visto nos preços dos insumos uma fonte de determinação dos seus ganhos mais importante do que o preço pago pelos seus serviços. Antes da atual crise, outras mobilizações já traziam como principal demanda o preço do combustível. Segundo a supracitada pesquisa da CNT, 56,4% dos motoristas enquadrados como autônomos considerava o custo do combustível o principal problema do seu trabalho (contra apenas 24,9% dos contratados como empregados), e apenas 1% apontava o valor do frete como a reivindicação mais importante para a categoria.
Pensemos o seguinte: por que a mobilização para reduzir o preço do diesel não atinge os motoristas de ônibus? A resposta é simples: Porque as empresas de ônibus (ainda) não negam a condição de assalariamento dos seus trabalhadores e, consequentemente, o aumento do preço é um problema fundamentalmente das empresas. Quão improvável é ver trabalhadores de siderúrgicas e montadoras de carros reivindicando a redução do preço do carvão e dos pneus, ao invés de pleitear melhores salários?
Estamos tratando da atividade em que mais morrem empregados no Brasil todos os anos, segundo as fontes oficiais – mais de 10% dos mortos no conjunto do mercado de trabalho formal, consideradas as atividades isoladamente. Como a subnotificação dos infortúnios pode chegar a 90% entre todos os trabalhadores acidentados no Brasil [4], ela provavelmente é pior no setor de cargas, dado o desproporcional contingente de motoristas não admitidos como empregados formais.
Vale ressaltar que a regulação pública do trabalho, seja nas leis, seja na atuação das instituições, têm contribuído para legitimar esse cenário. A contratação de trabalhadores como autônomos, pelas empresas, não é novidade no setor, mas parece ter piorado. A regulação dos TAC, ETC etc. tende a legitimar e recrudescer essa estratégia, ainda mais estimulada com a recente reforma trabalhista. No judiciário, a disputa sobre os limites ao uso de motoristas de carga como assalariados disfarçados está suspensa desde o final de 2017, por conta de uma liminar do STF concedida por Luís Roberto Barroso [5].
O processo de disputa focado no preço dos insumos não é determinístico. Mesmo no assalariamento disfarçado dos motoristas contratados como autônomos, a luta poderia ser por melhores salários. A rigor, a demanda está presente na atual greve, pois a tabela com preço mínimo do frete é apenas um eufemismo para uma espécie de salário mínimo. Todavia, tal demanda está longe de ser a pauta que tem sido mais enfatizada. Os motoristas parecem mesmo assumir a retórica empresarial de que são autônomos, de modo que sofrem, morrem, mas não demandam serem menos explorados por seus empregadores.
Quase todas as análises sobre o movimento dos caminhoneiros, assim como ocorre em outros casos em que o assalariamento não é explícito, assimilam acriticamente a condição de “autônomos” dos trabalhadores, sem perceber que a própria designação é um elemento central da gestão do trabalho pelas empresas. Enquanto isso, por ser no custo do insumo a disputa que estamos assistindo, os empresários se aproveitam da afinidade eletiva entre patrões e empregados, e apoiam (ou mesmo promovem) as paralisações.
A regulação do trabalho é um elemento estrutural para entender os eventos recentes no Brasil. Trabalhadores são precarizados e geridos pelas empresas de tal modo que direcionam seus esforços sem perceberem ou serem capazes de enfrentar quem fundamentalmente impõe seus baixos rendimentos, grande instabilidade e péssimas condições de trabalho.
Notas
1- Pesquisa CNT de perfil dos caminhoneiros 2016. – Brasília: CNT, 2016.
2 – Anuário CNT do transporte – estatísticas consolidadas 2017. – Brasília: CNT, 2017.
3- Pesquisa CNT de perfil dos caminhoneiros 2016. – Brasília: CNT, 2016.
