Por Luiz Sugimoto, no site da Fundação Maurício Grabois:
Já está na praça um novo livro de Ricardo Antunes, O Privilégio da Servidão (Boitempo Editoral), em que o sociólogo e professor da Unicamp apresenta uma análise detalhada das mudanças trabalhistas que ocorreram no mundo do trabalho contemporâneo nos países capitalistas centrais e no Brasil, tendo como eixo a explosão de um novo proletariado de serviços, que se desenvolve com o trabalho digital, online e intermitente. “O que é o privilégio da servidão, hoje? Dei um curso no ano passado como professor visitante na Universidade Ca’Foscari, em Veneza, para alunos da 'laurea magistral'. Se eles derem sorte, serão 'novos servos': vão ter muitas dificuldades de encontrar trabalho e poderão abrir e fechar as portas dos vaporettos [pequenas embarcações típicas daquela cidade], ganhando 600 euros por mês e trabalhando por cinco ou seis meses”, exemplifica em tom crítico o autor do livro, revelando que extraiu o título de uma citação da obra de Albert Camus, O Primeiro Homem.
Ricardo Antunes recorda que, quando Michel Temer tomou posse, deu uma dura entrevista ao Jornal da Unicamp acusando o PL 4330, projeto de lei da terceirização do trabalho, como da “legalização da burla”. “Eu disse que adentrávamos, então, numa era de devastação das relações de trabalho no Brasil. Quando o governo Temer, com o apoio do lado pantanoso e majoritário do Congresso, percebeu que tudo iria passar, foi buscar as vozes mais obscurantistas do direito do anti-trabalho para – em nome do direito ao trabalho – montar um arsenal de mais de 100 mudanças para não deixar pedra sobre pedra da CLT. As medidas estavam no programa da CNI [Confederação Nacional da Indústria] e também na proposta do PMDB de ‘Uma ponte para o futuro’, que na época chamamos de ‘Uma ponte para o abismo’. E agora já estamos nele.”
Segundo o sociólogo, era uma exigência dos capitais destruir a espinha dorsal da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), o que Fernando Henrique Cardoso tentou fazer e não conseguiu. “Lula jamais cumpriria esse papel, mas é bom lembrar que em seu projeto de reforma trabalhista e sindical, de 2004-2005, estava prevista uma flexibilização branda da CLT, trazendo o risco, embora bem pequeno, de se impor o negociado sobre o legislado. E Temer veio como um governo contratado pelos capitais para derrogar a legislação social protetora do trabalho. Para fazer a devastação. Mas cabe um parêntese: não se trata somente de um método Temer de devastação do trabalho, vivemos uma contrarrevolução burguesa de amplitude global: vide Trump [EUA], Theresa May [Reino Unido e o Brexit], Macron [França], Piñera [Chile], Macri [Argentina]...”
Um imperativo anterior dos capitais, observa Antunes, era a terceirização-meio, a pretexto de deixar as atividades menos importantes para terceiros, ficando para as empresas as atividades fins. “Uma mentira, porque depois de conseguirem a terceirização-meio, agora impõem a terceirização total. Já pude afirmar que a terceirização total é uma espécie de volta da escravidão. Alguém vai questionar: como assim, escravo? É que a nossa fala é metafórica: na escravidão, o proprietário de terras comprava o escravo; na terceirização, o empresário aluga os trabalhadores – é sutil a diferença, mas o significado é o mesmo.”
O professor da Unicamp afirma que outra medida bastante comemorada pelos capitais, a exemplo das corporações de fast food, é a do trabalho intermitente, que permite a contratação somente em momentos de necessidade da empresa. “Uma experiência parecida na Inglaterra é o zero-hour contract, que também abordo no livro: o trabalhador e a trabalhadora de todas as profissões – médicos, advogados, cuidadores da saúde – ficam disponíveis para o trabalho de modo online, digital; se é chamado, recebe apenas pelo período trabalhado; se não, não trabalha. Um desdobramento disso é o Uber, com muitos trabalhadores no mundo inteiro e também no Brasil.”
Entre os pontos mais nefastos da reforma trabalhista, Ricardo Antunes destaca a questão do “negociado sobre o legislado”, permitindo, por exemplo, a rediscussão da jornada de trabalho ou do banco de horas. “Hoje, um empresário pode ameaçar demitir todos os trabalhadores a menos que aceitem reduzir salário e a jornada, ou seja, devem escolher se preferem o desemprego à perda de direitos. É uma empulhação. Qualquer candidato de oposição sério, com vínculos com a população que de fato produz no país, terá que dizer na campanha presidencial se vai manter ou não essa contrarreforma feita na calada da noite, com apoio midiático total – nenhum grande veículo de televisão propôs um debate sério, em horário nobre, sobre a flexibilização e a desregulamentação do trabalho, com um especialista a favor e outro contrário.”
