sexta-feira, 21 de setembro de 2018

"O ódio de classe é extremo no Brasil"

Por Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, no site Tutaméia:

O ódio de classe é extremo no Brasil. É maior do que nos EUA. E ódio puro e simples. É profundo. Não é algo que se possa curar apenas colocando um bandeide. A visão é de Noam Chomsky em entrevista ao Tutaméia (acompanhe a íntegra no vídeo). Para ele, a eleição pode ser suficiente se puder evitar o pior. Mas será preciso encarar os problemas de fundo: o ódio de classe, a enorme desigualdade, as razões que seguraram o desenvolvimento, o foco na exportação de produtos primários, a importação de manufaturados baratos.

“Tudo isso precisa ser revertido. Alguns passos foram dados, mas não foram suficientes. É verdade que forças externas, como os Estados Unidos, estarão apoiando programas que são prejudiciais para o Brasil. Isso não supera o fato de que o modelo pode e deve ser modificado a partir de dentro. Isso começou a ser feito nos primeiros anos deste século. Foi abortado agora, mas precisa ser recuperado e continuado. O que é possível. Os recursos –humanos e materiais– estão aqui”, diz.

Filósofo, ativista, linguista, Chomsky é o maior pensador da atualidade. Professor emérito do Departamento de Linguística do MIT (Massachusetts Institute of Technology, nos EUA), onde lecionou por 50 anos, ele está no Brasil para participar de debates e visita hoje o presidente Lula na prisão em Curitiba.

Segundo Chomsky, 89, as decisões judiciais contra Lula são “ultrajantes” e significam “um erro grosseiro da Justiça sob qualquer ponto de vista, mesmo para os padrões brasileiros”. E segue:

“Mesmo se todas as acusações contra Lula fossem corretas –o que é muito questionável–, doze anos na prisão por isso? Isso é um golpe. Quantos apartamentos [Fernando Henrique] Cardoso tem pelo mundo, por exemplo? Em qualquer parâmetro, é um erro radical da Justiça. Isso é óbvio. Não exige nenhuma compreensão profunda para chegar a essas conclusões”.

E o que os brasileiros devem fazer a respeito disso? “Pôr mãos à obra para superar isso. Pode ser feito. Eles não estão presos”.

Ao analisar as eleições, fala: “No segundo turno, a situação ótima seria se os partidos, Ciro Gomes, Fernando Haddad, se unissem de alguma forma para tentar impedir a vitória de Jair Bolsonaro. Que, penso, seria muito perigoso para o Brasil”.

Ao Tutaméia, Chomsky discorre sobre a crise na democracia no mundo, resultante das políticas neoliberais. Essas políticas “não são uma lei da natureza. São desenhadas para ter certas consequências, que elas têm. Uma delas é deixar a massa da população naquilo que algumas vezes é chamado de precariado, pessoas vivendo existências precárias, sem seguridade, pensões, salários, organização. Somos transformados em sacos de batatas e tratamos de procurar um responsável por isso. O caminho mais fácil é transformar em bode expiatório as pessoas que são ainda mais vulneráveis que você. Isso resulta em atitudes perigosas e antissociais”.

O filósofo alerta que o capitalismo, apoiado pela Estado, não tem como sobreviver, mas pode ser modificado. “As pessoas querem que seja mudado”.

Preocupado com a questão nuclear e com o aquecimento global, declara:

“Honestamente, não há nada na história da humanidade comparável a isso. Nem Genghis Khan nem Hitler, por mais horríveis que tenham sido, nunca tentaram destruir a vida humana organizada. Isso é algo novo. Não há palavra para descrevê-lo. ‘Mal’ não é suficiente. ‘Insanidade’ não apreende o significado. Porque não é insano. É planejado conscientemente. É parte integrante da lógica do sistema”.

Chomsky vê com entusiasmo a resistência em todo mundo. Cita Bernie Sanders, nos EUA, Yanis Varoufakis, na Grécia, Jeremy Corbyn, na Inglaterra, López Obrador, no México. “Há muito ativismo, principalmente entre os jovens. É surpreendente, impressionante. As bases estão aí. É preciso unir e organizar”. E completa:

“Mas essas coisas não acontecem por si só. Precisa de energia, dedicação, comprometimento. Como tudo na vida. O abolicionismo lutou por centenas de anos antes de se ter formalmente o fim da escravidão. A luta por direitos das mulheres tem centenas de anos. Essas coisas não são fáceis de conquistar”.

A seguir, destaques da entrevista – na transmissão ao vivo, feita por nosso canal nas redes sociais (AQUI), a conversa foi em inglês, com tradução simultânea nos comentários realizada pela professora de inglês e tradutora Re Gabrieli e pela jornalista e tradutora Leda Beck, a quem agradecemos o apoio e a colaboração.

Visita a Lula

Minha esposa, Valeria, e eu fomos convidados pelo amigo dela, Celso Amorim, para participar dessa conferência sobre democracia e multipolaridade [em São Paulo, promovida pela Fundação Perseu Abramo de 14 de setembro]. O subtexto da conferência foi o ataque à democracia no Brasil, do qual a prisão de Lula e sua exclusão das eleições são os principais exemplos.

Eu já me encontrei com Lula no final dos anos 1990, vinte anos atrás, e fiquei muito impressionado –isso foi antes de sua primeira eleição. Eu continuo a ficar impressionado por muito do que ele fez enquanto esteve no governo. Junto com Amorim, ele levou o Brasil ao centro do palco mundial, fazendo de seu país provavelmente o mais respeitado do mundo.

Realizou vários projetos domésticos muito valiosos. Houve falhas sérias, mas muitas conquistas, e eu não tenho nenhuma dúvida de que ele deveria ser o novo presidente do Brasil, seria o melhor para o Brasil, o melhor para o mundo, considerando o papel que o Brasil desempenhou no cenário mundial durante o seu governo.

