Por Pedro Estevam Serrano, no site Jornalistas Livres:
Estado Democrático de Direito
Após as revoluções liberais ou burguesas – inglesa, francesa e americana –, podemos observar que o Estado moderno passou a existir sob duas configurações básicas: Estado Democrático de Direito – no qual as decisões políticas são adotadas por maioria, garantindo-se os direitos contramajoritários, e em que os direitos são estabelecidos não apenas no plano político, mas também no plano jurídico, principalmente no período pós-guerra, quando se adotaram constituições rígidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 – e Estado de exceção.
Muito se fala nas crises econômicas cíclicas dos Estados capitalistas, mas pouco se analisam as crises políticas que periodicamente neles ocorrem, as quais são desencadeadoras de paradigmas autoritários de Estado. O Estado de exceção é o segundo modelo geral que o Estado moderno adquiriu até o fim do século XX.
Estado de exceção
A expressão Estado de exceção surge na Constituição de Weimar, de 1919, que declara a Alemanha uma república democrática parlamentar. Em seu artigo 48, a Carta apresenta um instituto jurídico que serviria ao atendimento de uma situação fática de emergência. Essa emergência poderia ter como causa um cataclismo natural, gerador de calamidade pública, ou uma situação de guerra em que houvesse grave ameaça à segurança e à paz da sociedade. Nessas situações, poderia haver a declaração do Estado de exceção, que suspenderia provisoriamente os direitos dos cidadãos para atender a emergência em questão. Portanto, a expressão “Estado de exceção” tem origem no direito constitucional alemão, diretamente vinculada ao ato de suspender direitos e conceder ao Estado maior soberania.
As ditaduras, os bonapartismos e o nazifascismo
Esse conceito, no entanto, acabou sendo apropriado pela Teoria Geral do Estado e passou a ser utilizado como sinônimo das várias conformações de Estado autoritário surgidas a partir das revoluções ditas burguesas ou liberais. O jurista e então Professor da Sorbonne, Nico Poulantzas, por exemplo, chamava de Estado de exceção um gênero de Estado que inclui as ditaduras, os bonapartismos e o nazifascismo. O conceito passa a caracterizar um modelo de Estado autoritário e totalitário que se constitui a partir da ideia do ataque do inimigo.
Regime jurídico de guerra transplantado para dentro das nações
Carl Schmitt, um dos principais pensadores do tema, é quem teoriza como esse regime jurídico da guerra, relacionado ao ataque do inimigo e à necessidade de combatê-lo, é transplantado para o campo interno das nações, para a relação entre Estado e indivíduo ou grupo de pessoas, e não mais somente entre Estados. Schmitt constrói uma teoria do Direito e do Estado que fala da possibilidade de se tratar como inimigos indivíduos ou grupos que estejam associados à ideia de ameaça à unidade e à homogeneidade de um determinado povo. Todos que ofereçam risco a essa unidade social ou à pureza que dela emana podem ser tratados como inimigos e, assim, ter seus direitos suspensos. É como se Schmitt imaginasse que o Estado de Direito e os direitos são uma boa forma de reger a vida política em tempos de paz. Porém, havendo risco à segurança e à unidade do povo, a preservação do Estado deveria se sobrepor aos direitos individuais.
Suspensão de direitos, sob pretexto de combater o inimigo
O modelo que veio a ser nomeado como Estado de exceção é o que prevalece desde o bonapartismo e vai até o fim do século XX, que podemos arbitrariamente fixar em 1989, com a queda do muro de Berlim. Durante todo esse período, o que se observou foi o autoritarismo manifestando-se por meio de governos e Estados de exceção que, sob o pretexto de combater o inimigo, suspenderam os direitos individuais e o Direito pelo prazo necessário ao enfrentamento desse inimigo. Trata-se, portanto, de soberanias excepcionais e provisórias, que subtraem os direitos da sociedade como um todo ou, em alguns casos, apenas de determinados grupos sociais. Importante dizer que esses governos de exceção, totalitários, assenhoraram-se do poder não só pela via do golpe militar, como ocorreu na América Latina, mas também pela via democrática, como é o caso do nazismo e do fascismo na Europa
A transformação dos modelos de autoritarismo pelo neoliberalismo
O surgimento do neoliberalismo, que começa a ser gestado a partir das décadas de 60 e 70, com o capital financeiro passando cada vez mais a assumir um papel central no capitalismo, vai transformando os modelos de autoritarismo. Não que o autoritarismo acabe, mas vai se modificando. A experiência do nazismo, do fascismo e das ditaduras militares, representativos da barbárie, do genocídio, de formas extremamente desumanas de se tratar o ser humano, contrapôs a ideia de Estado de exceção à ideia de civilização.
