Por Marcelo Zero
Os lamentáveis episódios do dia 8 de julho desnudaram ao país e ao mundo que há uma falência generalizada das instituições democráticas do Brasil.
Pela primeira vez, um habeas corpus, instrumento jurídico fundador das garantias democráticas, foi descumprido por manobras articuladas entre um juiz de primeira instância, o Poder Executivo e setores da mídia oligopolizada.
A decisão relativa ao habeas corpus, embora questionável, como toda decisão jurídica, era legítima, legal e regimental. Cabia apenas seu cumprimento expedito. O questionamento e a eventual reversão da decisão cabiam a outras instâncias, que não justiceiros de férias.
Alguns tentaram justificar as escandalosas e ilegais manobras com o pífio argumento de que a decisão fora politicamente motivada.
Entretanto, a reação maciça, histérica e destemperada à decisão demonstrou cabalmente uma nítida partidarização não de indivíduos isolados, mas de instituições inteiras, que se colocaram prontamente a serviço dos donos do poder e contra as garantias asseguradas a todos na Constituição Federal.
O medo/ódio a Lula é de tal ordem que não se admite sua liberdade, ainda que seja por algumas horas ou dias.
Embora um tanto cômico, o caso foi gravíssimo. O escritor português Miguel Sousa Tavares foi preciso. Disse que o que aconteceu foi uma "fantochada jurídica", e afirmou que o Brasil está numa situação "tão grave que precisa de ser refundado".
Este é o ponto. O Brasil, de fato, precisa ser refundado.
O Golpe destruiu o Brasil.
Economicamente, com sua política de austeridade permanente, socialmente, com suas agressões aos direitos sociais e trabalhistas, e politicamente, com a deslegitimação do sistema de representação.
Ademais, comprometeu a soberania nacional, com uma política externa passiva e submissa a interesses externos.
O dano maior, contudo, foi aos fundamentos democráticos da Nação.
Após a ditadura militar, houve um pacto político-democrático, instituído na Constituição de 1988, o qual se assentava, entre outros, nos seguintes pressupostos:
a) O Brasil seria um país efetivamente democrático, no qual a alternância do poder e as decisões emanadas da soberania popular seriam escrupulosamente respeitadas.
b) Seria iniciada a construção de um Estado de Bem Estar, o qual asseguraria, com o tempo, o desfrute de direitos sociais a todos os brasileiros. Em outras palavras, ocorreria no Brasil, embora em circunstâncias históricas diferentes, o mesmo que havia acontecido nas democracias sociais da Europa, as quais, no período do pós-guerra, haviam conseguido construir um processo de distribuição de renda e de afirmação de direitos para as classes antes excluídas parcial ou totalmente do progresso material.
c) Além dos direitos sociais e econômicos, às brasileiras e aos brasileiros seriam assegurados também direitos civis e políticos inalienáveis, independentemente de raça, religião, orientação política, etc.
d) A separação entre os poderes seria concretizada.
e) As instituições, especialmente às vinculadas ao Judiciário, atuariam, tanto quanto possível, de forma isenta e republicana, constituindo-se, assim, num fator de equilíbrio e de moderação das disputas políticas.
Não obstante, com o Golpe todos esses fundamentos civilizatórios esfumaram-se.
O pacto civilizatório e democrático foi rompido. Feriram de morte a soberania popular com um impeachment sem crime de responsabilidade e, em seguida, passaram a implantar uma agenda econômica, social e política profundamente regressiva, em sentido contrário ao apontado pela Constituição Cidadã e ao escolhido pela população em pleito livre.
As consequências nocivas desse processo de ruptura já são amplamente sentidas pela população, principalmente a mais pobre.
Desemprego, aumento da pobreza e das desigualdades, comprometimento dos investimentos públicos e dos serviços públicos essenciais, estagnação econômica, alienação desabrida do patrimônio público, venda acelerada do pré-sal e de outras riquezas estratégicas, queda do protagonismo internacional do Brasil, comprometimento grave da imagem do país no exterior, destruição de amplos setores produtivos, como o da construção civil pesada e a indústria naval, pela operação Lava Jato, etc.
Contudo, o efeito mais nocivo, e talvez o menos debatido, diz respeito justamente ao comprometimento do Judiciário e dos órgãos de controle pela extrema politização da justiça.