Valeria e eu ficamos muito satisfeitos com o convite para a conferência e consideramos que seria uma ótima oportunidade para observar ao vivo o que está acontecendo no Brasil neste momento crucial e também para trazer nosso apoio à luta dos brasileiros por justiça e por democracia. Isso, obviamente, é de importância central para a América Latina e também para todo o mundo.

Vou dizer a Lula de como gostei de passar o tempo com ele 20 anos atrás. De como eu acho que ele deveria ser o próximo presidente do Brasil. De quão ultrajantes são as decisões judiciais.

Mesmo se todas as acusações contra Lula fossem corretas – o que é muito questionável. Vamos dizer que fossem corretas: recebeu um apartamento onde ele nunca viveu… Doze anos na prisão por isso? Isso é um golpe. Um erro grosseiro da Justiça sob qualquer ponto de vista, mesmo para os padrões brasileiros.

Quantos apartamentos [Fernando Henrique] Cardoso tem pelo mundo, por exemplo? Em qualquer parâmetro, é um erro radical da Justiça, mesmo que você aceite a validade das acusações, o que levanta muitos questionamentos. Isso é óbvio. Não exige nenhuma compreensão profunda para chegar a essas conclusões.

Democracia sob ataque

Há um significativo declínio das instituições democráticas. Sua legitimidade vem sendo contestada, suas funções diminuíram. Isso vem acontecendo, na verdade, há uns quarenta anos.

Nos anos 1970, houve uma mudança significativa nas políticas socioeconômicas geral. Isso sofreu uma escalada durante os anos de Reagan e Thatcher, mudando para o que ficou sendo chamado, de forma enganosa, de políticas voltadas para o mercado.

Foi uma política que teve impacto geral no mundo, com diferenças nos diferentes países, mas seguindo um padrão comum.

Para a América Latina, isso significou duas décadas de desenvolvimento perdidas por causa das severas medidas de ajuste.

Houve uma certa recuperação nos últimos 15 ou vinte anos em diversos países, Brasil entre eles, o que provocou em alguma medida uma reversão do processo regressivo. Mas agora aquela política está de volta com força total.

No hemisfério ocidental, nos Estados Unidos e na Europa, isso é muito evidente.

Políticas concentram renda

Os Estados Unidos são o país mais poderoso do mundo, mas as consequências dessa política são muito impressionantes. Desde 1980, os salários vêm caindo; hoje são menores do que eram em 1979; ao mesmo tempo, a renda de executivos de grandes empresas aumento na ordem de mil por cento.

As políticas são projetadas muito especificamente para promover a concentração riqueza, aumentar o poder das corporações, liberar as instituições financeiras para que mudem drasticamente seu papel na sociedade…

É bom lembrar que as primeiras décadas depois da Segunda Guerra Mundial são o período de maior crescimento na história nos países capitalistas ocidentais. O crescimento foi bastante igualitário.

Nos Estados Unidos, esse período é chamado de Era Dourada do capitalismo –na verdade, capitalismo de estado.

Isso foi acompanhado por um crescimento substancial de ativismo popular; no final dos anos 1960, os movimentos populares se tornaram muito significativos. Grande parte da população estava entrando na arena política, deixando de lado o estado de passividade e docilidade que supostamente é o papel a que está destinada.

Ativismo e queda nos lucros

Na teoria democrática básica, o papel da população em geral é de ser espectadores. A população em geral é considerada ignorante, “por fora”, não pertence, não tem lugar na cena política, seu papel é ficar observando enquanto as pessoas de responsabilidade, as pessoas sérias dirigem o show.

Isso foi desafiado nos anos 1960, e isso foi acompanhando por militância e ação sindical, então no final daquele período, nos Estados Unidos e também em alguns países da Europa, os trabalhadores engajados em greves muito importantes, que não apenas reivindicavam melhores salários e melhores condições de trabalho, mas também o próprio controle das áreas de trabalho.

Isso foi considerado uma séria ameaça, um desafio significativo aos controladores das empresas, os donos das empresas privadas, que já foram chamados por Adam Smith de Senhores da Humanidade, as pessoas que dominam e controlam a economia, claro que muito ligadas ao Estado.

Houve também, naquele período, um declínio na taxa de lucro, o que é considerada uma ameaça muito séria.

Então, de modo geral, em vários níveis, nos anos 1970, você podia ver uma reação se organizando, de forma mesmo muito aberta. De fato, diziam que estava ocorrendo na época uma crise da democracia, que havia muita democracia, e deveria haver, então, uma moderação na democracia. As pessoas deveriam voltar ao seu papel de observadores passivos, sem tentar participar no governo.

Essa é a visão do lado liberal; na direita, era muito mais dura.

A consequência disso é que houve sérios problemas na organização da economia internacional. A estrutura acordada em de Breton Woods caiu por terra e por aí vai.

Programas de austeridade esmagam a população

Tudo isso convergiu para uma mudança das políticas para, de acordo com o ponto de vista dos Senhores da Humanidade, retomar o equilíbrio das coisas, de forma que o poder voltasse para onde ele deveria estar, nas mãos do setor privado intimamente ligado ao estado.

Isso foi o que aconteceu nos últimos quarenta anos. Na Europa, são os programas de austeridade, para os quais não há nenhuma justificativa econômica. Eles foram desenhados, projetados especificamente para atingir esse objetivo [de reprimir, amordaçar, recolocar a população no seu lugar].

Há um ótimo estudo de um economista, Mark Weisbrot, que já escreveu bastante sobre o América Latina e o Brasil. Ele fez um estudo muito interessante. Na Europa, na estrutura da União Europeia, as políticas socioeconômicas não estão mais nas mãos dos Estados Nacionais, o que significa que as pessoas não participam das decisões. Elas estão nas mãos da burocracia da Bruxelas, da Tróica, da Comissão Europeia, que não é eleita, o Fundo Monetário Internacional, que obviamente também não é eleito, e o Banco Central.