Pós-guerra: direitos humanos deixam de ser meramente formais
No pós-guerra se constitui um pacto humanístico e democrático que refunda o entendimento de democracia, que deixa de ser interpretada como um conceito meramente formal de procedimento de disputa e debate pacífico entre grupos sociais que levam a uma decisão majoritária, passando a ser concebida também como regime que dá garantia a direitos, ou seja, no qual essa decisão majoritária não agride os chamados direitos negativos, os direitos de liberdade. Os direitos de liberdade, integrados numa noção de direitos humanos, deixam de ser mera declaração política e passam a ser imposição jurídica superior na estrutura de Estado, por meio das constituições rígidas, no plano interno e, no plano internacional, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Após o trauma que a segunda guerra mundial produziu, sobretudo, no mundo ocidental, não havia condições políticas para se defender ditaduras e formas autoritárias de governo, o que fez com que regimes de exceção perdessem significativamente sua capacidade de validação discursiva.
O autoritarismo sob nova fórmula
O autoritarismo passa então a se manifestar sob uma nova fórmula, que são as medidas de exceção presentes no interior das democracias. Governos declarados democráticos, nos quais estruturas próprias da democracia, como eleição e voto são mantidas, passam a produzir medidas características de regimes autoritários, totalitários, elegendo e combatendo inimigos, suspendendo direitos e estabelecendo um regime jurídico próprio da guerra na relação entre Estado e indivíduo.
Europa e Estados Unidos
Na Europa e nos Estados Unidos essas medidas de exceção, em geral, são ou produzidas pelo poder legislativo ou pelo próprio poder executivo, sempre no sentido de fortalecer este último como agente soberano. Outro aspecto do regime jurídico da exceção no primeiro mundo é o fato de as medidas de exceção estarem inseridas geralmente no ambiente de um regime jurídico especial de proteção à segurança nacional, que elege como inimigo o estrangeiro, o “terrorista” identificado com o muçulmano, por exemplo.
América Latina
Na América Latina há diferenças essenciais. Aqui as medidas de exceção são capitaneadas ou produzidas pelo sistema de justiça e contam com forte respaldo da mídia para obtenção de apoio social. Há também medidas autoritárias produzidas pelo legislativo e pelo executivo, mas elas não são preponderantes na estrutura do sistema. Além disso, não há a criação de um regime especial de segurança nacional que defina o alcance dessas medidas de exceção e o inimigo a ser combatido. O inimigo aqui não é o estrangeiro, mas sim o pobre, associado à figura do bandido. As medidas se produzem rotineiramente no interior do ordenamento do direito penal, o que traz um impacto muito mais autoritário no âmbito do funcionamento estatal.
O processo penal de exceção
Essas características específicas se manifestam inicialmente através da política de guerra às drogas, implantada nos EUA na década de 1970, e importada pelo Brasil no início dos anos 1990, redundando no encarceramento em massa da população pobre e periférica, dentro do que podemos definir como a primeira modalidade de medidas de exceção produzidas pelo nosso sistema de justiça: o processo penal de exceção – expressão cunhada pelo professor Fernando Hideo Lacerda para designar a utilização da forma democrática do processo penal para produzir conteúdo tirânico próprio de um agenciamento autoritário das funções estatais.
