Por Lúcio Kowarick, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
Bolsonaro é deputado federal por vários mandatos, com vasto apoio de algumas parcelas da população, inclusive de alguns expoentes da elite econômica. Não se trata de qualquer pessoa, mas de um pré-candidato à Presidência da República: sem a presença de Lula, os jornais apontam que Bolsonaro recebe apoio de 20% da população, o que lhe dá amplas possibilidades de chegar ao segundo turno nas próximas eleições.
O ilustre deputado, diante das notícias amplamente divulgadas pela imprensa acerca da tortura e dos assassinatos dos opositores da ditadura militar, afirmou tratar-se de algo que se assemelha a um “tapa no bumbum dos filhos”. Desfaçatez, cinismo, descaramento: eis alguns sinônimos que me parecem adequados para semelhante afirmação.
As informações disponibilizadas pela CIA e divulgadas em diversos jornais mostram com clareza que os presidentes militares Médici, Geisel e Figueiredo não só sabiam do que acontecia nos chamados “porões da ditadura”, como também deram aval às atrocidades cometidas, que nada mais eram do que execuções sumárias dos adversários do governo.
A abertura “lenta e gradual” proclamada pelo general Ernesto Geisel estava contaminada por arbítrio e violência de toda ordem, em desrespeito ao essencial no que concerne aos direitos humanos: tratava-se de uma política de Estado.
Não são poucos os jovens que desconhecem as atrocidades que marcaram o período ditatorial: mesmo alguns alunos de Ciências Sociais têm uma vaga noção do que ocorreu durante a ditadura, conforme eu e alguns colegas verificamos no decorrer da década de 2000. Quanto à USP, foi compulsoriamente aposentado o que havia de mais primoroso na universidade, inclusive, entre outros, o sociólogo, mestre de todos nós, Florestan Fernandes e o então professor titular da cadeira de Ciência Política, Fernando Henrique Cardoso. Nos primeiros anos da década de 1970 não era rara a prisão de alunos, alguns torturados e mortos, cuja expressão síntese é o assassinato de Alexandre Vannucchi, presidente do Diretório Central dos Estudantes.
Nesse sentido, vale apontar alguns dados que foi possível colher entre 1964 e 1979. Os referentes aos mortos, desparecidos e assassinados durante os interrogatórios são bastante conhecidos. Em relação às violências que desabaram sobre a sociedade civil, as informações são menos conhecidas e, desse modo, é importante assinalá-las: 500 mil pessoas condenadas, processadas, indiciadas ou presas; 4.877 cassados em seus direitos políticos; 10 mil exilados; 270 assuntos censurados; seiscentas peças teatrais proibidas; mil músicas que tiveram o mesmo destino; intervenção em 536 sindicatos, federações e confederações operárias, e assim por diante.1
Essa nova avalanche de informações torna necessário reabrir a polêmica questão da anistia. Não se trata de revanchismo, mas de um esforço para reconstituir a história na medida em que novos dados provenientes de fontes norte-americanas permitem uma revisão de qual foi realmente o papel desempenhado pela cúpula da ditadura militar. Contudo, não são apenas investigações levadas adiante por historiadores e cientistas sociais, e sim informações que, sobretudo, a Comissão da Verdade não pôde investigar e que atualmente permitem averiguar com mais detalhe o que foi a política de Estado em relação àqueles que se opuseram ao regime militar.
As declarações do deputado federal também representam um acinte a todos aqueles que foram perseguidos, torturados ou mortos e a suas respectivas famílias. Defensor da ditadura militar, Bolsonaro é também discípulo do major Brilhante Ustra, chefe da Obam, centro de interrogatórios, torturas e assassinatos.
O que está em jogo é a ascensão de um conservadorismo político e social de extrema direita, que veste um novo uniforme civil de cunho ditatorial. O ovo da serpente constitui uma metáfora de um filme de Ingmar Bergman que representa o lento envenenamento da sociedade pelo nazismo na Alemanha dos anos 1920. Creio que não é exagero dizer que abaixo do Equador está se gestando um réptil que destila um conteúdo fascista que pode envenenar parte considerável de nossa sociedade.
* Lúcio Kowarick é professor titular do Departamento de Ciência Política da USP. Publicou cinco livros – o último, Viver em risco, recebeu o Prêmio Jabuti de 2010 como melhor livro de Ciências Humanas – e recebeu o Prêmio Florestan Fernandes pelo conjunto da obra outorgado pela Associação Brasileira de Sociologia em 2013.