A cada ano, há uma negociação entre a Tróica e cada governo nacional para definir as políticas; Weisbrot investigou esse processo. Ele descobriu que, explicitamente, as políticas eram desenhadas para reverter as reformas sociais, as políticas socialdemocratas que se desenvolveram ao longo do período anterior. Não havia razões econômicas, só a decisão de se livrar dessas políticas, devolver o controle aos setores que, de acordo com a ideologia deles, devem ser os comandantes da sociedade.

Isso foi na Europa, nos Estados Unidos também. Vimos coisas muito similares na América Latina, nos anos 1980.

Precariado e Marx

Tudo isso faz com que, hoje, uma grande parte da população esteja furiosa, ressentida, apavorada… Uma das políticas mais importantes é a de criar uma “existência precária” (precarizada), separar as pessoas umas das outras. Esse foi o famoso slogan de Margaret Thatcher: ‘Não há sociedade’. Como disse no outro dia, ela estava, sem saber, parafraseando Marx. Quando ele condenou os regimes autoritários da Europa, no século 19, por tentar transformar a Europa em um saco de batatas, isolando os indivíduos, que eram obrigados a enfrentar sozinho os poderes concentrados, sem nenhuma estrutura nem organização.

Quando Alan Greenspan, chefe do Federal Reserve, que organiza a economia norte-americana, prestou depoimento ao Congresso sobre os resultados e conquistas da econômicas, ele disse na lata que elas eram baseadas na crescente insegurança da força de trabalho.

Ele destacou que, mesmo quando as taxas de desemprego são muito baixas, os trabalhadores estão simplesmente intimidados demais para reivindicar aumentos salariais e dos benefícios. Isso é muito saudável para a economia.

Se você é um economista, você entende isso. É saudável para a economia porque, se os salários e os benefícios sociais são baixos, não há ameaça inflacionária, as instituições financeiras podem prosperar e os lucros podem ser maiores –ainda que ele não tenha mencionado isso.

Essa então foi a estrutura montada.

Declínio da democracia

Agora, na medida em que se concentra a riqueza, isso automaticamente afeta o poder político por razões óbvias, não é nem preciso falar, elas são transparentes.

Portanto, nós vivemos um declínio da democracia. E as pessoas estão conscientes disso. Elas sabem. Não precisam ler algum estudo acadêmico para perceber que elas simplesmente não estão representadas no sistema político.

Na Europa, isso é transparente porque as decisões mais importantes são tomadas pelos burocratas de Bruxelas.

Nos Estados Unidos, oitenta por cento da população, ouvida em pesquisas nos últimos trinta anos, afirmam que o governo é dirigido por alguns grupos de interesses poderosos que atuam em benefício próprio. Essa é uma opinião geral da população, da esquerda à direita, e é apoiada por estudos acadêmicos respeitáveis que simplesmente comparam as atitudes do povo com os votos de seus representantes, e esses não estão relacionados com a vontade majoritária dos eleitores, 75%, 80%.

Eleições são compradas

Os representantes do povo não dão a mínima a seus eleitores, eles ouvem apenas os que dão as grandes contribuições para suas campanhas.

Um dos efeitos colaterais disso é que, quando alguém é eleito para Congresso, a primeira coisa que precisa fazer é tratar de arranjar apoio financeiro para sua reeleição. Porque, basicamente, nos Estados Unidos, as eleições são compradas. É possível prever, com bastante precisão, o resultado das eleições com base no orçamento de cada campanha.

E o que isso significa em termos de legislação? Isso significa que assessores dos parlamentares mantêm encontros com lobistas, de grandes firmas de advocacia, gente poderosa, e estes basicamente são os que preparam as leis, literalmente, e os parlamentares as assinam. Não tem nada a ver com a vontade dos eleitores.

Então, é claro que o resultado é um declínio da democracia, que é planejado e considerado bom, porque está superando a crise da democracia dos anos de 1960. A crise era que havia muita participação política. Portanto, o declínio da democracia é um resultado favorável, de acordo com o pensamento liberal: as coisas estão entrando nos eixos.

As pessoas estão furiosas e desorganizadas

Portanto, nós estamos voltando para o período dos anos Truman, em que o governo ouvia apenas financistas e empresas de advocacia de Wall Street, o que é considerado muito bom, exceto pela população.

Então o que acontece é que as pessoas estão furiosas. Estão desorganizadas. Os sindicatos estiveram sobre severo ataque. Os primeiros atos de Thatcher e Reagan, assim que assumiram o governo, foram no sentido de tentar destruir os sindicatos.

Reagan, pela primeira vez, os chamou de “sarnentos”, o que seria uma ofensa ilegal em qualquer país do mundo. E ele claro que conseguiu quebrar a espinha dorsal dos sindicatos, e esse xingamento, de sarnentos, foi logo assumido também pelas empresas privadas.

Sob a administração de Bill Clinton [1993-2001]. também foram realizados muitos movimentos para fragilizar os sindicatos –não vou entrar em detalhes.

Portanto, o povo está deixado de lado, sem apoio, tratado como um saco de batatas, e reage de formas antissociais.

Liderança brasileira

Em primeiro lugar, é a pura verdade que na primeira parte deste século, até uns dois anos atrás, o Brasil estava na liderança, criando o que poderia ser uma personalidade própria.

Isso já havia sido tentado antes, é claro. Nos anos 1960, a Unctad estava tentando criar uma nova ordem econômica internacional, economistas brasileiros estavam na liderança desse projeto. Isso foi considerado uma ameaça muito séria, foi imediatamente atacada, criticada, destruída, nenhum dos países poderosos do Ocidente estava disposto a permitir que isso acontecesse.

Seria um sistema de desenvolvimento do hemisfério sul para tentar escapar do atraso, usando seu grande potencial para se tornar um participante importante no sistema internacional. Mas isso era intolerável, inaceitável.

Um exemplo gritante disso foi a reação à proposta de uma nova ordem internacional da informação, isso nos anos 1970, início dos anos 1980. Os países do hemisfério sul, tendo o Brasil como de seus líderes, estavam tentando quebrar o monopólio ou quase-monopólio das megacorporações, que controlam o sistema econômico.