4 – Ver, Filgueiras, Vitor. Saúde e segurança do trabalho no Brasil. 1. ed. Brasília: Movimento, 2017. Disponível em: http://www.cesit.net.br/saude-e-seguranca-do-trabalho-no-brasil/
5 – Se o leitor não tiver medo de se assustar com o nível a que pode chegar uma decisão judicial, vale a leitura da redação de Barroso, disponível na internet. Recomendamos, para compensar, o texto de Rodrigo Carelli: “Barroso versus o mundo: o contrato-realidade e o transportador autônomo de cargas”, disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/barroso-versus-o-mundo-o-contrato-realidade-e-o-transportador-autonomo-de-cargas-21032018.
Os preços dos combustíveis têm sido o foco dos debates relacionados ao movimento que praticamente paralisou o transporte de mercadorias no Brasil desde a semana passada. Isso não surpreende, pois, de fato, esses preços (particularmente do diesel) foram o estopim da disputa que estamos assistindo.
Desde então, muito tem se falado na Petrobras e na gestão da empresa, o que é certamente algo bastante relevante, não apenas pela sua influência nos preços dos combustíveis, bem como por conta do papel que a maior empresa do país tem em seu desenvolvimento.Também têm aparecido muitas referências à dependência da economia brasileira em relação ao transporte rodoviário como a variável chave para explicar o imenso impacto das paralisações nas rodovias.
Mas há algo essencial que não tem aparecido nas discussões: como a forma de regulação do trabalho no transporte rodoviário de cargas é uma raiz da crise. O modo como muitas empresas organizam os trabalhadores que transportam as mercadorias é muito interessante para os seus negócios sob diferentes aspectos, dentre eles, a tendência a externalizar os conflitos distributivos inerentes à produção baseada no trabalho assalariado.
Ao invés de contratar trabalhadores formalmente como empregados, empresas que distribuem suas mercadorias ou aquelas especializadas em transporte de carga contratam centenas de milhares de motoristas como se fossem autônomos (via pessoa física ou jurídica). Essa estratégia não é exclusividade do setor, nem se restringe ao Brasil. Pelo contrário, é um expediente que tem se expandido em várias atividades e em diversas partes do mundo. No nosso país, com a crise do emprego nos últimos anos, essa forma de contratação tem crescido no conjunto do mercado de trabalho [1].
Não se pode confundir o verdadeiro trabalhador autônomo, aquele não submetido ao arbítrio alheio, com a estratégia de contratação na qual as empresas não admitem sua condição de empregadoras. Motorista autônomo, de fato, é aquele que presta serviços para diferentes clientes, sem depender, nem estar subordinado, a nenhum deles. Por exemplo, autônomo é aquele motorista para o qual você liga uma vez para fazer o carreto de sua geladeira. Existem muitos trabalhadores com esse perfil, mas eles não são a maioria, nem os protagonistas do transporte de cargas no Brasil.
Quem dita a dinâmica do setor são empresas, sejam elas donas das cargas ou firmas especializadas no próprio transporte. Elas contratam e gerem centenas de milhares de trabalhadores para realizar as atividades de distribuição. Para isso, uma parte dos motoristas é admitida como empregado, enquanto outra fatia, provavelmente a maior, é contratada como se não fosse assalariada, a despeito da sua subordinação aos ditames empresariais. No início de 2017, de acordo com a Confederação Nacional dos Transportes (CNT), estavam inscritos 1.664 milhão de veículos para transporte de cargas no país, sendo 1.088 milhão de propriedade de empresas e 553 mil vinculados a motoristas classificados como autônomos [2].
Enquanto isso, segundo a RAIS, as empresas de transporte de carga mantinham não mais do que 868 mil trabalhadores como empregados formais, aí incluídos não apenas motoristas, mas todas as demais funções.
