Por Glauco Faria, na Rede Brasil Atual:
O instituto da delação ou colaboração premiada, celebrizado na Operação Lava Jato, já havia sido adotado como uma estratégia no caso Banestado. Seu ressurgimento, com o mesmo juiz, Sergio Moro, no âmbito da Operação Lava Jato, resultou, no entanto, em um número muito maior de sentenças condenatórias. Seu uso também foi mais difundido e, em parte, isso se deve a um fator fundamental: a cobertura midiática.
"Essa retomada (da colaboração premiada) se deu de forma muito pontual e especificamente nesse contexto, e ganha a dimensão que hoje inequivocamente tem porque naquele momento, se todos puxarem pela memória, lembrarão que houve uma cobertura midiática intensa. As principais corporações midiáticas cobriram esses primeiros episódios envolvendo as diretorias da Petrobras sentindo ali que haveria um desdobramento político que uma hora ou outra terminaria por aparecer", avalia o professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Geraldo Prado.
O jurista lembra que o próprio Moro já havia mencionado em um artigo anos antes que a participação da mídia nesse processo antes era algo crucial. Tal exposição deu ao magistrado "condições de prosseguir com os vários procedimentos que foram instaurados e provocaram um efeito dominó".
Não foi só a mídia, no entanto, que ajudou a fazer da delação um instrumento que, na Lava Jato, enterrou parcialmente métodos de investigação tradicionais. As lacunas legais também têm sua parte nesse processo. "Essa difusão de uma suposta eficiência desse método, pensada como descoberta de negociações criminosas entre grandes empresas e partidos políticos, acabou contaminando o sistema de justiça", destaca Prado.
Em entrevista à RBA, o jurista falou sobre a colaboração premiada, tema de uma de suas mesas no 24º Seminário Internacional de Ciências Criminais, promovido pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), e também abordou a lentidão em se pautar o julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) referentes à prisão após condenação em segunda instância e a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU de garantir a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "Uma solução que diga 'aqui não', mas nos demais casos aceitamos, é uma solução que deixa mais patente e evidente a ruptura com o projeto de termos aqui um Estado democrático de direito."
Confira abaixo os principais trechos da conversa.
A evolução da delação premiada na Lava Jato
A colaboração premiada ressurgiu no nosso cenário especialmente com a Operação Lava Jato, mas é bastante antiga do ponto de vista normativo, legal, e sempre esteve presente como prática informal no sistema de justiça criminal. Mas ela ressurge no contexto da Lava Jato, presumo, porque o juiz (Sergio Moro) que conduziu esses processos iniciais fez uma opção por um modelo de apuração dos fatos que, na opinião dele, contando com a colaboração premiada seria mais eficiente que o modelo de investigação criminal tradicional. Ele havia presidido processos importantes no Paraná envolvendo criminalidade econômico-financeira, e esses processos não terminaram com sentenças condenatórias, também presumo que ele tinha expectativa que a solução condenatória fosse a mais ajustada ali. Depois, quando ele se depara, quase que por acidente, com os primeiros casos da Petrobras – um deles, interessante dizer isso, acabou recebendo sentença há pouquíssimos dias, que é o caso de Paulo Roberto Costa –, faz uma opção por esse caminho.