O direito de defesa existe apenas no plano formal
O processo penal se dá como fraude ou farsa, já que o direito de defesa, princípio jurídico fundamental constitucionalmente garantido, existe apenas no plano formal. Vale lembrar que 40% dos aprisionados no Brasil estão encarcerados de forma provisória, ou seja, sem que tenham recebido sequer uma sentença de primeiro grau. Proporção essa relativa a uma população carcerária que quadruplicou de 1990 para cá, chegando ao terceiro lugar no ranking mundial, em termos absolutos, com mais de 726 mil pessoas presas. Ao mesmo tempo, o aprisionamento em massa fortalece o crime organizado, fundamentando uma ação estatal mais agressiva para combatê-lo, gerando assim um ciclo não virtuoso de sustentação dos mecanismos de violência. Como resultado, vemos o número de mortes violentas decuplicar no país desde o fim da década de 1980 e a taxa de homicídios mais do que quadruplicar, em valores proporcionais. Segundo o Atlas da Violência 2018, publicação do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 553 mil pessoas foram assassinadas no país nos últimos 11 anos. O total de mortos é maior que o da Síria, que enfrenta sete anos de guerra, contabilizando cerca de 500 mil mortos, de acordo com estimativa da ONU.
O Mensalão: a inclusão da política nos processos penais de exceção
Outro fenômeno ocorrido no Brasil, desde o chamado “Mensalão”, foi a migração dos processos penais de exceção para o ambiente da política. Lideranças políticas, preponderantemente de esquerda, e também algumas lideranças empresariais, passam a ser vítimas de processos penais de exceção, nos quais se cumpre apenas aparentemente o rito formal. O exemplo mais emblemático certamente é a prisão do ex-presidente Lula, cujo processo penal se desencadeou para a produção de um resultado político autoritário, objetivando a persecução política de um inimigo, e não a punição de um cidadão que errou.
As interrupções do processo democrático
Os processos penais de exceção não são a única modalidade de medidas autoritárias praticadas na América Latina. Na última década, medidas de exceção facilitadas, confirmadas ou mesmo produzidas pelo sistema de justiça com vistas a interromper o ciclo democrático se fizeram presentes por aqui. Em Honduras, o mandato do presidente Manuel Zelaya foi suprimido pelo parlamento com a confirmação da Corte Suprema do país que, inclusive, ordenou sua prisão sem oitiva prévia. No Paraguai, o presidente Fernando Lugo foi retirado do cargo por meio de um processo de impeachment em que não se observaram minimamente os seus direitos de defesa. E aqui no Brasil, assistimos recentemente à destituição da presidente Dilma, em um processo comandado pelo legislativo e referendado pelo judiciário, que foi responsável também por criar o ambiente político gerador do clima de apoio social próprio a essa medida de exceção. A produção da medida, no plano formal, se deu pela via legislativa, mas o agente da exceção foi o sistema de justiça.
Não se pode deixar de mencionar que, na América Latina, até mesmo em governos de esquerda, medidas de exceção são praticadas em processos penais contra lideranças de oposição, como é o caso da Venezuela.
Erosão de significado do pacto democrático
De forma mais abrangente, o que se percebe no mundo contemporâneo é o esvaziamento de sentido dos direitos humanos e fundamentais e das constituições do pós-guerra, fenômeno apontado por diversos estudiosos. Ronald Dworkin, jurista norte-americano, partindo do conflito entre republicanos e democratas nos EUA, fala da perda de common grounds, de consensos civilizatórios mínimos, para mostrar a erosão de significado desse pacto democrático humanista estabelecido no pós-guerra.
Bobbio, Ferrajoli e Boaventura Sousa Santos
Norberto Bobbio, a partir do caso Berlusconi, desvenda o que ele chama de “novos despotismos”. Luigi Ferrajoli se refere a esse movimento como “processo desconstituinte” fruto de “poderes selvagens”. O professor Boaventura Sousa Santos chama de “democracia de baixa intensidade”.