Isso foi apresentado, aqui no ocidente, como um ataque à liberdade, porque o projeto iria limitar o poder dos monopólios de dominar tudo.

Libertarianismo é um conceito reacionário

Há um conceito chamado libertarianismo, que é um dos mais reacionários conceitos imagináveis. Para eles, é simples: o poder das corporações privadas deveria controlar/governar tudo. É chamado de libertarianismo porque defende que as pessoas possam livremente fazer contratos; por exemplo, se você está morrendo de fome, você livremente aceitar um emprego para receber dez centavos por hora. Isso é liberdade.

A ordem internacional de informação significa que alguns poderes concentrados, oligopólios que controlam tudo não devem ser desafiados. Então houve um grande ataque [à proposta]. A Unesco, que era o organismo em que a proposta estava sendo discutida, foi atacada. Os Estados Unidos saíram da Unesco, deixaram de apoiá-la financeiramente, considerando que aquilo seria um ataque à liberdade.

Isso aconteceu em todas as instâncias. A imprensa liberal adotou a mesma posição: não podemos permitir um desafio ao oligopólio da informação, e a proposta foi esmagada.

Então veio o período neoliberal, e Reagan e Thatcher tratam de restaurar o sistema tradicional, no qual, como diziam os liberais, Truman foi capaz de governar o país apenas com a ajuda de Wall Street e algumas firmas de advocacia. Isso são os liberais, a direita é muito mais dura.

Doutrinação dos jovens

Liberais são sempre mais interessantes, porque eles estabelecem uma espécie de limite no que pode ser discutido (você pode ir até aqui, mas nem um milímetro a mais fora desses limites). Eles estavam preocupados com o que chamavam de “instituições responsáveis pela doutrinação dos jovens” –as universidades, as escolas.

Na opinião deles, essas instituições não estavam doutrinando os jovens da maneira correta. Elas precisariam ser mais duras, impor mais disciplina. Esse é o período em que começa a haver uma alta explosiva nos preços das anuidades. Com isso, por exemplo, estudantes que estivessem fazendo direito saíam da escola com uma dívida muito grande, e eles simplesmente eram forçados a trabalhar para grandes firmas tradicionais para conseguir pagar suas dívidas, para sobreviver.

Uma vez que você entra no sistema, você é integrado a ele, e suas ideias próprias, originais, diminuem, declinam. Você tem de ganhar dinheiro para as corporações. Esse é um sistema disciplinar, uma melhor doutrinação: um modelo econômico, comercial, foi imposto às universidades.

Nos Estados Unidos, porém, o orçamento público para universidades caiu muito, o que significa que elas basicamente sobrevivem recebendo financiamento de corporações e cobrando altas anuidades.

Tudo isso faz parte da restauração da correta doutrinação dos jovens.

É preciso entender que os donos do sistema encaram a luta de classes com muita seriedade. Eles são basicamente marxistas, com o sinal trocado. Os valores estão invertidos, mas eles entendem muito bem.

Ódio de classe

Isso é muito agudo aqui no Brasil, onde o ódio de classe é extremo. Eu preciso ainda estudar mais, mas é muito surpreendente ver: nos Estados Unidos já é muito ruim, mas aqui é muito mais extremo. Ódio, puro e simples.

A ideia de que alguém como Lula, que não fez faculdade e não fala português da forma mais correta, possa falar em público é completamente inaceitável. Como se pode tolerar isso? Essa gente deveria ser os empregados, não dos dirigentes [da sociedade].

Golpe e desigualdade

Voltando ao golpe, eu acho que uma das explicações é a enorme desigualdade que existe no Brasil. Tradicionalmente, o país tem poderes e recursos extremamente concentrados numa pequena minoria, ao lado de uma imensa pobreza.

Isso num país que é muito rico em recursos naturais, este poderia ser um dos países mais ricos do mundo. A Colômbia também é assim.

Se a gente voltar alguns séculos atrás, a região do Caribe era o centro da riqueza do mundo. Foi a fonte de riqueza da Europa, que sugou recursos do Caribe.

Se você olhar mais de perto, é muito significativo que no início do imperialismo britânico, francês, holandês, no século 18, as partes mais ricas do mundo eram Bangladesh e Haiti, países que são hoje o símbolo da pobreza inacreditável. Haiti era o mais rico, por qualquer medida; cerca de 20% da riqueza da França vem simplesmente de explorar a riqueza haitiana.

Quando os britânicos chegaram ao que hoje é Bangladesh, eles não conseguiam acreditar na riqueza e na opulência que viam, e como estava adiantada aquela civilização.

China e Índia eram, naquela época, os centros comerciais e industriais do mundo… Bem, o imperialismo resolveu isso, inverteu as coisas.

Imperialismo e elites locais

Mas o imperialismo também instilou nas elites das colônias, de forma dura e aguda, as mesmas concepções.

Se você comparar, por exemplo, a América Latina e a Ásia Ocidental, nos últimos 50 anos, um observador de fora poderia prever que a América Latina iria florescer, e que a Ásia Ocidental iria afundar.

Afinal de contas, América Latina tem todos esses recursos naturais, uma população grande, cultura rica e por aí vai.

Mas o que aconteceu foi o contrário.

Por quê? Para responder, você pode olhar, por exemplo, a lista de importação dos países da Ásia Ocidental: bens de capital, investimentos orientados. Coreia do Sul, de Taiwan aceitaram investimento externo, mas orientado para o seu próprio desenvolvimento. Não há fuga de capitais. Os ricos estão sob controle, pagam impostos. Na Coreia, durante seus anos de desenvolvimento, havia pena de morte para evasão de divisas.

Compare isso com a América Latina: os ricos não pagam impostos, gastam seu dinheiro em festas na Riviera, mandam seus filhos para colégios estrangeiros e não têm nenhuma responsabilidade para com seus países. As importações são bens de luxo, não bens de capital, não há orientação para os investimos (programa, projeto).

Então, o tal Colosso do sul, que era esperado, nunca surgiu, não chegou a se desenvolver.