Outro ponto que o sociólogo considera importante destacar é a tentativa de destruir a Justiça do Trabalho no Brasil, que, em sua visão, foi criada por Vargas para conciliar capital e trabalho. “A ideia era juntar forças para, no espírito da concepção de ‘paz social’, todos crescerem. Só que nessa era digital e global, temos o capitalismo da devastação, que não quer mais conciliação: ‘ou é isso ou será ainda pior’, essa é a opção que os capitais oferecem. De modo que a Justiça do Trabalho está sofrendo seu momento de maior pressão, justamente pelos seus méritos. Uma forma de destruí-la é obrigando o trabalhador ou a trabalhadora a pagar quando perde uma ação trabalhista, induzindo-o a não lutar por seus direitos. Temos juízes patronais (que deveriam ser chamados de juízes do capital) que se prestam a isso, mas também é bom lembrar que temos um número expressivo de juízes autenticamente do trabalho. De qualquer forma, o trabalhador/a vai ficar nas mãos de um juiz.”
O autor do livro também comentou o impasse em torno da Medida Provisória 808, que regulamentava provisoriamente 17 artigos da reforma trabalhista e expirou em 23 de abril; a MP perdeu seu efeito até que seja convertida em lei pelo Congresso Nacional, o que muito provavelmente não acontecerá até as eleições. “Tenho apenas intuições quanto aos desdobramentos. Uma possibilidade é o governo fazer valer a MP sob outra formação jurídica, o que é improvável porque há questões complicadas, como do imposto sindical, que vai dar em muita confusão. Sempre fui contra o imposto sindical, mas nesse momento de crise, com os sindicatos perdendo tantos associados, como acabar com o imposto sem haver uma alternativa? Essa questão vai para o Judiciário.”
Barbárie neoliberal
Para Ricardo Antunes, estamos em uma era de intensificação da barbárie neoliberal, com movimentos muito concatenados. “Houve a primeira revolução industrial, passamos pela segunda, que nos levou ao taylorismo e fordismo, vivemos a terceira, que foi da reestruturação produtiva dos anos 70 e, agora, fala-se muito na Indústria 4.0, tão defendida pela CNI e cuja concepção básica é introduzir o mundo da tecnologia digital (a ‘internet das coisas’) em todos os espaços das fábricas – tema que também está no meu livro O Privilégio da Servidão. A indústria deve avançar tecnologicamente ao limite, informatizando, mas também acabando com a formalização do trabalho. Os capitais impõem essa intensa expansão informacional, ao mesmo tempo em que obrigam a devastação social através do trabalho cada vez mais informal, intermitente.”
O sociólogo vê nas rebeliões de amplitude global a partir de 2011 um sinal da revolta da população trabalhadora mundial, mas sem conseguir ainda nexos de organicidade capazes de centrar força em objetivos determinados. “São movimentos com forte caráter de massa, contestatários, mas que tendem a se pulverizar como ondas que sobem e descem. Uma era de rebeliões pode não se metamorfosear em uma era de revoluções, e isso pode resultar em uma era de contrarrevolução como estamos vendo agora. Um fato, entretanto, é que não se pode pensar nas lutas sociais, hoje, sem considerar um polo decisivo da classe trabalhadora global, que é composta também pelos imigrantes. Eles estão no mundo inteiro e este fermento nós ainda não conhecemos: quais as lutas sociais dos imigrantes, que são tratados como coisas, de modo ‘coisal’, fora dos seus países de origem?”.
Antunes considera necessária uma reflexão profunda sobre os caminhos de resistência e de confrontação, identificando aqueles que tocam no que chama de “nervo do sistema de metabolismo social do capital”, e quais ficam na margem do tempo. “Veja-se o exemplo da corrupção: é inegável que ela chegou a um nível capilar no Brasil, mas trata-se de um traço intrínseco de todo país capitalista. O que é socialmente mais grave, a corrupção ou o fato de termos quatro ou cinco famílias com riqueza maior que a de cem milhões de brasileiros? Não faço nenhuma concessão, a luta contra a corrupção é importante e é preciso combatê-la. Mas, se acabar a corrupção, alguém seriamente imagina que a miséria também acaba?”.