Rafael Valim e Rubens Casara
Aqui no Brasil, Rafael Valim chama a atenção para o “estado de exceção como forma jurídica do neoliberalismo”. Rubens Casara usa o termo “estado pós-democrático”, e eu classifico o fenômeno como medidas de exceção produzidas no interior do regime democrático.
A aparência de respeito às instituições e ao Estado de Direito
É necessário ressaltar que essa produção de medidas de exceção geradoras de um poder desconstituinte é uma forma mais aperfeiçoada de autoritarismo. São medidas de alcance cirúrgico, atingindo grupos ou pessoas segundo os interesses de quem as pratica, e mais flexíveis no plano político, convivendo com institutos e medidas democráticas e mantendo, portanto, uma aparência de respeito às instituições e ao Estado de Direito. Não é raro que um mesmo tribunal produza uma decisão que observe o princípio democrático e também medidas de exceção.
A convivência entre estruturas autoritárias e democráticas em um mesmo sistema, ambas tendo caráter estrutural, gera uma complexidade que torna o fenômeno de difícil percepção. Isso porque não se trata de mera disfunção de um Estado democrático em pleno funcionamento, o que seria natural. É, na verdade, como alude Ferrajoli, uma patologia instalada, um novo paradigma capaz de obter uma eficácia autoritária sem o ônus de um governo declaradamente autoritário.
A dificuldade em localizar o agente
Os mecanismos autoritários das medidas de exceção foram de certa forma aperfeiçoados em relação aos dos governos de exceção. Assim, eles impõem maior dificuldade em localizar o agente, já que não há o lugar do ditador, e conseguem ter maior justificação discursiva no âmbito da narrativa histórica, já que não existe a figura da ditadura, que é mais facilmente identificável e passível de ser contestada e combatida.
A grande tarefa democrática e humanista
Portanto, hoje, a grande tarefa democrática e humanista da contemporaneidade é defender com veemência os direitos de liberdade face às medidas de exceção, incluindo esforços no campo discursivo para jogar luz e explicitar onde e quais são esses mecanismos autoritários que esfacelam os direitos fundamentais de todos nós diuturna e sorrateiramente, para que possam ser denunciados e combatidos.
Após as revoluções liberais ou burguesas – inglesa, francesa e americana –, podemos observar que o Estado moderno passou a existir sob duas configurações básicas: Estado Democrático de Direito – no qual as decisões políticas são adotadas por maioria, garantindo-se os direitos contramajoritários, e em que os direitos são estabelecidos não apenas no plano político, mas também no plano jurídico, principalmente no período pós-guerra, quando se adotaram constituições rígidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 – e Estado de exceção.
Muito se fala nas crises econômicas cíclicas dos Estados capitalistas, mas pouco se analisam as crises políticas que periodicamente neles ocorrem, as quais são desencadeadoras de paradigmas autoritários de Estado. O Estado de exceção é o segundo modelo geral que o Estado moderno adquiriu até o fim do século XX.
Estado de exceção
A expressão Estado de exceção surge na Constituição de Weimar, de 1919, que declara a Alemanha uma república democrática parlamentar. Em seu artigo 48, a Carta apresenta um instituto jurídico que serviria ao atendimento de uma situação fática de emergência. Essa emergência poderia ter como causa um cataclismo natural, gerador de calamidade pública, ou uma situação de guerra em que houvesse grave ameaça à segurança e à paz da sociedade. Nessas situações, poderia haver a declaração do Estado de exceção, que suspenderia provisoriamente os direitos dos cidadãos para atender a emergência em questão. Portanto, a expressão “Estado de exceção” tem origem no direito constitucional alemão, diretamente vinculada ao ato de suspender direitos e conceder ao Estado maior soberania.
As ditaduras, os bonapartismos e o nazifascismo
Esse conceito, no entanto, acabou sendo apropriado pela Teoria Geral do Estado e passou a ser utilizado como sinônimo das várias conformações de Estado autoritário surgidas a partir das revoluções ditas burguesas ou liberais. O jurista e então Professor da Sorbonne, Nico Poulantzas, por exemplo, chamava de Estado de exceção um gênero de Estado que inclui as ditaduras, os bonapartismos e o nazifascismo. O conceito passa a caracterizar um modelo de Estado autoritário e totalitário que se constitui a partir da ideia do ataque do inimigo.
