Por Pedro Simon Camarão, no site da Fundação Perseu Abramo:
As viagens com a utilização dos aplicativos de transporte particular costumam render conversas interessantes. Hoje, não foi diferente. Entrei no carro e vi pelo GPS que o percurso iria durar cerca de meia hora. A motorista, loira, 45 anos, tem uma expressão indignada, insatisfeita. Aqui, vou chamá-la de Maria para preservar sua identidade. Depois de alguns minutos em silêncio perguntei há quanto tempo trabalhava com transporte por aplicativos. Ela respondeu que está nessa há 10 meses, que era “mais tempo do que eu imaginei que fosse ficar, mas é uma necessidade. Não tem jeito”. Falei o que tinha ouvido de outro motorista, “a empresa te atrai pra trabalhar como se você fosse ser parceiro dela, mas, na verdade, ela trata como se você fosse funcionário”. Maria concordou. Disse que a jornada é extenuante, muito cansativa: “hoje eu estou trabalhando com uma dor horrível na coluna”. Atenta ao trânsito caótico da capital paulista ela disse que o trabalho não dá dinheiro. “O que você leva de multa e o que já bateram no meu carro, meu deus do céu. É muito desgastante”. E repetiu com uma cara de lamento e cansaço: “é muito desgastante.” Eu mencionei a política de preços da Petrobras e ela completou, “o preço da gasolina está demais. Desde que eu comecei, só aumentou”.
Na conversa, a minha condutora deixou claro que tinha uma vida bem diferente há dois anos. Ela trabalhava com seguros, na área de avaliação de risco, algo que é muito específico e, por isso, tem pouquíssimas vagas. Até quem foi mandado embora da empresa antes dela ainda não tinha conseguido uma recolocação. Em dois anos Maria fez apenas uma entrevista de emprego. Ela tem formação, pós-graduação e disse que tinha um salário alto. Ao saber desses detalhes entendi o motivo da insatisfação tão clara em seu rosto. Eu queria saber o que ela pensava sobre a forma como o mercado funciona e como trata as pessoas. Por trabalhar em uma grande corretora de seguros, certamente, deve ter participado de diversos treinamentos, daquelas reuniões em que se valoriza a ética profissional, a importância da equipe e de vestir a camisa da empresa. “Time? Equipe? Família? Eu bem vi a equipe em que eu estava. Depois de seis anos de empresa nem pensaram na hora de me demitir”.
Pedi desculpas por fazer tantas perguntas e expliquei que eu era jornalista, daí o motivo de tanta curiosidade. Imaginei até que a conversa pudesse acabar ali, mas com muita simpatia ela respondeu que não tinha problema algum, que adorava conversar e que eu podia fazer a pergunta que quisesse. Senti a abertura e sabia que não podia perder tempo para introduzir algum assunto mais polêmico. Decidi ir para a política. Perguntei se ela via importância na próxima eleição, se achava que o resultado poderia definir a forma como o mercado trata o cidadão-trabalhador no Brasil. A resposta foi um pouco dúbia. De um lado, ela disse que “sim”, já de outro, “mas não com os nossos políticos. Eles têm a cultura deles, o jeito deles”. Maria não acha que seja possível mudar alguma coisa. Então questionei se o problema era a corrupção. Ela respondeu “com certeza”. Maria adicionou, “não tem um que preste na política. Nem mesmo o cara da faxina”.