Onda cor de rosa

Começou a acontecer durante o que se chama de onda cor-de-rosa, nos primeiros anos deste século, quando o Brasil estava na liderança, organizando a voz do hemisfério sul, retomando o curso que havia sido iniciado nos anos 1960 e foi derrotado. Mas foi além. Importantes instituições foram criadas, como a Unasul e a Celac, os Brics, começando um movimento em direção à independência.

E isso foi um processo chocante para os Estados Unidos!

Para os Estados Unidos, a América Latina sempre foi, como dizia um secretario de Roosevelt, nossa pequena região aqui do lado, que não nos incomoda (o quintal), e agora os Estados Unidos estavam sendo virtualmente expulso do hemisfério.

Em conferências hemisféricas em Cartagena e no Panamá, em 2010 e 2012, os Estados Unidos e o Canadá ficaram isolados. As conferências não puderam chegar a um acordo consensual, como era comum, porque EUA e Canadá não aceitaram. As questões principais eram incluir Cuba nos órgãos hemisféricos, o que os Estados Unidos não aceitavam, e, surpreendentemente, a guerra contra as drogas.

Guerra contra drogas e escravidão

A vítima da guerra das drogas é a América Latina; a origem da guerra das drogas é os Estados Unidos, onde há a demanda e o suprimento das drogas.

Se você ver, por exemplo, as armas confiscadas no México (dos cartéis de droga), elas são em grande parte provenientes dos Estados Unidos.

Onde eu moro, no Arizona, você pode entrar numa loja e sair com cinco rifles de assalto, que você pode entregar em seguida para o cara do cartel mexicano, que faz o contrabando em seguida.

Portanto a demanda de drogas e o fornecimento de armas estão nos Estados Unidos, e é a América Latina que sofre das mais variadas formas. Então, todos os governos, de esquerda e de direita, queriam avançar no sentido na proposta razoável (sensata) de descriminalizar as drogas. Os Estados Unidos não aceitam essa proposta.

É impossível descriminalizar porque, nos Estados Unidos, de muitas formas, a criminalização restaurou uma coisa que é crucial para a economia: escravidão.

Os Estados Unidos foram construídos com base na escravidão. Depois da Guerra Civil [1861-1865], uma forma de escravidão foi restaurada: o encarceramento, que permitiu a criação de uma força de trabalho escrava.

Nós agora estamos de volta àquele tempo. A partir do governo Reagan, o número de prisões na prisão simplesmente explodiu.

Nos anos 80, a taxa de encarceramento nos Estados Unidos estava basicamente nos mesmo níveis de outros países; um pouco mais alta, certo, mas dentro do espectro. Agora é de cinco a dez vezes maior. E os presos são basicamente homens negros, homens hispânicos, e uma percentagem muito alta está presa por crimes em que não houve vítima, crimes sem violência. Mas foram detidos com uma certa quantidade de maconha, jogadas na cadeia, não tinham dinheiro para conseguir sair e foram ficando, ano após ano.

Obama e Lula

Se você analisar as eleições de 2016 (nos Estados Unidos), um fator importante foi a supremacia branca.

Havia num enorme ódio contra Obama. A ideia de que um homem negro pudesse ocupar a Casa Branca era como, no Brasil, ter na presidência um homem que não seja capaz de falar direito o português culto. Isso simplesmente não é tolerável.

Para cerca de 25% dos republicanos, Obama é literalmente o anticristo. Lembre-se de que os estados Unidos são um país muito, muito religioso.

Ele não fez grande coisa. Seu governo foi orientado pelos negócios, ele era uma figura política, internacionalmente levou à frente o programa antiterrorista, mas nada disso importava para aquela parcela da população: ele é um tipo de gente que nós não podemos ter na Casa Branca.

E o principal objetivo dos republicanos agora é desfazer tudo o que Obama fez, porque isso era simplesmente intolerável.

Destruição do país

E nós estamos vendo o mesmo acontecendo aqui no Brasil, é muito similar quando Temer chega e diz, ok, vamos destruir o país, nós temos que desfazer tudo o que foi feito. Portanto, nada de investimento, nada para a educação, qualquer coisa que foi feita pelo governo progressista a gente simplesmente desfaz.

É muito similar ao que acontece nos Estados Unidos.

Voltando ao golpe. Eu não acho que os Estados Unidos organizaram o golpe, os EUA não têm mais esse poder, não é como nos anos 1960, quando os Estados Unidos podiam realmente preparar o golpe de 1964, apoiar fortemente quando ele ocorreu, e isso em todo o continente, não apenas no Brasil.

Mas isso não é mais possível. Os Estados Unidos são muito poderosos, mas não mais como foram.

Então eles podem apoiar esse golpe branco, mas não acredito que implementaram o golpe. Não que eles não tivessem gostado de fazê-lo, a questão é que não têm mais esse tipo de poder.

Acho que as razões foram basicamente problemas internos, que eram extremamente sérios e históricos. A enorme desigualdade, a falta de desenvolvimento, houve progresso durante a era Vargas, mas não se consolidou.

Golpe beneficia as companhias norte-americanas?

Não tanto como era antes, porque hoje há um competidor, as empresas chinesas.

Nos anos do pós-guerra, não havia competição para as companhias norte-americanas. Os Estados Unidos tomavam conta do show.

Hoje, os países da América Latina são um pouco mais independentes, e há uma força econômica independente no mundo –não comparável aos Estados Unidos, mas significativa.

Foi prejudicial para a América Latina, porque de certa forma induziu os definidores das políticas nacionais a buscaram o caminho fácil de exportar produtos primários e importar produtos manufaturados baratos, o que enfraquece a economia. Funciona durante algum tempo, mas não é o caminho para promover o desenvolvimento.