Regime jurídico de guerra transplantado para dentro das nações
Carl Schmitt, um dos principais pensadores do tema, é quem teoriza como esse regime jurídico da guerra, relacionado ao ataque do inimigo e à necessidade de combatê-lo, é transplantado para o campo interno das nações, para a relação entre Estado e indivíduo ou grupo de pessoas, e não mais somente entre Estados. Schmitt constrói uma teoria do Direito e do Estado que fala da possibilidade de se tratar como inimigos indivíduos ou grupos que estejam associados à ideia de ameaça à unidade e à homogeneidade de um determinado povo. Todos que ofereçam risco a essa unidade social ou à pureza que dela emana podem ser tratados como inimigos e, assim, ter seus direitos suspensos. É como se Schmitt imaginasse que o Estado de Direito e os direitos são uma boa forma de reger a vida política em tempos de paz. Porém, havendo risco à segurança e à unidade do povo, a preservação do Estado deveria se sobrepor aos direitos individuais.
Suspensão de direitos, sob pretexto de combater o inimigo
O modelo que veio a ser nomeado como Estado de exceção é o que prevalece desde o bonapartismo e vai até o fim do século XX, que podemos arbitrariamente fixar em 1989, com a queda do muro de Berlim. Durante todo esse período, o que se observou foi o autoritarismo manifestando-se por meio de governos e Estados de exceção que, sob o pretexto de combater o inimigo, suspenderam os direitos individuais e o Direito pelo prazo necessário ao enfrentamento desse inimigo. Trata-se, portanto, de soberanias excepcionais e provisórias, que subtraem os direitos da sociedade como um todo ou, em alguns casos, apenas de determinados grupos sociais. Importante dizer que esses governos de exceção, totalitários, assenhoraram-se do poder não só pela via do golpe militar, como ocorreu na América Latina, mas também pela via democrática, como é o caso do nazismo e do fascismo na Europa
A transformação dos modelos de autoritarismo pelo neoliberalismo
O surgimento do neoliberalismo, que começa a ser gestado a partir das décadas de 60 e 70, com o capital financeiro passando cada vez mais a assumir um papel central no capitalismo, vai transformando os modelos de autoritarismo. Não que o autoritarismo acabe, mas vai se modificando. A experiência do nazismo, do fascismo e das ditaduras militares, representativos da barbárie, do genocídio, de formas extremamente desumanas de se tratar o ser humano, contrapôs a ideia de Estado de exceção à ideia de civilização.
Pós-guerra: direitos humanos deixam de ser meramente formais
No pós-guerra se constitui um pacto humanístico e democrático que refunda o entendimento de democracia, que deixa de ser interpretada como um conceito meramente formal de procedimento de disputa e debate pacífico entre grupos sociais que levam a uma decisão majoritária, passando a ser concebida também como regime que dá garantia a direitos, ou seja, no qual essa decisão majoritária não agride os chamados direitos negativos, os direitos de liberdade. Os direitos de liberdade, integrados numa noção de direitos humanos, deixam de ser mera declaração política e passam a ser imposição jurídica superior na estrutura de Estado, por meio das constituições rígidas, no plano interno e, no plano internacional, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Após o trauma que a segunda guerra mundial produziu, sobretudo, no mundo ocidental, não havia condições políticas para se defender ditaduras e formas autoritárias de governo, o que fez com que regimes de exceção perdessem significativamente sua capacidade de validação discursiva.
O autoritarismo sob nova fórmula
O autoritarismo passa então a se manifestar sob uma nova fórmula, que são as medidas de exceção presentes no interior das democracias. Governos declarados democráticos, nos quais estruturas próprias da democracia, como eleição e voto são mantidas, passam a produzir medidas características de regimes autoritários, totalitários, elegendo e combatendo inimigos, suspendendo direitos e estabelecendo um regime jurídico próprio da guerra na relação entre Estado e indivíduo.