Ricardo Antunes tem a expectativa de que a tragédia social no Brasil seja discutida nas próximas eleições, embora considere difícil nesse contexto de “direitização” da sociedade. “Temos uma onda conservadora, fascista, da prática do ódio, que permite o lançamento da candidatura de um indivíduo sem um mínimo de equilíbrio e de civilidade. Acho que a esperança não vem nas eleições, vem mais para frente, depois desse ciclo destrutivo de contrarrevolução global. É uma onda que vai passar, vamos ter que reinventar um novo modo de vida. O capitalismo é poderoso, mas não é eterno. Fukuyama grotescamente falou em fim da história, mas o mais espetacular da história é que ela é imprevisível.”
* Publicado originalmente no Jornal da Unicamp.
Ricardo Antunes recorda que, quando Michel Temer tomou posse, deu uma dura entrevista ao Jornal da Unicamp acusando o PL 4330, projeto de lei da terceirização do trabalho, como da “legalização da burla”. “Eu disse que adentrávamos, então, numa era de devastação das relações de trabalho no Brasil. Quando o governo Temer, com o apoio do lado pantanoso e majoritário do Congresso, percebeu que tudo iria passar, foi buscar as vozes mais obscurantistas do direito do anti-trabalho para – em nome do direito ao trabalho – montar um arsenal de mais de 100 mudanças para não deixar pedra sobre pedra da CLT. As medidas estavam no programa da CNI [Confederação Nacional da Indústria] e também na proposta do PMDB de ‘Uma ponte para o futuro’, que na época chamamos de ‘Uma ponte para o abismo’. E agora já estamos nele.”
Segundo o sociólogo, era uma exigência dos capitais destruir a espinha dorsal da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), o que Fernando Henrique Cardoso tentou fazer e não conseguiu. “Lula jamais cumpriria esse papel, mas é bom lembrar que em seu projeto de reforma trabalhista e sindical, de 2004-2005, estava prevista uma flexibilização branda da CLT, trazendo o risco, embora bem pequeno, de se impor o negociado sobre o legislado. E Temer veio como um governo contratado pelos capitais para derrogar a legislação social protetora do trabalho. Para fazer a devastação. Mas cabe um parêntese: não se trata somente de um método Temer de devastação do trabalho, vivemos uma contrarrevolução burguesa de amplitude global: vide Trump [EUA], Theresa May [Reino Unido e o Brexit], Macron [França], Piñera [Chile], Macri [Argentina]...”
Um imperativo anterior dos capitais, observa Antunes, era a terceirização-meio, a pretexto de deixar as atividades menos importantes para terceiros, ficando para as empresas as atividades fins. “Uma mentira, porque depois de conseguirem a terceirização-meio, agora impõem a terceirização total. Já pude afirmar que a terceirização total é uma espécie de volta da escravidão. Alguém vai questionar: como assim, escravo? É que a nossa fala é metafórica: na escravidão, o proprietário de terras comprava o escravo; na terceirização, o empresário aluga os trabalhadores – é sutil a diferença, mas o significado é o mesmo.”
O professor da Unicamp afirma que outra medida bastante comemorada pelos capitais, a exemplo das corporações de fast food, é a do trabalho intermitente, que permite a contratação somente em momentos de necessidade da empresa. “Uma experiência parecida na Inglaterra é o zero-hour contract, que também abordo no livro: o trabalhador e a trabalhadora de todas as profissões – médicos, advogados, cuidadores da saúde – ficam disponíveis para o trabalho de modo online, digital; se é chamado, recebe apenas pelo período trabalhado; se não, não trabalha. Um desdobramento disso é o Uber, com muitos trabalhadores no mundo inteiro e também no Brasil.”
Entre os pontos mais nefastos da reforma trabalhista, Ricardo Antunes destaca a questão do “negociado sobre o legislado”, permitindo, por exemplo, a rediscussão da jornada de trabalho ou do banco de horas. “Hoje, um empresário pode ameaçar demitir todos os trabalhadores a menos que aceitem reduzir salário e a jornada, ou seja, devem escolher se preferem o desemprego à perda de direitos. É uma empulhação. Qualquer candidato de oposição sério, com vínculos com a população que de fato produz no país, terá que dizer na campanha presidencial se vai manter ou não essa contrarreforma feita na calada da noite, com apoio midiático total – nenhum grande veículo de televisão propôs um debate sério, em horário nobre, sobre a flexibilização e a desregulamentação do trabalho, com um especialista a favor e outro contrário.”