Claro está que juízes e procuradores têm sua visão de mundo, sua ideologia.
Num país capitalista, tendem a favorecer os interesses dos poderosos.
Mas quando a politização da justiça passa a comprometer seriamente o funcionamento das instituições jurídicas, como está acontecendo no Brasil, não há democracia possível.
A justiça, num país democrático, deve ser o principal bastião e refúgio da defesa das garantias individuais e coletivas contra o arbítrio do Estado e dos poderosos.
Quando isso falha, ou melhor, quando a justiça funciona contra a defesa dos direitos e garantias individuais, está tudo perdido. Não há democracia. Não há sequer civilização.
O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal da Argentina, Raúl Zaffaroni, tem escrito regularmente sobre a “Operação Condor judicial”, que ocorre em alguns países da América do Sul. Para ele, tal operação tem o objetivo de eliminar de qualquer disputa eleitoral, através da via judicial, todo e qualquer líder ou dirigente popular capaz de ganhar uma eleição competindo contra os candidatos das corporações ou “outros traidores da pátria parecidos”.
Segundo ele, para isso bastam alguns juízes cujas motivações são manipuladas pelos serviços de inteligência e os gerentes e agentes das corporações, especialmente as dos meios de comunicação.
Ainda conforme Zaffaroni, esse “Plano Condor” procura o desprestígio da política, para impor as “soluções técnicas” geradas pelo grande capital.
Mas, ao mesmo tempo, provoca um desprestígio mais profundo em relação à justiça.
Argumenta ele que não somente ninguém levará a sério no futuro as decisões dos juízes que se prestam a substituir funcionalmente os porta-malas dos “Falcon” (onde eram colocados os sequestrados da ditadura argentina), como existe o risco de que a dúvida termine atingindo a totalidade dos juízes.
Ora, é que o está acontecendo no Brasil.
As instituições jurídicas estão perdendo celeremente sua legitimidade.
O punitivismo lava-jatista, inteiramente equivocado, levou de roldão até mesmo setores do Supremo, que manobram para impedir votações vitais para a proteção dos direitos e das garantias individuais.
Perdeu-se a legitimidade, perdeu-se até mesmo a compostura, como se viu no último dia 8 de julho.
Há, agora, no Brasil, uma justiça líquida e inconsistente, resultado da ruptura democrática e civilizatória promovida pelo Golpe.
Assim sendo, o esfarelamento das instituições atinge os três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Há algo de profundamente podre no Reino do Brasil.
Nesse quadro terrível de ruptura democrática e civilizatória e de comprometimento geral das instituições, cabe perguntar se a eventual eleição de um líder popular e progressista como Lula seria suficiente para recompor a democracia brasileira.
Creio que não.
A democracia brasileira precisa ser refundada, como diria Miguel Sousa Tavares, e as instituições que a sustentam precisam ser reconstruídas.
Isso só pode ser feito, de modo legítimo e profundo, mediante a celebração de um novo pacto democrático e civilizatório por uma Assembleia Popular Constituinte.
É preciso ter em mente que não estão mais presentes as condições externas para uma fácil conciliação de interesses das distintas classes sociais, como ocorreu no início deste século, ao longo dos governos do PT.
O quadro interno e o novo cenário geopolítico impõem sacrifícios às nossas oligarquias para que o Brasil possa se desenvolver novamente distribuindo renda e assegurando direitos.
Será necessário, portanto, encarar de frente um conflito distributivo para que se possa implantar um novo ciclo de crescimento com inclusão social.
Esse conflito distributivo poderá ser suprimido momentaneamente pela violência institucional e política contra as classes populares, como o Golpe vem fazendo, ou poderá ser solucionado pacificamente pela soberania popular, expressa numa nova Constituição, que reformule profundamente as instituições políticas, as instituições judiciais, os meios de comunicação e a estrutura tributária brasileira, entre outros tantos fatores.
O Brasil precisará escolher não apenas entre projetos de governo, mas entre projetos de país.
Terá de escolher entre civilização e barbárie.
Sem dúvida, o país não pode funcionar mais com esse nível de privatização do Estado e com o total comprometimento das instituições nacionais com as oligarquias locais e os interesses de grandes capitais internacionais. Chegamos ao limite da selvageria institucionalizada.
Lula é necessário, mas não é suficiente. O Brasil precisa libertar o seu povo.
