Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
Não vou assistir aos jogos do Brasil na Copa do Mundo. E não é por motivos políticos. A Copa de 1970 mostrou que o futebol não pertencia à ditadura militar, mas ao povo. Muita gente se sentiu dividida naquela época. Afinal, fizeram de tudo para colocar os méritos da Seleção na conta do regime. Slogans canalhas, musiquinhas ridículas e clima de país que vai pra frente enquanto o pau comia. Ficaram, no entanto, para a história, dois exemplos: a coragem da resistência e da luta pela liberdade e as conquistas da arte do esporte popular.
Agora a situação mudou. O Estado de exceção permanece, mas o esporte parece ter perdido os laços mínimos com a alma brasileira. Pelo menos com a minha. Não vejo mais a menor graça no futebol, seduzido pelos interesses do mercado global, tocado à base de corrupção, capitaneado pelos interesses dos países ricos, subjugado ao mercado das empresas de comunicação e da publicidade de toda natureza. A Copa é apenas mais uma campanha publicitária global. O que a ditadura não alcançou, o neoliberalismo consagrou.
Tudo no torneio tem a cor do dinheiro. A começar pelas regras que definem os países que participam, com primazia da Europa e preconceito com o resto do mundo. A demora em atualizar esse processo é consequência natural da desigualdade que fundamenta o evento. É feito para consumidores, de acordo com seus bolsos, gostos e até horários de transmissão. As denúncias de corrupção nas entidades que comandam o negócio não foram superadas na prática, como se o problema fosse apenas as pessoas, não a estrutura.
No caso do futebol brasileiro, há muitos outros motivos para desdenhar a Copa, além da inserção destacada na mesma onda de negociatas, com a Globo e seus representantes à frente. Entre nós, o mais grave é o esvaziamento do interesse emocional pelo jogo. Há muito o futebol deixou de ser uma paixão que vinha de dentro das nossas raízes culturais para ser incorporado de fora pelas determinações do negócio. O amador do esporte se tornou um cliente em potencial. Os clubes perderam a aura do pertencimento. Os jogadores se tornaram mercadorias.
Os clubes, base da primeira identificação com o esporte, hoje são empresas de olho no lucro. Vendem tudo, os jogos, os jogadores e até seus torcedores, que se tornaram massa de usuários de cartões de crédito e assemelhados. Presas dóceis dos maiores juros financeiros do planeta, entregues de mão beijada pelos dirigentes de seus clubes do coração. Nesse terreno da venalidade, os times se dissolvem de um ano a outro, de acordo com as janelas de oportunidade. Quem preserva o amor à camisa o faz por motivos históricos ou sentimentais, nunca por razões presentes ou racionais. Não há recheio humano nos uniformes. Aquele prazer em decorar a escalação do time hoje não tem mais serventia.
O resultado disso está presente na própria escolha dos jogadores da Seleção. Quase todos jogam fora do Brasil. Para quem não costuma acompanhar ligas e torneios internacionais, são na maioria desconhecidos. Tudo bem, você conhece o Cássio, mas ele é o segundo goleiro reserva e está lá apenas para você achar que conhece alguém.
Fora os nomes globalizados, garotos-propaganda de produtos e namoradas, trata-se de um grupo de jovens que viram suas vidas e sonhos serem sequestrados pelo interesse do mercado da bola. Geralmente são crianças que tiveram talento identificado ainda na infância, que foram retirados da comunidade e muitas vezes da própria família, para cumprir um desejo que não era deles. Os clubes montam escolas de mentira para cumprir a lei, mas o destino é um só: apostar num contrato internacional. Ou voltar para a casa com o uniforme de fracassado.
Quem quiser acompanhar esse método é só assistir as reportagens veiculadas nos últimos dias pelo Jornal Nacional, da Rede Globo, com o perfil de cada jogador. Conduzidas sempre por uma lógica piegas e redentora, eles são apresentados ao Brasil em sua edificante jornada, que começa cedo e tem como realização suprema e improvável o exílio forçado e os altos salários. Para felicidade da família e dos muitos agregados. É a história de uma geração vazia. São, ao menos no caso da Seleção, trajetórias com finais felizes, nos termos postos como critério de realização humana. Mas que escondem o revés de milhares de outros jovens que se perdem no caminho.