A minha primeira reação foi pensar que ela acredita em tudo o que vê na mídia, mas eu queria esmiuçar a percepção dela sobre os fatos e mencionei que em um momento como esse nós ainda teríamos de lidar com a forma como a imprensa trabalha as notícias. Antes que eu falasse mais alguma coisa ela emendou, “porque a imprensa manipula, você diz?”. Tentei explicar minha visão dando como exemplo a reforma da Previdência – concordamos que mesmo diante da urgência com que o assunto vinha sendo tratado, de repente ele desapareceu completamente dos jornais –, as reportagens do Jornal Nacional mostravam que o governo anunciava um rombo e essa informação era seguida da fala de alguém do Planalto dizendo que só a reforma poderia salvar as contas. Na sequência aparecia um congressista falando no mesmo sentido e, por último, vinha um especialista que apontava a reforma como a única salvação. Falei que a Globo apresentava “só uma perspectiva da coisa, como se não existissem políticos e especialistas que propusessem soluções diferentes para o problema. Ou seja, a Globo apresenta só uma perspectiva como se ela fosse a ‘verdade’”. Maria me olhou pelo retrovisor e respondeu, “pois é, eles distorcem a informação”. “É, trabalham os fatos de acordo com o que é melhor para o interesse deles”, completei e ainda aproveitei para voltar ao tema anterior, “imagina como a coisa da corrupção é distorcida, eles apontam quem são mocinho e bandido de acordo com o que for melhor para essas empresas”. Nesse caso, Maria não me acompanhou. “Mas você acha que precisa de mais pra mostrar que tudo o que tem na política é um lixo?”. Entramos numa espécie de negociação sobre essa conclusão e, por fim, ela ouviu e balançou a cabeça concordando quando eu disse que havia muita preocupação com a corrupção e pouca atenção às propostas de cada uma das correntes políticas. Maria ainda completou, “corrupção tem no mundo todo”.
Depois de uma rápida pausa para desviar de uma caminhonete que quase avançou em cima de nós, a motorista disse que estava muito decepcionada com a política, que tinha se decepcionado muito com João Dória, mas que acabaria votando nele de novo por falta de opção. Minha vontade era interromper e falar “não, não faça isso”, mas eu queria ir até o final da conversa e acho que se revelasse minha posição a resenha chegaria ao fim. Ainda bem que não obedeci à minha vontade. O final da conversa foi o que mais me deixou encucado com a perspectiva que me parece ser a de grande parte da classe média.
Passei a falar sobre a falta de qualidade dos serviços públicos e sobre como a sociedade brasileira não luta para que eles sejam melhores. Ela me interrompeu e disse que no momento não tinha convênio médico e estava utilizando o serviço do SUS. “Fui num médico ginecologista e fui muito bem atendida, de um jeito que eu nunca tinha sido em convênio nenhum”. Reclamou que na parte dos exames foi muito ruim, que sentiu como se estivesse sendo tratada como um animal. Maria disse que talvez seja apenas no posto do bairro em que ela foi, mas que “eles” são muito organizados. Surpreso, soltei um “veja só”, meio que sem saber pra onde levar a conversa, mas ela completou, “eu não sou dessa classe, hoje eu sou”, falou com firmeza, “mas eu não sou, entende?”, frisou olhando nos meus olhos pelo espelho retrovisor. Acenei com a cabeça, fiquei um pouco irritado mas não demonstrei. Ela terminou dizendo que as pessoas mais simples, que usam o SUS, estão acostumadas e acham aquela organização uma coisa maravilhosa. “Um Bolsa Família, um ‘bolsa qualquer coisa’ já é suficiente pra eles. Eles não têm noção de que deveriam reclamar e eles acabam sendo a maioria da população”.
Pensei comigo mesmo se ela não conseguia perceber o que estava falando. Respirei e tentei lhe mostrar que “o que me impressiona é que a classe média que ‘parece’ que tem ‘noção das coisas’ não briga pra ter um serviço público melhor, vota em gente que não quer nada com isso. A senhora consegue calcular o gasto com plano de saúde e educação particular? A vida da classe média seria muito mais confortável se os seus filhos não precisassem pagar pra ter uma boa educação. Os serviços públicos podem melhorar. Isso só depende da gente e nem é tão difícil. Só depende do voto, de conhecer as propostas”. Quando finalizei chegamos ao meu destino. Antes que eu saísse do carro, Maria disse que o brasileiro é acomodado, “não importa qual é a classe social. Mas esse negócio de política é complicado. Bem difícil”. Nos despedimos. Desci do carro e continuo tentando entender aquela mulher que, mesmo indignada, deve votar em pessoas que só trabalham para tornar a vida dos cidadãos ainda mais precária.