Europa e Estados Unidos
Na Europa e nos Estados Unidos essas medidas de exceção, em geral, são ou produzidas pelo poder legislativo ou pelo próprio poder executivo, sempre no sentido de fortalecer este último como agente soberano. Outro aspecto do regime jurídico da exceção no primeiro mundo é o fato de as medidas de exceção estarem inseridas geralmente no ambiente de um regime jurídico especial de proteção à segurança nacional, que elege como inimigo o estrangeiro, o “terrorista” identificado com o muçulmano, por exemplo.
América Latina
Na América Latina há diferenças essenciais. Aqui as medidas de exceção são capitaneadas ou produzidas pelo sistema de justiça e contam com forte respaldo da mídia para obtenção de apoio social. Há também medidas autoritárias produzidas pelo legislativo e pelo executivo, mas elas não são preponderantes na estrutura do sistema. Além disso, não há a criação de um regime especial de segurança nacional que defina o alcance dessas medidas de exceção e o inimigo a ser combatido. O inimigo aqui não é o estrangeiro, mas sim o pobre, associado à figura do bandido. As medidas se produzem rotineiramente no interior do ordenamento do direito penal, o que traz um impacto muito mais autoritário no âmbito do funcionamento estatal.
O processo penal de exceção
Essas características específicas se manifestam inicialmente através da política de guerra às drogas, implantada nos EUA na década de 1970, e importada pelo Brasil no início dos anos 1990, redundando no encarceramento em massa da população pobre e periférica, dentro do que podemos definir como a primeira modalidade de medidas de exceção produzidas pelo nosso sistema de justiça: o processo penal de exceção – expressão cunhada pelo professor Fernando Hideo Lacerda para designar a utilização da forma democrática do processo penal para produzir conteúdo tirânico próprio de um agenciamento autoritário das funções estatais.
O direito de defesa existe apenas no plano formal
O processo penal se dá como fraude ou farsa, já que o direito de defesa, princípio jurídico fundamental constitucionalmente garantido, existe apenas no plano formal. Vale lembrar que 40% dos aprisionados no Brasil estão encarcerados de forma provisória, ou seja, sem que tenham recebido sequer uma sentença de primeiro grau. Proporção essa relativa a uma população carcerária que quadruplicou de 1990 para cá, chegando ao terceiro lugar no ranking mundial, em termos absolutos, com mais de 726 mil pessoas presas. Ao mesmo tempo, o aprisionamento em massa fortalece o crime organizado, fundamentando uma ação estatal mais agressiva para combatê-lo, gerando assim um ciclo não virtuoso de sustentação dos mecanismos de violência. Como resultado, vemos o número de mortes violentas decuplicar no país desde o fim da década de 1980 e a taxa de homicídios mais do que quadruplicar, em valores proporcionais. Segundo o Atlas da Violência 2018, publicação do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 553 mil pessoas foram assassinadas no país nos últimos 11 anos. O total de mortos é maior que o da Síria, que enfrenta sete anos de guerra, contabilizando cerca de 500 mil mortos, de acordo com estimativa da ONU.
O Mensalão: a inclusão da política nos processos penais de exceção
Outro fenômeno ocorrido no Brasil, desde o chamado “Mensalão”, foi a migração dos processos penais de exceção para o ambiente da política. Lideranças políticas, preponderantemente de esquerda, e também algumas lideranças empresariais, passam a ser vítimas de processos penais de exceção, nos quais se cumpre apenas aparentemente o rito formal. O exemplo mais emblemático certamente é a prisão do ex-presidente Lula, cujo processo penal se desencadeou para a produção de um resultado político autoritário, objetivando a persecução política de um inimigo, e não a punição de um cidadão que errou.