As nomenclaturas podem confundir (carreteiro/agregado – Transportador Autônomo de Carga (TAC) – Eventual/(TAC) – Agregado, Empresa de Transporte Rodoviário de Cargas – ETC), mas a contratação de motoristas sem a admissão do vínculo de emprego tem a mesma lógica: é uma estratégia de gestão do trabalho. É comum motoristas supostamente autônomos (muitas vezes contratados como pessoas jurídicas) trabalharem sempre para a mesma empresa e com exclusividade, em horário e com preços de frete unilateralmente impostos pela contratante. O pagamento desses motoristas depende exclusivamente do número de fretes realizados, e seu trabalho é meticulosamente monitorado por satélite/GPS. As empresas também dirigem as atividades impondo prazos exíguos e multas para atrasos. Em suma, há uma série de evidências da completa falta de autonomia desses “autônomos”.
É possível ter uma ideia da dimensão da gestão do trabalho via contratação de motoristas sem formalização do vínculo de emprego por meio de dados das Fiscalizações do Ministério do Trabalho. Para ilustrar, em 2012, auditorias em apenas 9 empresas de transporte de carga identificaram que 92.654 motoristas de caminhão trabalharam como empregados sem carteira assinada, sendo irregularmente contratados como “autônomos” pessoas físicas ou vinculados a 20.458 pessoas jurídicas terceirizadas.
Ao contratar motoristas sem admitir sua condição de empregadoras, as empresas não cumprem nenhum direito trabalhista. Assim, tornam a vida desses trabalhadores completamente inseguras, sem sequer uma renda mínima (um salário básico) para sobreviver. O frete, que, de fato, constitui o salário desses trabalhadores, costuma não obedecer qualquer parâmetro mínimo. Também não há descanso remunerado, férias etc. O motorista se sente completamente dependente da execução de cada serviço,e por isso tende a trabalhar mais e descansar menos.
Apenas nas Fiscalizações do Ministério do Trabalho citadas foram identificadas 472.606 jornadas de trabalho superiores a 10 horas por dia. Segundo o órgão, a maioria dos acidentes envolvendo caminhões está relacionado ao cansaço por jornadas excessivas. Não parece ser coincidência que, em pesquisa da própria CNT[3], de 2016, só 23,3% dos motoristas entrevistados ditos autônomos afirmaram estar satisfeitos e cumprindo as normas de descanso e 65% disseram não cumprir a lei, enquanto entre os motoristas empregados, 67% estavam satisfeitos e 51,7% afirmaram cumprir os descansos previstos na lei. Apenas 21% dos autônomos disseram que flexibilidade de horário é um ponto positivo do trabalho.
A questão, do ponto de vista da gestão do trabalho, é que o trabalhador contratado como autônomo tende a ser ainda mais subordinado à empresa, pois sua relação é completamente precária e cada frete pode ser o último.
Mas não para por aí. À negação dos direitos trabalhistas se soma a transferência dos custos dos insumos (combustível, pneus, manutenção etc.) aos trabalhadores ditos autônomos. Desse modo, além de não ter renda certa, os motoristas têm que cobrir os custos inerentes à atividade, radicalizando sua insegurança. As empresas gastam menos, correm menos risco e têm um trabalhador ainda mais dócil laborando em seu benefício.
Não bastasse, ao transferir para o trabalhador o risco do negócio, incluindo os custos dos insumos, as empresas têm conseguido desviar da relação de trabalho o foco da disputa distributiva. Aceitando a condição de “autônomo” imposta pelas empresas, o motorista tem visto nos preços dos insumos uma fonte de determinação dos seus ganhos mais importante do que o preço pago pelos seus serviços. Antes da atual crise, outras mobilizações já traziam como principal demanda o preço do combustível. Segundo a supracitada pesquisa da CNT, 56,4% dos motoristas enquadrados como autônomos considerava o custo do combustível o principal problema do seu trabalho (contra apenas 24,9% dos contratados como empregados), e apenas 1% apontava o valor do frete como a reivindicação mais importante para a categoria.