As viagens com a utilização dos aplicativos de transporte particular costumam render conversas interessantes. Hoje, não foi diferente. Entrei no carro e vi pelo GPS que o percurso iria durar cerca de meia hora. A motorista, loira, 45 anos, tem uma expressão indignada, insatisfeita. Aqui, vou chamá-la de Maria para preservar sua identidade. Depois de alguns minutos em silêncio perguntei há quanto tempo trabalhava com transporte por aplicativos. Ela respondeu que está nessa há 10 meses, que era “mais tempo do que eu imaginei que fosse ficar, mas é uma necessidade. Não tem jeito”. Falei o que tinha ouvido de outro motorista, “a empresa te atrai pra trabalhar como se você fosse ser parceiro dela, mas, na verdade, ela trata como se você fosse funcionário”. Maria concordou. Disse que a jornada é extenuante, muito cansativa: “hoje eu estou trabalhando com uma dor horrível na coluna”. Atenta ao trânsito caótico da capital paulista ela disse que o trabalho não dá dinheiro. “O que você leva de multa e o que já bateram no meu carro, meu deus do céu. É muito desgastante”. E repetiu com uma cara de lamento e cansaço: “é muito desgastante.” Eu mencionei a política de preços da Petrobras e ela completou, “o preço da gasolina está demais. Desde que eu comecei, só aumentou”.
Na conversa, a minha condutora deixou claro que tinha uma vida bem diferente há dois anos. Ela trabalhava com seguros, na área de avaliação de risco, algo que é muito específico e, por isso, tem pouquíssimas vagas. Até quem foi mandado embora da empresa antes dela ainda não tinha conseguido uma recolocação. Em dois anos Maria fez apenas uma entrevista de emprego. Ela tem formação, pós-graduação e disse que tinha um salário alto. Ao saber desses detalhes entendi o motivo da insatisfação tão clara em seu rosto. Eu queria saber o que ela pensava sobre a forma como o mercado funciona e como trata as pessoas. Por trabalhar em uma grande corretora de seguros, certamente, deve ter participado de diversos treinamentos, daquelas reuniões em que se valoriza a ética profissional, a importância da equipe e de vestir a camisa da empresa. “Time? Equipe? Família? Eu bem vi a equipe em que eu estava. Depois de seis anos de empresa nem pensaram na hora de me demitir”.
Pedi desculpas por fazer tantas perguntas e expliquei que eu era jornalista, daí o motivo de tanta curiosidade. Imaginei até que a conversa pudesse acabar ali, mas com muita simpatia ela respondeu que não tinha problema algum, que adorava conversar e que eu podia fazer a pergunta que quisesse. Senti a abertura e sabia que não podia perder tempo para introduzir algum assunto mais polêmico. Decidi ir para a política. Perguntei se ela via importância na próxima eleição, se achava que o resultado poderia definir a forma como o mercado trata o cidadão-trabalhador no Brasil. A resposta foi um pouco dúbia. De um lado, ela disse que “sim”, já de outro, “mas não com os nossos políticos. Eles têm a cultura deles, o jeito deles”. Maria não acha que seja possível mudar alguma coisa. Então questionei se o problema era a corrupção. Ela respondeu “com certeza”. Maria adicionou, “não tem um que preste na política. Nem mesmo o cara da faxina”.