As interrupções do processo democrático
Os processos penais de exceção não são a única modalidade de medidas autoritárias praticadas na América Latina. Na última década, medidas de exceção facilitadas, confirmadas ou mesmo produzidas pelo sistema de justiça com vistas a interromper o ciclo democrático se fizeram presentes por aqui. Em Honduras, o mandato do presidente Manuel Zelaya foi suprimido pelo parlamento com a confirmação da Corte Suprema do país que, inclusive, ordenou sua prisão sem oitiva prévia. No Paraguai, o presidente Fernando Lugo foi retirado do cargo por meio de um processo de impeachment em que não se observaram minimamente os seus direitos de defesa. E aqui no Brasil, assistimos recentemente à destituição da presidente Dilma, em um processo comandado pelo legislativo e referendado pelo judiciário, que foi responsável também por criar o ambiente político gerador do clima de apoio social próprio a essa medida de exceção. A produção da medida, no plano formal, se deu pela via legislativa, mas o agente da exceção foi o sistema de justiça.
Não se pode deixar de mencionar que, na América Latina, até mesmo em governos de esquerda, medidas de exceção são praticadas em processos penais contra lideranças de oposição, como é o caso da Venezuela.
Erosão de significado do pacto democrático
De forma mais abrangente, o que se percebe no mundo contemporâneo é o esvaziamento de sentido dos direitos humanos e fundamentais e das constituições do pós-guerra, fenômeno apontado por diversos estudiosos. Ronald Dworkin, jurista norte-americano, partindo do conflito entre republicanos e democratas nos EUA, fala da perda de common grounds, de consensos civilizatórios mínimos, para mostrar a erosão de significado desse pacto democrático humanista estabelecido no pós-guerra.
Bobbio, Ferrajoli e Boaventura Sousa Santos
Norberto Bobbio, a partir do caso Berlusconi, desvenda o que ele chama de “novos despotismos”. Luigi Ferrajoli se refere a esse movimento como “processo desconstituinte” fruto de “poderes selvagens”. O professor Boaventura Sousa Santos chama de “democracia de baixa intensidade”.
Rafael Valim e Rubens Casara
Aqui no Brasil, Rafael Valim chama a atenção para o “estado de exceção como forma jurídica do neoliberalismo”. Rubens Casara usa o termo “estado pós-democrático”, e eu classifico o fenômeno como medidas de exceção produzidas no interior do regime democrático.
A aparência de respeito às instituições e ao Estado de Direito
É necessário ressaltar que essa produção de medidas de exceção geradoras de um poder desconstituinte é uma forma mais aperfeiçoada de autoritarismo. São medidas de alcance cirúrgico, atingindo grupos ou pessoas segundo os interesses de quem as pratica, e mais flexíveis no plano político, convivendo com institutos e medidas democráticas e mantendo, portanto, uma aparência de respeito às instituições e ao Estado de Direito. Não é raro que um mesmo tribunal produza uma decisão que observe o princípio democrático e também medidas de exceção.
A convivência entre estruturas autoritárias e democráticas em um mesmo sistema, ambas tendo caráter estrutural, gera uma complexidade que torna o fenômeno de difícil percepção. Isso porque não se trata de mera disfunção de um Estado democrático em pleno funcionamento, o que seria natural. É, na verdade, como alude Ferrajoli, uma patologia instalada, um novo paradigma capaz de obter uma eficácia autoritária sem o ônus de um governo declaradamente autoritário.
A dificuldade em localizar o agente
Os mecanismos autoritários das medidas de exceção foram de certa forma aperfeiçoados em relação aos dos governos de exceção. Assim, eles impõem maior dificuldade em localizar o agente, já que não há o lugar do ditador, e conseguem ter maior justificação discursiva no âmbito da narrativa histórica, já que não existe a figura da ditadura, que é mais facilmente identificável e passível de ser contestada e combatida.
A grande tarefa democrática e humanista
Portanto, hoje, a grande tarefa democrática e humanista da contemporaneidade é defender com veemência os direitos de liberdade face às medidas de exceção, incluindo esforços no campo discursivo para jogar luz e explicitar onde e quais são esses mecanismos autoritários que esfacelam os direitos fundamentais de todos nós diuturna e sorrateiramente, para que possam ser denunciados e combatidos.
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