segunda-feira, 16 de julho de 2018

Aos que ainda não nasceram

Por João Quartim de Moraes, no site Vermelho:

Nestes tempos sombrios, “só está rindo quem ainda não ouviu as más notícias” (Bertolt Brecht).

Manifestações em homenagem à memória de Domenico Losurdo acumulam-se no portal de Materialismo Storico, a revista internética da qual ele foi eminente fundador. Um luto entranhado, sem pompas, com a inarredável certeza de que perdemos muito quando seu cérebro pujante e fecundo parou de funcionar. De Stefano Azzarà, diretor da revista e um de seus mais próximos parceiros, amigos e companheiros, recebi junto com um fraterno agradecimento pela curta síntese que publiquei na Grabois e no Vermelho sobre o legado político e teórico desse extraordinário militante comunista, a informação de que todas as mensagens “di cordoglio e di saluto” podiam ser lidas em www.materialismostorico.it .

Uma das primeiras mensagens que lá se encontram junta o verso inicial e os dois versos finais do poema de Bertolt Brecht intitulado “Aos que nascerão mais tarde” (An die Nachgeborenen):

Decididamente, eu vivo em tempos sombrios! […] Ah, nós/ Nós que quisemos preparar o terreno para a amizade / Não podemos, nós mesmos, ser amigáveis./ Mas vocês, quando for possível/ Que o homem seja um apoio para o homem/Pensem em nós/Com indulgência.

Brecht trabalhou nesse poema de 1934 a 1938, não por coincidência o período em que os hitlerianos disseminavam a peste nazista pela Alemanha, depois pelos países adjacentes da Europa Central. Publicou-o em 1939, já refugiado na Dinamarca. Embora não seja muito grande, sua densidade exige muitos comentários. Faremos aqui apenas alguns poucos, mais diretamente ligados à perda que nos pôs de luto.

Nada enxergamos na escuridão ou na claridade absolutas. Para discernir algo é preciso que trevas e luz se limitem reciprocamente. Em tempos sombrios as trevas predominam. Há tempos, porém mais sombrios que outros. Por exemplo, o ano de 1939, aquele em que Brecht completou seu poema aos que iriam nascer mais tarde. Claro que ele também queria ser lido por seus contemporâneos. É em nome destes que ele pede indulgência aos que virão depois. Depois, quando? Em tempos menos sombrios, quando os homens puderem se apoiar uns nos outros.

A palavra poética confere dimensão universal a uma situação concreta, mas situações distintas pedem palavras distintas. Brecht tornara-se um exilado. Ao cruzar a fronteira com a Dinamarca, deixara atrás de si camaradas e amigos que tinham, como tantas outras e outros, caído nas garras da SS e da Gestapo. Por isso, na situação dele, era “quase um crime conversar sobre árvores, porque implicava deixar em silêncio tantas barbaridades”. A questão é prática: nas situações sombrias, gastar conversa sobre trivialidades, em vez de alertar para os muitos delitos que estavam sendo cometidos, é acomodar-se com esses delitos.

Não se trata de um dilema ético ou metafísico: em princípio, ter apego às árvores, ser sensível às belezas da natureza e da arte, não impede olhar de frente as misérias do mundo. Mesmo porque as flores podem ser símbolo de luta: os cravos na revolução antifascista portuguesa de 1974, sem esquecer de “pra não dizer que não falei das flores”, título irônico da célebre canção de resistência à ditadura militar, chamando para a luta (“Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”) os que “acreditam nas flores vencendo os canhões”. Todos entenderam que nas circunstâncias de Vandré, sujeito à censura e perseguições dos avós fascistas dos e das coxinhas de hoje, flores queria dizer povo combativo e canhões a força bruta dos que haviam usurpado os atributos do povo soberano.

Também nossos tempos são carregados de nuvens sombrias. As nuvens se distribuem irregularmente na atmosfera. Losurdo, entretanto, com sua inigualável capacidade de discernir o universal no singular, apontou de onde veem e onde estão as trevas mais espessas que recobrem o horizonte. Seus escritos, que elevaram exponencialmente a qualidade da luta teórica e do combate ideológico dos comunistas, certamente serão lidos com o mesmo proveito pelos que ainda não nasceram.

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