Foto: Mídia Ninja |
Abençoado país onde a música expressa o melhor de nossa cultura, no qual dois gigantes com a estatura de Chico Buarque e Gilberto Gil se uniram nos arcos da Lapa carioca para cantar os rumos e as dores do momento atual.
Numa nação de 207 milhões, com um aparato de comunicação ocupado em amortecer a resistência e distrair consciências, poucos homens e mulheres tem a capacidade de mostrar o que está no centro de nossas urgências mais sérias e graves. Poucos tem tanta credibilidade, merecem tanto respeito. Há mais de meio século são vistos como expressão da consciência do Brasil e da maioria dos brasileiros
Repetiram o gesto ontem, ao subir ao palco, para denunciar a prisão de Lula em Curitiba. Histórico.
Cantando "Cálice," a corajosa parceria nascida no período em que a tortura e o assassinato eram métodos usuais de eliminação de adversários políticos, mais uma vez Chico e Gil lembraram a importância de se rejeitar "este cálice, de vinho tinto de sangue".
Em 1973, num show na Politécnica da USP, quando se apresentou só, Gil denunciou o "vinho tinto de sangue" e levantou o protesto dos estudantes contra a morte de um colega da Geologia, Alexandre Vannuchi Leme, massacrado dias antes no DOI-CODI paulista. Naquele espetáculo improvisado e caseiro, pobre, com problemas de som que há muito tempo não enfrentava em sua carreira de artista consagrado, Gil venceu os receios naturais da repressão bruta do momento para encantar uma juventude que se destacava na luta contra a ditadura. Assim cantou os versos desesperados de quem olha para o presente e pergunta
"De que vale ser filho da santa
Melhor ser filho da outra"
mas consegue olhar para o futuro e dizer:
"Atordoado eu permaneço atento
na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa".
Foi este horizonte que os dois ajudaram o país a enxergar, na noite de ontem, lembrando que a existência de povos e países pode ter muitos elementos passageiros -- mas pontos obras-primas da cultura podem ser eternas:
"Mesmo calada a boca resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta"
No Brasil de 2018, mais uma vez entre "tanta mentira, tanta força bruta", até o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsável pelo porão militar que assassinou Alexandre Vannuchi, é celebrado celebrado em camisetas de propaganda da campanha presidencial. Mais do que nunca, ensinam Gil e Chico, em forma tortuosa, também torturada:
"Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno"
Alguma dúvida?
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