Muitas pessoas podem perguntar: mas essa opção é judicial, afinal de contas a colaboração premiada é um acordo estabelecido entre o investigado, seu defensor e o Ministério Público, o juiz participa como fiscal da regularidade do acordo, da voluntariedade das partes e da consciência sobre o que estão efetivamente acordando. Ele (juiz) não é ou não deveria ser um protagonista do acordo. Já me antecipando a esse tipo de questionamento, eu diria que houve no âmbito da Banestado e de investigações correlatas movimentos no sentido da colaboração premiada com uma ativa atuação desse magistrado na investigação criminal. E esses movimentos receberam muitas críticas, do ponto de vista judicial e no contexto da doutrina, da academia, porque um juiz não deve atuar na investigação criminal, ele deve ser um sujeito imparcial para resolver conflitos e controvérsias
Ali, (Moro) havia já sinalizado sua opção por um método de investigação da criminalidade econômico-financeira por meio de acordos, e o resultado insatisfatório faz com que haja uma modificação desse cenário de 2014 para cá. Ele não está mais como um incentivador direto das colaborações premiadas, é o Ministério Público que senta com os investigados para negociar, mas indiretamente incentiva isso por meio de decretos de prisão. Ele usa os decretos de prisão como um instrumento para motivar, digamos assim, os investigados para entrarem em acordo com o Ministério Público e colaborarem com informações no sentido do esclarecimento dessas infrações.
A colaboração premiada ressurgiu no nosso cenário especialmente com a Operação Lava Jato, mas é bastante antiga do ponto de vista normativo, legal, e sempre esteve presente como prática informal no sistema de justiça criminal. Mas ela ressurge no contexto da Lava Jato, presumo, porque o juiz (Sergio Moro) que conduziu esses processos iniciais fez uma opção por um modelo de apuração dos fatos que, na opinião dele, contando com a colaboração premiada seria mais eficiente que o modelo de investigação criminal tradicional. Ele havia presidido processos importantes no Paraná envolvendo criminalidade econômico-financeira, e esses processos não terminaram com sentenças condenatórias, também presumo que ele tinha expectativa que a solução condenatória fosse a mais ajustada ali. Depois, quando ele se depara, quase que por acidente, com os primeiros casos da Petrobras – um deles, interessante dizer isso, acabou recebendo sentença há pouquíssimos dias, que é o caso de Paulo Roberto Costa –, faz uma opção por esse caminho.
Muitas pessoas podem perguntar: mas essa opção é judicial, afinal de contas a colaboração premiada é um acordo estabelecido entre o investigado, seu defensor e o Ministério Público, o juiz participa como fiscal da regularidade do acordo, da voluntariedade das partes e da consciência sobre o que estão efetivamente acordando. Ele (juiz) não é ou não deveria ser um protagonista do acordo. Já me antecipando a esse tipo de questionamento, eu diria que houve no âmbito da Banestado e de investigações correlatas movimentos no sentido da colaboração premiada com uma ativa atuação desse magistrado na investigação criminal. E esses movimentos receberam muitas críticas, do ponto de vista judicial e no contexto da doutrina, da academia, porque um juiz não deve atuar na investigação criminal, ele deve ser um sujeito imparcial para resolver conflitos e controvérsias
Ali, (Moro) havia já sinalizado sua opção por um método de investigação da criminalidade econômico-financeira por meio de acordos, e o resultado insatisfatório faz com que haja uma modificação desse cenário de 2014 para cá. Ele não está mais como um incentivador direto das colaborações premiadas, é o Ministério Público que senta com os investigados para negociar, mas indiretamente incentiva isso por meio de decretos de prisão. Ele usa os decretos de prisão como um instrumento para motivar, digamos assim, os investigados para entrarem em acordo com o Ministério Público e colaborarem com informações no sentido do esclarecimento dessas infrações.
A importância da mídia
Então, essa retomada se deu de forma muito pontual e especificamente nesse contexto e ganha a dimensão que hoje inequivocamente tem porque naquele momento, se todos puxarem pela memória, lembrarão que houve uma cobertura midiática intensa. As principais corporações midiáticas cobriram esses primeiros episódios envolvendo as diretorias da Petrobras sentindo ali que haveria um desdobramento político que uma hora ou outra terminaria por aparecer.