É curioso que os mesmos jogadores apresentados de forma compungida nas reportagens do jornal se tornam personagens de outro modo de vida alguns canais acima no dial da TV paga. Os garotos pobres que lutaram para se tornar ídolos desfilam alguns anos depois como consumidores conspícuos de carros, roupas e gastronomia de luxo nas emissoras voltadas para a classe média que sonha em se destacar. Mas – o preconceito de classe não perdoa – sem receber o mesmo reconhecimento. Para o povão, eles são vencedores humildes que merecem o sucesso e um perfil no Jornal Nacional; para os emergentes, uns deslumbrados, que no máximo servem para dividir camarotes e protagonizar matérias ligeiramente irônicas no GNT.
Há motivos internos na forma como futebol vem sendo praticado que também podem afastar alguns torcedores dessa Copa. Não existe mais time, mas um aglomerado de individualidades vaidosas. De uma hora para outra, todos são “melhores do mundo” em alguma posição. Ostentam números idiotas que os novos jornalistas-animadores desfilam a todo momento. Querem exibir marcas não alcançadas. Sonham em ser, sozinhos, os responsáveis pelo sucesso da equipe. Há um desejo regressivo por salvadores da pátria, ainda que pátria de chuteiras. O jogador que não faz nada, mas faz o gol, como Cristiano Ronaldo, se tornou o modelo.
Para completar, há uma embalagem de símbolos e cultura que sempre empurrou a empolgação pelo torneio. Podia ser a decoração das ruas, a convocação para a festa, uma canção e até a promessa de felicidade de um copo de cerveja com os amigos no meio da tarde de um dia útil. Até nisso, na mais espontânea das manifestações, a invasão neoliberal pôs suas patas e matou o prazer. O comércio em torno das commodities do futebol se tornou insuportável. Tudo tem gosto de manipulação. Até a cerveja.
Tem mais: recuso-me terminantemente, pelo menos nos próximos 50 anos, a vestir uma camisa verde-amarela da Seleção sob qualquer pretexto, até mesmo para me proteger do frio. A simples sugestão de proximidade com golpistas e patos me dá ânsias de vômito. Canarinho, nunca mais. A cobertura da imprensa está sendo o arremate final do assassinato da memória afetiva do amador do futebol. O golpe midiático não cessou. E ainda tem Galvão Bueno para piorar.
Por essas e outras, os amantes do esporte estão convocados a reunir seu time e marcar uma pelada para os dias de jogos do Brasil, de preferência num campo de várzea, sem sinal de internet. Só os pernas-de-pau podem salvar o verdadeiro futebol.
Não vou assistir aos jogos do Brasil na Copa do Mundo. E não é por motivos políticos. A Copa de 1970 mostrou que o futebol não pertencia à ditadura militar, mas ao povo. Muita gente se sentiu dividida naquela época. Afinal, fizeram de tudo para colocar os méritos da Seleção na conta do regime. Slogans canalhas, musiquinhas ridículas e clima de país que vai pra frente enquanto o pau comia. Ficaram, no entanto, para a história, dois exemplos: a coragem da resistência e da luta pela liberdade e as conquistas da arte do esporte popular.
Agora a situação mudou. O Estado de exceção permanece, mas o esporte parece ter perdido os laços mínimos com a alma brasileira. Pelo menos com a minha. Não vejo mais a menor graça no futebol, seduzido pelos interesses do mercado global, tocado à base de corrupção, capitaneado pelos interesses dos países ricos, subjugado ao mercado das empresas de comunicação e da publicidade de toda natureza. A Copa é apenas mais uma campanha publicitária global. O que a ditadura não alcançou, o neoliberalismo consagrou.
Tudo no torneio tem a cor do dinheiro. A começar pelas regras que definem os países que participam, com primazia da Europa e preconceito com o resto do mundo. A demora em atualizar esse processo é consequência natural da desigualdade que fundamenta o evento. É feito para consumidores, de acordo com seus bolsos, gostos e até horários de transmissão. As denúncias de corrupção nas entidades que comandam o negócio não foram superadas na prática, como se o problema fosse apenas as pessoas, não a estrutura.
No caso do futebol brasileiro, há muitos outros motivos para desdenhar a Copa, além da inserção destacada na mesma onda de negociatas, com a Globo e seus representantes à frente. Entre nós, o mais grave é o esvaziamento do interesse emocional pelo jogo. Há muito o futebol deixou de ser uma paixão que vinha de dentro das nossas raízes culturais para ser incorporado de fora pelas determinações do negócio. O amador do esporte se tornou um cliente em potencial. Os clubes perderam a aura do pertencimento. Os jogadores se tornaram mercadorias.