O mesmo aconteceu na Venezuela. No final dos anos Chávez, houve muito progresso, mas a Venezuela continua sendo dependente do petróleo, que representava 95% de suas exportações. Não dá para desenvolver dessa maneira. A Venezuela, como o Brasil, poderia ser uma economia rica e florescente, tem recursos agrícolas, poderia ser um centro industrial, em vez disso escolhe exportar petróleo e exportar capital, houve uma enorme exportação de capital, muita corrupção, que vai junto com esse tipo de modelo.

Eleições e militares

Uma intervenção militar é possível, mas o que parece mais provável hoje, analisando as pesquisas, é que, com Lula barrado nas eleições, Bolsonaro chegue ao segundo turno. A situação ótima seria se os outros partidos, Ciro Gomes, Fernando Haddad, se unissem de alguma forma no segundo turno para tentar impedir a vitória de Jair Bolsonaro. Que, penso, seria muito perigoso para o Brasil. Se isso vai acontecer ou não, eu não sei.

A eleição pode ser suficiente se puder evitar o pior. É o que podemos esperar nesse momento. E então encarar os verdadeiros problemas, o que segurou o crescimento econômico e o desenvolvimento brasileiro por anos.

E há problemas profundos. O ódio de classe, a enorme desigualdade, a falta de programas sérios de desenvolvimento, o foco na exportação de produtos primários, a importação de manufaturados baratos, tudo isso precisa ser revertido. Há sérios problemas internos. Alguns passos foram dados, mas não foram suficientes.

É verdade que forças externas, como os Estados Unidos, estarão apoiando programas que são prejudiciais para o Brasil. Isso não supera o fato de que o modelo pode e deve ser modificado a partir de dentro. Isso começou a ser feito nos primeiros anos desse século. Foi abortado agora, mas precisa ser recuperado e continuado. O que é possível. Os recursos –humanos e materiais– estão aqui.

O Brasil sofreu com a reação dos poderosos, mas pode avançar novamente. Todo o passado recente é uma indicação do que pode ser alcançado. Os recursos humanos e materiais estão disponíveis. Estão aí por um século. É uma questão de enfrentar os desafios e superá-los, o que não é impossível. Houve enorme conquistas nos últimos anos. É um mundo mais civilizado do que costumava ser. Não são presentes que caem do céu, mas consequências de lutas populares. Isso sempre continua.

Investimento público e lucro privado

Precisamos ter em mente que há um mito em torno do capitalismo. Não temos de fato sociedades capitalistas. Temos sociedades de Estados capitalistas. O Estado sempre esteve no papel central no desenvolvimento e na ampliação do sistema capitalista. Isso desde a Inglaterra do século 17 e por toda a história do desenvolvimento.

Vamos tratar apenas do período recente, hoje, a economia de alta tecnologia. A tecnologia, por exemplo, do iPhone. Se analisá-la, verá que praticamente tudo vem do setor estatal. O GPS foi desenvolvido pela Marinha, a parte eletrônica foi desenvolvida nos laboratórios militares, quase tudo. O computador que está na sua frente começou a ser desenvolvido nos anos 1950, uma grande parte no laboratório [do MIT] onde eu estava trabalhando. Não antes de 1977, a Apple teve a capacidade de conseguir produzir um computador para o mercado que gerasse lucros. Aproximadamente 30 anos após a pesquisa e o desenvolvimento no setor estatal.

Suponha que tenhamos sociedades capitalistas. Um dos princípios do capitalismo deveria ser: se você investe em alguma coisa, especialmente se você faz um investimento arriscado e caro por 30 anos e algum lucro aparece, isso deveria voltar para você. Mas o sistema não funciona assim. Vai para Bill Gates e Jeff Bezos. O público paga os custos por diferentes meios, laboratórios em universidades etc. E, depois de muitos anos, alguma coisa vira lucro para corporações privadas –elas fazem o lucro.

Internet foi presente

A mesma coisa aconteceu com a internet. O início da internet foi na segunda metade dos anos 1950, no mesmo laboratório onde eu estava trabalhando, o MIT, onde começou o pensamento sobre a internet. Eles a desenvolveram por décadas, dentro do sistema governamental, apoiados por taxações. Finalmente, em torno de 1995, o Estado [ou seja, o dinheiro público] deu um presente, simplesmente um presente para as corporações privadas. ‘Ok, pessoal. Vocês podem ter a internet que nós desenvolvemos’.

Agora nós temos meia dúzia de enormes corporações que operam a internet. É um presente do público. É como funciona para tudo.

Ricos com subsídios

No século 19, quando o chamado sistema de produção americano desenvolveu a produção em massa, o controle de qualidade, o intercâmbio de partes, a maior parte foi desenvolvida em arsenais governamentais. É onde você pode fazer experimentações. Pode fazer investimentos de longo prazo. Corporações privadas não fazem isso. Elas querem fazer lucro amanhã, não investir em coisas que podem acontecer em 30 anos. Essa é a história do desenvolvimento do que chamamos de capitalismo em seu funcionamento normal.

Veja o presente, as pessoas que dizem que devemos ter um governo pequeno e deixar o mercado agir. Veja como eles vivem. Há enormes subsídios públicos para todo o setor importante da economia. Agronegócio, energia, finanças, todos são pesadamente subsidiados com dinheiro público. Para eles, isso é a devida função do governo. Não pensões, seguridade, saúde –Coisas irrelevantes como essas. Isso que é chamado de capitalismo, mas é uma forma de capitalismo desenhada muito especificamente.

Sobrevivência do capitalismo

Isso pode sobreviver? Certamente não deve sobreviver. E isso pode ser mudado. As pessoas querem que seja mudado.

Os EUA são uma sociedade muito pesquisada. Principalmente porque os negócios querem saber o que as pessoas pensam. É importante. Então sabemos as atitudes das pessoas. Uma coisa que se sabe é que: de cabo a rabo, em todo o espectro social, as pessoas querem mais impostos para os ricos. Mas esses impostos continuam caindo.

Na verdade, esses resultados [das pesquisas] nem são divulgados. Até as pessoas que são consideradas de extrema direita – como o Tea Party –, se você olhar para as atitudes delas, verá que são mais ou menos social democratas. As pessoas dizem que querem governos muito pequenos, mas querem mais gastos na saúde, educação, para pessoas que não podem alimentar de seus filhos etc. Governos pequenos, mas com todas as coisas que governos grandes fazem.