E essa cobertura midiática, que esse juiz já havia mencionado em um artigo anos antes como algo fundamental para apoiar a repressão à criminalidade política, econômica e financeira, na prática deu a ele condições de prosseguir com os vários procedimentos que foram instaurados e provocaram um efeito dominó. Os investigados começaram a se dar conta de que, colaborando, quer o conteúdo da colaboração tenha correspondência com a realidade ou não tenha, quer tenha correspondência com a realidade e esteja provado, quer tenha correspondência e não tenha provas, eles perceberam que era um caminho para reduzir os impactos negativos do ponto de vista da liberdade pessoal e do ponto de vista da manutenção do seu próprio patrimônio que aqueles casos estavam gerando. Foram casos que mereceram uma cobertura quase típica das novelas dos anos 70 e 80, dada a maneira como a comunicação social brasileira estava cobrindo.
A delação e as lacunas da lei
Tem um efeito um tanto psicológico, esse magistrado cria muita coisa porque há uma defasagem normativa e as leis que existiam à época, e mesmo as posteriores, deixaram muitas lacunas e se exigia uma solução. Tinha que resolver muita coisa ali e permitiram que essa solução viesse judicialmente e não legalmente como é da ordem constitucional brasileira, que diz que as pessoas devem ser processadas de acordo com a lei, portanto, tem que haver uma lei prévia que estabeleça as condições de processo.
Essa lei insuficiente acabou sendo substituída pelo juiz e as pessoas ali naquele contexto específico estão sendo processadas de acordo com o que o juiz entendia concretamente que era o mais correto. A difusão de uma suposta eficiência desse método, pensada como descoberta de negociações criminosas entre grandes empresas e partidos políticos, acabou contaminando o sistema de justiça.
Mesmo para casos que a rigor não podem ser cobertos pela colaboração premiada ou investigados dessa maneira, ainda assim houve uma pressão muito grande de dentro do sistema de justiça para se aplicar essas soluções, já que se aplicou sem lei no passado, se aplicou contra a lei, e estão "dando resultado". Embora saibamos que o resultado concreto disso seja a desindustrialização brasileira, com o desaparecimento de milhares de postos de trabalho, afetando a própria previdência com impacto nos recolhimentos previdenciários, afetando a própria economia como um todo, afetando psicologicamente as pessoas num processo quase que de depressão coletiva associado à ideia de que no Brasil, afinal de contas, não se consegue desenvolver uma atividade econômica de grande porte sem se recorrer à ilegalidade. Tudo isso se transformou em uma grande cadeia que se alimentava das piores expectativas e interpretações.
Despertar tardio
Esse mau resultado não foi associado diretamente a essas práticas repressoras pela comunicação social, e a sociedade como um todo, apenas agora, no extremo do abuso disso que foi a condenação do ex-presidente Lula, se deu conta de que tinha alguma coisa de muito errada nesse contexto. Mas demorou bastante e em grande parte a sociedade está dividida, metade dela percebe esse abuso e outra metade, percebendo, concorda, ou não percebendo, por omissão, acaba também fomentando esse tipo de situação. Mas lá atrás não, a adesão era significativa porque não percebiam que havia uma relação direta entre essa maneira de intervenção e o desarranjo político e econômico que o Brasil efetivamente passou a viver.
Regulação ética da colaboração premiada
Compreendo que em um cenário como esse é romântico pensar que haverá um Supremo Tribunal Federal para declarar que a colaboração premiada em muitos aspectos não atende a um devido processo legal proporcional aos direitos e garantias que comprime, portanto, é violadora da Constituição. Tenho certeza absoluta que hoje não teríamos uma decisão de inconstitucionalidade nesse sentido, pelos pronunciamentos nos julgamentos e pelos pronunciamentos públicos dos ministros fora do Supremo Tribunal Federal.
Se é assim, a minha ideia é que se busque uma regulação ética básica, mínima, envolvendo as corporações e os sujeitos processuais que estão mais diretamente ligados a isso. O Poder Judiciário restabelecendo uma condição de afastamento e de uma função de fiscalização de direitos e garantias, para saber se estão sendo respeitados. Em vez de ser o juiz a desrespeitar esses direitos, ele passar a verificar se não estão sendo desrespeitados pela polícia e pelo Ministério Público.