Os clubes, base da primeira identificação com o esporte, hoje são empresas de olho no lucro. Vendem tudo, os jogos, os jogadores e até seus torcedores, que se tornaram massa de usuários de cartões de crédito e assemelhados. Presas dóceis dos maiores juros financeiros do planeta, entregues de mão beijada pelos dirigentes de seus clubes do coração. Nesse terreno da venalidade, os times se dissolvem de um ano a outro, de acordo com as janelas de oportunidade. Quem preserva o amor à camisa o faz por motivos históricos ou sentimentais, nunca por razões presentes ou racionais. Não há recheio humano nos uniformes. Aquele prazer em decorar a escalação do time hoje não tem mais serventia.
O resultado disso está presente na própria escolha dos jogadores da Seleção. Quase todos jogam fora do Brasil. Para quem não costuma acompanhar ligas e torneios internacionais, são na maioria desconhecidos. Tudo bem, você conhece o Cássio, mas ele é o segundo goleiro reserva e está lá apenas para você achar que conhece alguém.
Fora os nomes globalizados, garotos-propaganda de produtos e namoradas, trata-se de um grupo de jovens que viram suas vidas e sonhos serem sequestrados pelo interesse do mercado da bola. Geralmente são crianças que tiveram talento identificado ainda na infância, que foram retirados da comunidade e muitas vezes da própria família, para cumprir um desejo que não era deles. Os clubes montam escolas de mentira para cumprir a lei, mas o destino é um só: apostar num contrato internacional. Ou voltar para a casa com o uniforme de fracassado.
Quem quiser acompanhar esse método é só assistir as reportagens veiculadas nos últimos dias pelo Jornal Nacional, da Rede Globo, com o perfil de cada jogador. Conduzidas sempre por uma lógica piegas e redentora, eles são apresentados ao Brasil em sua edificante jornada, que começa cedo e tem como realização suprema e improvável o exílio forçado e os altos salários. Para felicidade da família e dos muitos agregados. É a história de uma geração vazia. São, ao menos no caso da Seleção, trajetórias com finais felizes, nos termos postos como critério de realização humana. Mas que escondem o revés de milhares de outros jovens que se perdem no caminho.
É curioso que os mesmos jogadores apresentados de forma compungida nas reportagens do jornal se tornam personagens de outro modo de vida alguns canais acima no dial da TV paga. Os garotos pobres que lutaram para se tornar ídolos desfilam alguns anos depois como consumidores conspícuos de carros, roupas e gastronomia de luxo nas emissoras voltadas para a classe média que sonha em se destacar. Mas – o preconceito de classe não perdoa – sem receber o mesmo reconhecimento. Para o povão, eles são vencedores humildes que merecem o sucesso e um perfil no Jornal Nacional; para os emergentes, uns deslumbrados, que no máximo servem para dividir camarotes e protagonizar matérias ligeiramente irônicas no GNT.
Há motivos internos na forma como futebol vem sendo praticado que também podem afastar alguns torcedores dessa Copa. Não existe mais time, mas um aglomerado de individualidades vaidosas. De uma hora para outra, todos são “melhores do mundo” em alguma posição. Ostentam números idiotas que os novos jornalistas-animadores desfilam a todo momento. Querem exibir marcas não alcançadas. Sonham em ser, sozinhos, os responsáveis pelo sucesso da equipe. Há um desejo regressivo por salvadores da pátria, ainda que pátria de chuteiras. O jogador que não faz nada, mas faz o gol, como Cristiano Ronaldo, se tornou o modelo.
Para completar, há uma embalagem de símbolos e cultura que sempre empurrou a empolgação pelo torneio. Podia ser a decoração das ruas, a convocação para a festa, uma canção e até a promessa de felicidade de um copo de cerveja com os amigos no meio da tarde de um dia útil. Até nisso, na mais espontânea das manifestações, a invasão neoliberal pôs suas patas e matou o prazer. O comércio em torno das commodities do futebol se tornou insuportável. Tudo tem gosto de manipulação. Até a cerveja.
Tem mais: recuso-me terminantemente, pelo menos nos próximos 50 anos, a vestir uma camisa verde-amarela da Seleção sob qualquer pretexto, até mesmo para me proteger do frio. A simples sugestão de proximidade com golpistas e patos me dá ânsias de vômito. Canarinho, nunca mais. A cobertura da imprensa está sendo o arremate final do assassinato da memória afetiva do amador do futebol. O golpe midiático não cessou. E ainda tem Galvão Bueno para piorar.
Por essas e outras, os amantes do esporte estão convocados a reunir seu time e marcar uma pelada para os dias de jogos do Brasil, de preferência num campo de várzea, sem sinal de internet. Só os pernas-de-pau podem salvar o verdadeiro futebol.
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