Até pontos sobre apoio internacional são muito interessantes. Há pesquisas sobre isso. Todo mundo diz que é muito o que estamos dando para os estrangeiros lá longe. Porém, quando se pergunta de quanto deveria ser a ajuda externa, os valores sugeridos são dez vezes mais do que na realidade é o gasto. Esses são os resultados do sistema de propaganda extensiva, que doutrina as pessoas a ter determinadas concepções: todo mundo está nos roubando, os pobres não têm jeito, o governo está colocando os pobres à frente de nós, imigrantes estão inundando o país.

Mexicanos estupradores e criminosos

Há uma enorme preocupação sobre imigração nos EUA. ‘Os mexicanos são estupradores e criminosos’, dizem. Quase metade dos imigrantes vêm da Ásia, são pessoas treinadas e educadas, que foram trazidas para ajudar a desenvolver a economia de alta tecnologia. São 40% dos imigrantes. Não é o que as pessoas escutam. O que eles escutam é algo que não existe: mexicanos criminosos.

É praticamente a mesma coisa na Europa. Foi surpreendente as últimas eleições na Suécia, há algumas semanas, quando a direita obteve sua maior percentagem de votos, o que é uma situação preocupante. Mas foi feito um estudo cuidadoso sobre a ascensão da direita na Suécia, e o que ele mostra é muito interessante e generalizado.

Acontece que o crescimento da direita na Suécia acontece ANTES da onda migratória. Foi uma reação das pessoas que, basicamente, foram deixadas para trás ou de lado pelo afastamento das políticas social democráticas, quando os governos, incluindo os social-democratas, a chamada esquerda, começou a se deslocar para os chamados programas de austeridade.

Massa abandonada e bode expiatório

A massa da população foi abandonada. Alguns se saíram bem, ficaram ricos, são a elite. O que muitas das pessoas veem é: ‘Aqueles caras aí estão indo bem e eu fui abandonado. Por isso eu objeto. Eu vou responder votando pelos nacionalistas, partidos xenofóbicos’. Isso foi antes da onda migratória.

Quando os imigrantes chegaram, serviram como um conveniente bode expiatório. Então, ‘é culpa deles [os imigrantes]’. Não é culpa as corporações lá em cima. Eles não as enxergam.

Na Finlândia, o que o mesmo estudo mostra é a mesma ascensão dos partidos de direita, mas quase sem imigração.

Racismo e sexismo

Veja o caso dos EUA. É muito interessante. Na eleição de 2016, foram feitos estudos extensivos sobre as razões do voto em Donald Trump. Quase todos afirmam que é racismo e sexismo. O que não é falso. Mas a questão é: por que essas atitudes apareceram?

E, se você olha para o passado, elas emergiram de pessoas que foram abandonadas, que ficaram estagnadas por 40 anos, até pior: salários caindo, benefícios declinando, organização declinando. Essas são comunidades que foram capturadas pelos demagogos, que podem colocar a culpa num bode expiatório. O racismo está lá, indubitavelmente. Misoginia está lá. Xenofobia está lá. E saem da garrafa quando as pessoas estão com raiva, ressentidas, e não sabem onde buscar uma explicação para as suas queixas.

Políticas neoliberais geram precariado

A fonte de muito de tudo isso simplesmente são as políticas neoliberais da última geração. Que foram desenhadas. Não são uma lei da natureza. São desenhadas para ter certas consequências, que elas têm. Uma delas é deixar a massa da população naquilo que algumas vezes é chamado de precariado, pessoas vivendo existências precárias, sem seguridade, pensões, salários, organização. Somos transformados em um saco de batatas e vamos procurar por alguém responsável. O lugar mais fácil de olhar é para as pessoas que ainda são mais vulneráveis que você. Isso se transforma em atitudes perigosas e antissociais.

O declínio da democracia é consequência e, de fato, uma consequência desejada das políticas que foram implantadas. Elas superam a chamada crise de democracia, quando havia, na opinião deles, muita democracia. Sim, a redução da crise da democracia foi bem-sucedida.

O fato, porém, é que a maior ameaça à democracia são simplesmente os programas neoliberais. Que tem como consequência a concentração de poder em mãos das corporações privadas, o que automaticamente leva ao declínio da democracia.

Temos que ter em mente o que foi pretendido por setores liberais que estavam preocupados com a crise da democracia, quando a militância e o ativismo dos anos 1960 engajou muitas pessoas no sistema político. Então o declínio da democracia não é um fracasso. É um sucesso.

EUA ameaçam a paz

Se se pergunta sobre as ameaças à paz mundial, houve essa pesquisa muito interessante. A maior agência de pesquisa nos EUA, a Gallup Corporation, faz estudos sobre opinião internacional todos os anos. Perguntam todo o tipo de questão, têm muita informação. Em 2013, sob Obama, eles perguntaram pela primeira vez qual era o país que significava a maior ameaça à paz mundial.

A resposta nunca foi publicada nos EUA. E Gallup nunca mais fez essa pergunta. A resposta foi os EUA, por larga margem. Muito atrás dos EUA, no segundo lugar, ficou o Paquistão. O que é enganoso se se considerar o peso das respostas na Índia. Então, são basicamente os EUA.

Se você pergunta nos EUA, a resposta vai para Irã, Coreia do Norte: essas são as ameaças. Mas, na opinião internacional, eles são raramente citados. O Irã foi citado por uma baixa percentagem, semelhante à percentagem de Israel, aproximadamente. Mas, basicamente, são os EUA que são uma ameaça à paz mundial. O mundo entende isso.

Nos EUA isso é impensável. Interessante é que um jornal nos EUA publicou essa pesquisa. Foi um tabloide do direitista Murdoch, o “The New York Post”. O jeito que eles publicaram: ‘Veja como o mundo está louco’.