A minha primeira reação foi pensar que ela acredita em tudo o que vê na mídia, mas eu queria esmiuçar a percepção dela sobre os fatos e mencionei que em um momento como esse nós ainda teríamos de lidar com a forma como a imprensa trabalha as notícias. Antes que eu falasse mais alguma coisa ela emendou, “porque a imprensa manipula, você diz?”. Tentei explicar minha visão dando como exemplo a reforma da Previdência – concordamos que mesmo diante da urgência com que o assunto vinha sendo tratado, de repente ele desapareceu completamente dos jornais –, as reportagens do Jornal Nacional mostravam que o governo anunciava um rombo e essa informação era seguida da fala de alguém do Planalto dizendo que só a reforma poderia salvar as contas. Na sequência aparecia um congressista falando no mesmo sentido e, por último, vinha um especialista que apontava a reforma como a única salvação. Falei que a Globo apresentava “só uma perspectiva da coisa, como se não existissem políticos e especialistas que propusessem soluções diferentes para o problema. Ou seja, a Globo apresenta só uma perspectiva como se ela fosse a ‘verdade’”. Maria me olhou pelo retrovisor e respondeu, “pois é, eles distorcem a informação”. “É, trabalham os fatos de acordo com o que é melhor para o interesse deles”, completei e ainda aproveitei para voltar ao tema anterior, “imagina como a coisa da corrupção é distorcida, eles apontam quem são mocinho e bandido de acordo com o que for melhor para essas empresas”. Nesse caso, Maria não me acompanhou. “Mas você acha que precisa de mais pra mostrar que tudo o que tem na política é um lixo?”. Entramos numa espécie de negociação sobre essa conclusão e, por fim, ela ouviu e balançou a cabeça concordando quando eu disse que havia muita preocupação com a corrupção e pouca atenção às propostas de cada uma das correntes políticas. Maria ainda completou, “corrupção tem no mundo todo”.
Depois de uma rápida pausa para desviar de uma caminhonete que quase avançou em cima de nós, a motorista disse que estava muito decepcionada com a política, que tinha se decepcionado muito com João Dória, mas que acabaria votando nele de novo por falta de opção. Minha vontade era interromper e falar “não, não faça isso”, mas eu queria ir até o final da conversa e acho que se revelasse minha posição a resenha chegaria ao fim. Ainda bem que não obedeci à minha vontade. O final da conversa foi o que mais me deixou encucado com a perspectiva que me parece ser a de grande parte da classe média.
Passei a falar sobre a falta de qualidade dos serviços públicos e sobre como a sociedade brasileira não luta para que eles sejam melhores. Ela me interrompeu e disse que no momento não tinha convênio médico e estava utilizando o serviço do SUS. “Fui num médico ginecologista e fui muito bem atendida, de um jeito que eu nunca tinha sido em convênio nenhum”. Reclamou que na parte dos exames foi muito ruim, que sentiu como se estivesse sendo tratada como um animal. Maria disse que talvez seja apenas no posto do bairro em que ela foi, mas que “eles” são muito organizados. Surpreso, soltei um “veja só”, meio que sem saber pra onde levar a conversa, mas ela completou, “eu não sou dessa classe, hoje eu sou”, falou com firmeza, “mas eu não sou, entende?”, frisou olhando nos meus olhos pelo espelho retrovisor. Acenei com a cabeça, fiquei um pouco irritado mas não demonstrei. Ela terminou dizendo que as pessoas mais simples, que usam o SUS, estão acostumadas e acham aquela organização uma coisa maravilhosa. “Um Bolsa Família, um ‘bolsa qualquer coisa’ já é suficiente pra eles. Eles não têm noção de que deveriam reclamar e eles acabam sendo a maioria da população”.
Pensei comigo mesmo se ela não conseguia perceber o que estava falando. Respirei e tentei lhe mostrar que “o que me impressiona é que a classe média que ‘parece’ que tem ‘noção das coisas’ não briga pra ter um serviço público melhor, vota em gente que não quer nada com isso. A senhora consegue calcular o gasto com plano de saúde e educação particular? A vida da classe média seria muito mais confortável se os seus filhos não precisassem pagar pra ter uma boa educação. Os serviços públicos podem melhorar. Isso só depende da gente e nem é tão difícil. Só depende do voto, de conhecer as propostas”. Quando finalizei chegamos ao meu destino. Antes que eu saísse do carro, Maria disse que o brasileiro é acomodado, “não importa qual é a classe social. Mas esse negócio de política é complicado. Bem difícil”. Nos despedimos. Desci do carro e continuo tentando entender aquela mulher que, mesmo indignada, deve votar em pessoas que só trabalham para tornar a vida dos cidadãos ainda mais precária.
Eu nao sou desta classe, hoje eu sou pontual. Mas eu nao sou. E isso é a classe média, aquela que hoje come mortadela e arrota peru.
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