Os lamentáveis episódios do dia 8 de julho desnudaram ao país e ao mundo que há uma falência generalizada das instituições democráticas do Brasil.
Pela primeira vez, um habeas corpus, instrumento jurídico fundador das garantias democráticas, foi descumprido por manobras articuladas entre um juiz de primeira instância, o Poder Executivo e setores da mídia oligopolizada.
A decisão relativa ao habeas corpus, embora questionável, como toda decisão jurídica, era legítima, legal e regimental. Cabia apenas seu cumprimento expedito. O questionamento e a eventual reversão da decisão cabiam a outras instâncias, que não justiceiros de férias.
Alguns tentaram justificar as escandalosas e ilegais manobras com o pífio argumento de que a decisão fora politicamente motivada.
Entretanto, a reação maciça, histérica e destemperada à decisão demonstrou cabalmente uma nítida partidarização não de indivíduos isolados, mas de instituições inteiras, que se colocaram prontamente a serviço dos donos do poder e contra as garantias asseguradas a todos na Constituição Federal.
O medo/ódio a Lula é de tal ordem que não se admite sua liberdade, ainda que seja por algumas horas ou dias.
Embora um tanto cômico, o caso foi gravíssimo. O escritor português Miguel Sousa Tavares foi preciso. Disse que o que aconteceu foi uma "fantochada jurídica", e afirmou que o Brasil está numa situação "tão grave que precisa de ser refundado".
Este é o ponto. O Brasil, de fato, precisa ser refundado.
O Golpe destruiu o Brasil.
Economicamente, com sua política de austeridade permanente, socialmente, com suas agressões aos direitos sociais e trabalhistas, e politicamente, com a deslegitimação do sistema de representação.
Ademais, comprometeu a soberania nacional, com uma política externa passiva e submissa a interesses externos.
O dano maior, contudo, foi aos fundamentos democráticos da Nação.
Após a ditadura militar, houve um pacto político-democrático, instituído na Constituição de 1988, o qual se assentava, entre outros, nos seguintes pressupostos:
a) O Brasil seria um país efetivamente democrático, no qual a alternância do poder e as decisões emanadas da soberania popular seriam escrupulosamente respeitadas.
b) Seria iniciada a construção de um Estado de Bem Estar, o qual asseguraria, com o tempo, o desfrute de direitos sociais a todos os brasileiros. Em outras palavras, ocorreria no Brasil, embora em circunstâncias históricas diferentes, o mesmo que havia acontecido nas democracias sociais da Europa, as quais, no período do pós-guerra, haviam conseguido construir um processo de distribuição de renda e de afirmação de direitos para as classes antes excluídas parcial ou totalmente do progresso material.
c) Além dos direitos sociais e econômicos, às brasileiras e aos brasileiros seriam assegurados também direitos civis e políticos inalienáveis, independentemente de raça, religião, orientação política, etc.
d) A separação entre os poderes seria concretizada.
e) As instituições, especialmente às vinculadas ao Judiciário, atuariam, tanto quanto possível, de forma isenta e republicana, constituindo-se, assim, num fator de equilíbrio e de moderação das disputas políticas.
Não obstante, com o Golpe todos esses fundamentos civilizatórios esfumaram-se.
O pacto civilizatório e democrático foi rompido. Feriram de morte a soberania popular com um impeachment sem crime de responsabilidade e, em seguida, passaram a implantar uma agenda econômica, social e política profundamente regressiva, em sentido contrário ao apontado pela Constituição Cidadã e ao escolhido pela população em pleito livre.
As consequências nocivas desse processo de ruptura já são amplamente sentidas pela população, principalmente a mais pobre.
Desemprego, aumento da pobreza e das desigualdades, comprometimento dos investimentos públicos e dos serviços públicos essenciais, estagnação econômica, alienação desabrida do patrimônio público, venda acelerada do pré-sal e de outras riquezas estratégicas, queda do protagonismo internacional do Brasil, comprometimento grave da imagem do país no exterior, destruição de amplos setores produtivos, como o da construção civil pesada e a indústria naval, pela operação Lava Jato, etc.
Contudo, o efeito mais nocivo, e talvez o menos debatido, diz respeito justamente ao comprometimento do Judiciário e dos órgãos de controle pela extrema politização da justiça.