Bolsonaro é deputado federal por vários mandatos, com vasto apoio de algumas parcelas da população, inclusive de alguns expoentes da elite econômica. Não se trata de qualquer pessoa, mas de um pré-candidato à Presidência da República: sem a presença de Lula, os jornais apontam que Bolsonaro recebe apoio de 20% da população, o que lhe dá amplas possibilidades de chegar ao segundo turno nas próximas eleições.
O ilustre deputado, diante das notícias amplamente divulgadas pela imprensa acerca da tortura e dos assassinatos dos opositores da ditadura militar, afirmou tratar-se de algo que se assemelha a um “tapa no bumbum dos filhos”. Desfaçatez, cinismo, descaramento: eis alguns sinônimos que me parecem adequados para semelhante afirmação.
As informações disponibilizadas pela CIA e divulgadas em diversos jornais mostram com clareza que os presidentes militares Médici, Geisel e Figueiredo não só sabiam do que acontecia nos chamados “porões da ditadura”, como também deram aval às atrocidades cometidas, que nada mais eram do que execuções sumárias dos adversários do governo.
A abertura “lenta e gradual” proclamada pelo general Ernesto Geisel estava contaminada por arbítrio e violência de toda ordem, em desrespeito ao essencial no que concerne aos direitos humanos: tratava-se de uma política de Estado.
Não são poucos os jovens que desconhecem as atrocidades que marcaram o período ditatorial: mesmo alguns alunos de Ciências Sociais têm uma vaga noção do que ocorreu durante a ditadura, conforme eu e alguns colegas verificamos no decorrer da década de 2000. Quanto à USP, foi compulsoriamente aposentado o que havia de mais primoroso na universidade, inclusive, entre outros, o sociólogo, mestre de todos nós, Florestan Fernandes e o então professor titular da cadeira de Ciência Política, Fernando Henrique Cardoso. Nos primeiros anos da década de 1970 não era rara a prisão de alunos, alguns torturados e mortos, cuja expressão síntese é o assassinato de Alexandre Vannucchi, presidente do Diretório Central dos Estudantes.
Nesse sentido, vale apontar alguns dados que foi possível colher entre 1964 e 1979. Os referentes aos mortos, desparecidos e assassinados durante os interrogatórios são bastante conhecidos. Em relação às violências que desabaram sobre a sociedade civil, as informações são menos conhecidas e, desse modo, é importante assinalá-las: 500 mil pessoas condenadas, processadas, indiciadas ou presas; 4.877 cassados em seus direitos políticos; 10 mil exilados; 270 assuntos censurados; seiscentas peças teatrais proibidas; mil músicas que tiveram o mesmo destino; intervenção em 536 sindicatos, federações e confederações operárias, e assim por diante.1
Essa nova avalanche de informações torna necessário reabrir a polêmica questão da anistia. Não se trata de revanchismo, mas de um esforço para reconstituir a história na medida em que novos dados provenientes de fontes norte-americanas permitem uma revisão de qual foi realmente o papel desempenhado pela cúpula da ditadura militar. Contudo, não são apenas investigações levadas adiante por historiadores e cientistas sociais, e sim informações que, sobretudo, a Comissão da Verdade não pôde investigar e que atualmente permitem averiguar com mais detalhe o que foi a política de Estado em relação àqueles que se opuseram ao regime militar.
As declarações do deputado federal também representam um acinte a todos aqueles que foram perseguidos, torturados ou mortos e a suas respectivas famílias. Defensor da ditadura militar, Bolsonaro é também discípulo do major Brilhante Ustra, chefe da Obam, centro de interrogatórios, torturas e assassinatos.
O que está em jogo é a ascensão de um conservadorismo político e social de extrema direita, que veste um novo uniforme civil de cunho ditatorial. O ovo da serpente constitui uma metáfora de um filme de Ingmar Bergman que representa o lento envenenamento da sociedade pelo nazismo na Alemanha dos anos 1920. Creio que não é exagero dizer que abaixo do Equador está se gestando um réptil que destila um conteúdo fascista que pode envenenar parte considerável de nossa sociedade.
* Lúcio Kowarick é professor titular do Departamento de Ciência Política da USP. Publicou cinco livros – o último, Viver em risco, recebeu o Prêmio Jabuti de 2010 como melhor livro de Ciências Humanas – e recebeu o Prêmio Florestan Fernandes pelo conjunto da obra outorgado pela Associação Brasileira de Sociologia em 2013.
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