Outro ponto que o sociólogo considera importante destacar é a tentativa de destruir a Justiça do Trabalho no Brasil, que, em sua visão, foi criada por Vargas para conciliar capital e trabalho. “A ideia era juntar forças para, no espírito da concepção de ‘paz social’, todos crescerem. Só que nessa era digital e global, temos o capitalismo da devastação, que não quer mais conciliação: ‘ou é isso ou será ainda pior’, essa é a opção que os capitais oferecem. De modo que a Justiça do Trabalho está sofrendo seu momento de maior pressão, justamente pelos seus méritos. Uma forma de destruí-la é obrigando o trabalhador ou a trabalhadora a pagar quando perde uma ação trabalhista, induzindo-o a não lutar por seus direitos. Temos juízes patronais (que deveriam ser chamados de juízes do capital) que se prestam a isso, mas também é bom lembrar que temos um número expressivo de juízes autenticamente do trabalho. De qualquer forma, o trabalhador/a vai ficar nas mãos de um juiz.”
O autor do livro também comentou o impasse em torno da Medida Provisória 808, que regulamentava provisoriamente 17 artigos da reforma trabalhista e expirou em 23 de abril; a MP perdeu seu efeito até que seja convertida em lei pelo Congresso Nacional, o que muito provavelmente não acontecerá até as eleições. “Tenho apenas intuições quanto aos desdobramentos. Uma possibilidade é o governo fazer valer a MP sob outra formação jurídica, o que é improvável porque há questões complicadas, como do imposto sindical, que vai dar em muita confusão. Sempre fui contra o imposto sindical, mas nesse momento de crise, com os sindicatos perdendo tantos associados, como acabar com o imposto sem haver uma alternativa? Essa questão vai para o Judiciário.”
Barbárie neoliberal
Para Ricardo Antunes, estamos em uma era de intensificação da barbárie neoliberal, com movimentos muito concatenados. “Houve a primeira revolução industrial, passamos pela segunda, que nos levou ao taylorismo e fordismo, vivemos a terceira, que foi da reestruturação produtiva dos anos 70 e, agora, fala-se muito na Indústria 4.0, tão defendida pela CNI e cuja concepção básica é introduzir o mundo da tecnologia digital (a ‘internet das coisas’) em todos os espaços das fábricas – tema que também está no meu livro O Privilégio da Servidão. A indústria deve avançar tecnologicamente ao limite, informatizando, mas também acabando com a formalização do trabalho. Os capitais impõem essa intensa expansão informacional, ao mesmo tempo em que obrigam a devastação social através do trabalho cada vez mais informal, intermitente.”
O sociólogo vê nas rebeliões de amplitude global a partir de 2011 um sinal da revolta da população trabalhadora mundial, mas sem conseguir ainda nexos de organicidade capazes de centrar força em objetivos determinados. “São movimentos com forte caráter de massa, contestatários, mas que tendem a se pulverizar como ondas que sobem e descem. Uma era de rebeliões pode não se metamorfosear em uma era de revoluções, e isso pode resultar em uma era de contrarrevolução como estamos vendo agora. Um fato, entretanto, é que não se pode pensar nas lutas sociais, hoje, sem considerar um polo decisivo da classe trabalhadora global, que é composta também pelos imigrantes. Eles estão no mundo inteiro e este fermento nós ainda não conhecemos: quais as lutas sociais dos imigrantes, que são tratados como coisas, de modo ‘coisal’, fora dos seus países de origem?”.
Antunes considera necessária uma reflexão profunda sobre os caminhos de resistência e de confrontação, identificando aqueles que tocam no que chama de “nervo do sistema de metabolismo social do capital”, e quais ficam na margem do tempo. “Veja-se o exemplo da corrupção: é inegável que ela chegou a um nível capilar no Brasil, mas trata-se de um traço intrínseco de todo país capitalista. O que é socialmente mais grave, a corrupção ou o fato de termos quatro ou cinco famílias com riqueza maior que a de cem milhões de brasileiros? Não faço nenhuma concessão, a luta contra a corrupção é importante e é preciso combatê-la. Mas, se acabar a corrupção, alguém seriamente imagina que a miséria também acaba?”.
Ricardo Antunes tem a expectativa de que a tragédia social no Brasil seja discutida nas próximas eleições, embora considere difícil nesse contexto de “direitização” da sociedade. “Temos uma onda conservadora, fascista, da prática do ódio, que permite o lançamento da candidatura de um indivíduo sem um mínimo de equilíbrio e de civilidade. Acho que a esperança não vem nas eleições, vem mais para frente, depois desse ciclo destrutivo de contrarrevolução global. É uma onda que vai passar, vamos ter que reinventar um novo modo de vida. O capitalismo é poderoso, mas não é eterno. Fukuyama grotescamente falou em fim da história, mas o mais espetacular da história é que ela é imprevisível.”
* Publicado originalmente no Jornal da Unicamp.
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