Pensemos o seguinte: por que a mobilização para reduzir o preço do diesel não atinge os motoristas de ônibus? A resposta é simples: Porque as empresas de ônibus (ainda) não negam a condição de assalariamento dos seus trabalhadores e, consequentemente, o aumento do preço é um problema fundamentalmente das empresas. Quão improvável é ver trabalhadores de siderúrgicas e montadoras de carros reivindicando a redução do preço do carvão e dos pneus, ao invés de pleitear melhores salários?
Estamos tratando da atividade em que mais morrem empregados no Brasil todos os anos, segundo as fontes oficiais – mais de 10% dos mortos no conjunto do mercado de trabalho formal, consideradas as atividades isoladamente. Como a subnotificação dos infortúnios pode chegar a 90% entre todos os trabalhadores acidentados no Brasil [4], ela provavelmente é pior no setor de cargas, dado o desproporcional contingente de motoristas não admitidos como empregados formais.
Vale ressaltar que a regulação pública do trabalho, seja nas leis, seja na atuação das instituições, têm contribuído para legitimar esse cenário. A contratação de trabalhadores como autônomos, pelas empresas, não é novidade no setor, mas parece ter piorado. A regulação dos TAC, ETC etc. tende a legitimar e recrudescer essa estratégia, ainda mais estimulada com a recente reforma trabalhista. No judiciário, a disputa sobre os limites ao uso de motoristas de carga como assalariados disfarçados está suspensa desde o final de 2017, por conta de uma liminar do STF concedida por Luís Roberto Barroso [5].
O processo de disputa focado no preço dos insumos não é determinístico. Mesmo no assalariamento disfarçado dos motoristas contratados como autônomos, a luta poderia ser por melhores salários. A rigor, a demanda está presente na atual greve, pois a tabela com preço mínimo do frete é apenas um eufemismo para uma espécie de salário mínimo. Todavia, tal demanda está longe de ser a pauta que tem sido mais enfatizada. Os motoristas parecem mesmo assumir a retórica empresarial de que são autônomos, de modo que sofrem, morrem, mas não demandam serem menos explorados por seus empregadores.
Quase todas as análises sobre o movimento dos caminhoneiros, assim como ocorre em outros casos em que o assalariamento não é explícito, assimilam acriticamente a condição de “autônomos” dos trabalhadores, sem perceber que a própria designação é um elemento central da gestão do trabalho pelas empresas. Enquanto isso, por ser no custo do insumo a disputa que estamos assistindo, os empresários se aproveitam da afinidade eletiva entre patrões e empregados, e apoiam (ou mesmo promovem) as paralisações.
A regulação do trabalho é um elemento estrutural para entender os eventos recentes no Brasil. Trabalhadores são precarizados e geridos pelas empresas de tal modo que direcionam seus esforços sem perceberem ou serem capazes de enfrentar quem fundamentalmente impõe seus baixos rendimentos, grande instabilidade e péssimas condições de trabalho.
Notas
1- Pesquisa CNT de perfil dos caminhoneiros 2016. – Brasília: CNT, 2016.
2 – Anuário CNT do transporte – estatísticas consolidadas 2017. – Brasília: CNT, 2017.
3- Pesquisa CNT de perfil dos caminhoneiros 2016. – Brasília: CNT, 2016.
4 – Ver, Filgueiras, Vitor. Saúde e segurança do trabalho no Brasil. 1. ed. Brasília: Movimento, 2017. Disponível em: http://www.cesit.net.br/saude-e-seguranca-do-trabalho-no-brasil/
5 – Se o leitor não tiver medo de se assustar com o nível a que pode chegar uma decisão judicial, vale a leitura da redação de Barroso, disponível na internet. Recomendamos, para compensar, o texto de Rodrigo Carelli: “Barroso versus o mundo: o contrato-realidade e o transportador autônomo de cargas”, disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/barroso-versus-o-mundo-o-contrato-realidade-e-o-transportador-autonomo-de-cargas-21032018.
* Publicado originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos.
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