Claro está que juízes e procuradores têm sua visão de mundo, sua ideologia.
Num país capitalista, tendem a favorecer os interesses dos poderosos.
Mas quando a politização da justiça passa a comprometer seriamente o funcionamento das instituições jurídicas, como está acontecendo no Brasil, não há democracia possível.
A justiça, num país democrático, deve ser o principal bastião e refúgio da defesa das garantias individuais e coletivas contra o arbítrio do Estado e dos poderosos.
Quando isso falha, ou melhor, quando a justiça funciona contra a defesa dos direitos e garantias individuais, está tudo perdido. Não há democracia. Não há sequer civilização.
O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal da Argentina, Raúl Zaffaroni, tem escrito regularmente sobre a “Operação Condor judicial”, que ocorre em alguns países da América do Sul. Para ele, tal operação tem o objetivo de eliminar de qualquer disputa eleitoral, através da via judicial, todo e qualquer líder ou dirigente popular capaz de ganhar uma eleição competindo contra os candidatos das corporações ou “outros traidores da pátria parecidos”.
Segundo ele, para isso bastam alguns juízes cujas motivações são manipuladas pelos serviços de inteligência e os gerentes e agentes das corporações, especialmente as dos meios de comunicação.
Ainda conforme Zaffaroni, esse “Plano Condor” procura o desprestígio da política, para impor as “soluções técnicas” geradas pelo grande capital.
Mas, ao mesmo tempo, provoca um desprestígio mais profundo em relação à justiça.
Argumenta ele que não somente ninguém levará a sério no futuro as decisões dos juízes que se prestam a substituir funcionalmente os porta-malas dos “Falcon” (onde eram colocados os sequestrados da ditadura argentina), como existe o risco de que a dúvida termine atingindo a totalidade dos juízes.
Ora, é que o está acontecendo no Brasil.
As instituições jurídicas estão perdendo celeremente sua legitimidade.
O punitivismo lava-jatista, inteiramente equivocado, levou de roldão até mesmo setores do Supremo, que manobram para impedir votações vitais para a proteção dos direitos e das garantias individuais.
Perdeu-se a legitimidade, perdeu-se até mesmo a compostura, como se viu no último dia 8 de julho.
Há, agora, no Brasil, uma justiça líquida e inconsistente, resultado da ruptura democrática e civilizatória promovida pelo Golpe.
Assim sendo, o esfarelamento das instituições atinge os três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Há algo de profundamente podre no Reino do Brasil.
Nesse quadro terrível de ruptura democrática e civilizatória e de comprometimento geral das instituições, cabe perguntar se a eventual eleição de um líder popular e progressista como Lula seria suficiente para recompor a democracia brasileira.
Creio que não.
A democracia brasileira precisa ser refundada, como diria Miguel Sousa Tavares, e as instituições que a sustentam precisam ser reconstruídas.
Isso só pode ser feito, de modo legítimo e profundo, mediante a celebração de um novo pacto democrático e civilizatório por uma Assembleia Popular Constituinte.
É preciso ter em mente que não estão mais presentes as condições externas para uma fácil conciliação de interesses das distintas classes sociais, como ocorreu no início deste século, ao longo dos governos do PT.
O quadro interno e o novo cenário geopolítico impõem sacrifícios às nossas oligarquias para que o Brasil possa se desenvolver novamente distribuindo renda e assegurando direitos.
Será necessário, portanto, encarar de frente um conflito distributivo para que se possa implantar um novo ciclo de crescimento com inclusão social.
Esse conflito distributivo poderá ser suprimido momentaneamente pela violência institucional e política contra as classes populares, como o Golpe vem fazendo, ou poderá ser solucionado pacificamente pela soberania popular, expressa numa nova Constituição, que reformule profundamente as instituições políticas, as instituições judiciais, os meios de comunicação e a estrutura tributária brasileira, entre outros tantos fatores.
O Brasil precisará escolher não apenas entre projetos de governo, mas entre projetos de país.
Terá de escolher entre civilização e barbárie.
Sem dúvida, o país não pode funcionar mais com esse nível de privatização do Estado e com o total comprometimento das instituições nacionais com as oligarquias locais e os interesses de grandes capitais internacionais. Chegamos ao limite da selvageria institucionalizada.
Lula é necessário, mas não é suficiente. O Brasil precisa libertar o seu povo.
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