Uma nova reflexão no âmbito da advocacia se faz necessária no âmbito do comportamento ético dos advogados no exercício da defesa, na medida em que esse é um modelo de defesa que não resiste à acusação, um modelo que adere à acusação. Se é um modelo de defesa que adere à acusação, ele deve ser excepcional; se a regra da defesa é não defender, então não tem defesa. Tem-se uma violação flagrante até do texto nominal do dispositivo constitucional. Para que o emprego da colaboração premiada se dê neste âmbito em que haja efetiva proteção dos interesses daquele colaborador, é necessário que a defesa do colaborador tenha independência em relação a tantas outras pessoas e empresas.
Também é preciso que o Ministério Público implemente de forma rigorosa mecanismos éticos na negociação, colocando claramente para os investigados o que efetivamente ele dispõe para que essa negociação possa caminhar. E revelando as fontes, porque muitas informações podem ter surgido de forma ilícita. Se não há revelação das fontes, não é possível rastrear isso. Creio que se conseguirmos implantar um modelo ético, vamos diminuir os impactos negativos da colaboração premiada e vamos ter ali, obviamente, aspectos positivos que são informações que, com os recursos atuais, pelo visto, a polícia e os Ministérios Públicos brasileiros não estão conseguindo obter. Mas o ideal é que haja um aperfeiçoamento também dos métodos tradicionais de investigação, tornando-os mais contemporâneos às novas tecnologias.
A demora no julgamento das ADCs
Obviamente lamento que as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) não tenham sido pautadas e compreendo a preocupação da presidente Carmen Lúcia, do STF, que um eventual resultado concreto desse julgamento que modifique o atual entendimento possa ser interpretado por alguns setores da sociedade como incentivo ou estímulo de candidaturas. Estamos num ano eleitoral e o ex-presidente é o candidato preferido da maioria da população, compreendo esse ponto de vista se é isso que motiva a presidente do STF – não sei se é isso, ela não me disse, estou presumindo.
Mas mesmo sendo compreensível não é justificável, porque os efeitos deletérios da manutenção de uma posição contrária ao texto literal da Constituição são sentidos por milhares de pessoas humildes, pobres. Não creio que, sendo a nossa Constituição fruto de um processo de redemocratização apoiado em uma ideia generosa de respeito aos direitos fundamentais, essa opção de não colocar os processos em pauta esteja de acordo com esse espírito constitucional que não era temporário. Deve ser um espírito a ser preservado e a nos lembrar sempre da razão de ser da Constituição. Não sei se em um artigo ou manifestação, lembrei do famoso pronunciamento de Ulysses Guimarães, de que a Constituição não é perfeita, tem seus defeitos, e criticá-la é sempre válido, mas descumpri-la nunca. Quem rasga a Constituição é inimigo do Brasil.
Decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU*
É uma questão muito delicada para as instituições brasileiras. Posso estar enganado, mas não há um ministro, entre todos do Supremo Tribunal Federal, o ministro da Justiça é um especialista na matéria, o presidente da República é um constitucionalista, não há ninguém nessa esfera que tenha dúvida do caráter imperativo da decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU e que ela tem que ser considerada no contexto, por meio de um instrumento teórico que nesse caos chamamos de harmonização, entre a legalidade convencional e a legalidade interna. Isso tem que ser respeitado.
Se será ou não ainda é uma indagação, mas é necessário que as autoridades, o Tribunal Superior Eleitoral, o Supremo Tribunal Federal, a procuradora-geral da República, os ministros da Justiça e das Relações Exteriores e o presidente da República tenham em mente que uma solução casuística desqualifica o Brasil como democracia. Uma solução que diga "aqui não", mas nos demais casos aceitamos, é uma solução que deixa mais patente e evidente a ruptura com o projeto de termos aqui um Estado democrático de direito.
* A entrevista foi concedida antes da decisão do TSE de barrar a candidatura de Lula.
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