Ameaça nuclear e aquecimento global

O sistema não pode sobreviver por uma razão. Há duas crises enormes crescendo. Uma a gente conhece: a ameaça nuclear. Se você olha para a história da era nuclear, é absolutamente um milagre que tenhamos sobrevivido. Em dezenas de vezes, às vezes por acidente, principalmente, outras vezes por ações imprudentes de líderes, quase chegamos à destruição [completa da humanidade]. Literalmente. Os casos são chocantes quando você os observa. Mas milagres não continuam.

A outra crise é o aquecimento global, que é muito séria. Se o uso dos combustíveis fósseis continuar em qualquer coisa remotamente próxima ao atual nível, ao final deste século veremos o nível do mar aumentando de 6 a 10 metros. É possível imaginar o significado disso. Além do que já se vê: tempo severo, secas, furacões, tufões –tudo isso está crescendo.

E já provoca grandes efeitos. Como a Guerra na Síria, por exemplo. Uma das suas origens está numa seca sem precedentes na história. Uma seca enorme, seguramente consequência do aquecimento global, que fez com que os camponeses saíssem de suas terras e fossem para as cidades. Não havia como eles sobreviverem. É um incêndio anunciado, que pode ser provocado por qualquer faísca. É parte do contexto do conflito que emergiu.

A mesma coisa em Darfur. Uma seca enorme trouxe nômades para áreas agrícolas. E há também o conflito étnico. E ocorreram grandes massacres. Essas coisas não estão no futuro. Estamos vivenciando-as.

Bangladesh é, essencialmente, um lugar de costa plana. Se o nível do mar começar a subir o que acontecerá com centenas de milhares de pessoas? Se as geleiras continuarem a derreter no Himalaia, o já restrito fornecimento de água no Sul da Ásia será severamente ameaçado. Agora há centenas de milhões de pessoas na Índia que não têm água potável. No Paquistão vai ser pior. Estamos falando do destino de centenas de milhões de pessoas no futuro próximo.

Os ricos podem pensar que eles podem escapar indo para uma montanha, mas isso não vai acontecer.

Políticas agravam os problemas

As políticas que estão sendo implementadas vão intensificar o problema. Não é apenas Trump, mas também os grandes bancos. Vejam o JP Morgan, Chase. São bancos enormes. Eles sabem exatamente quais são as consequências. E eles aumentam seus investimentos em combustíveis fósseis. Essa é a natureza do capitalismo.

Temos uma forma mista de capitalismo. Mas existe um sistema de mercado subjacente em algum lugar. E é imperativo para o sistema de mercado tentar fazer o máximo de lucro imediatamente, sem considerar o que se chama de externalidades. Se você não faz isso, você está fora do jogo. É parte da estrutura do sistema.

Jamie Dimon, um sujeito inteligente, chefe do JP Morgan, Chase entende perfeitamente as consequências. Mas é compelido, pela lógica da instituição, a maximizar a ameaça para os seus próprios netos. Talvez não goste e, de forma lateral, ele doe dinheiro para grupos ambientalistas. Forças de dentro do sistema estão destruindo as possibilidades de uma vida organizada. Isso não é uma coisa em que se pode apenas colocar bandeides. Isso é mais profundo.

Destruição total

Honestamente, não há nada na história da humanidade comparável a isso. Nem Genghis Khan nem Hitler, por mais horríveis que tenham sido, nunca tentaram destruir a vida humana organizada. Isso é algo novo. Não há palavra para descrevê-lo. ‘Mal’ não é suficiente para definir isso. ‘Insanidade’ não apreende seu significado. Porque não é insano. É planejado conscientemente. É parte integrante da lógica do sistema.

Trump e seus associados estão tentando ampliar isso, piorar a situação. Essa não é parte da lógica do sistema. O sistema pode funcionar com esforços paliativos, como Obama e parte do mundo estavam fazendo. Não o suficiente, mas, ao menos, é alguma coisa. Mas é um problema muito profundo. É como o ódio de classe no Brasil. É profundo, e você não pode colocar um bandeide. São coisas fundamentais que precisam ser enfrentadas.

Resistência no mundo

É a parte encorajadora da história. Em todo o mundo há resistência. A figura mais popular nos EUA é Bernie Sanders. O que é impensável na moldura da história política dos EUA. Nunca aconteceu antes –que alguém como Sanders possa ser conhecido e se transforme na figura política mais popular do país.

Pense no que aconteceu. É preciso reconhecer que as eleições norte-americanas são literalmente compradas. É possível prever o resultado com notável precisão apenas olhando para o financiamento de campanha, no executivo e para o Congresso. Isso acontece há 100 anos.

E aí aparece fazendo campanha alguém virtualmente desconhecido, sem apoio da mídia, raramente mencionado –se a mídia o menciona é para tirar sarro dele–, sem suporte de financiamento, sem suporte das corporações, da riqueza privada. Ele até usa a palavra ´socialismo`, que é proibida, vetada nos Estados Unidos como se fosse um palavrão. Os EUA devem ser o único país do mundo onde você não pode dizer a palavra socialismo nem falar em comunismo. É apenas indizível. E ele diz que é um socialista.

O socialismo dele, na verdade, não passa do New Deal democrático. Não significa nada muito profundo. Apesar de tudo isso, de toda a campanha contra, ele chegou muito perto de ganhar a indicação pelos democratas. Se Sanders tivesse tido condições de ganhar a indicação, não sei o que teria acontecido.

Porque a grande máquina de propaganda republicana –que não foi direcionada contra Sanders—seria, então, direcionada para ele. O que se começaria a ouvir seriam coisas como: ele é um ateu, judeu, comunista, que quer destruir tudo. Seria imprevisível. Não sabemos como as pessoas reagiriam a isso.

Isso se pode ver na Inglaterra agora, no tipo de ataque feito contra Jeremy Corbyn. A ideia de que você deve um partido político que realmente represente o público em geral e seus interesses e as pessoas que sofrem no exterior, que sejam seres humanos decentes –isso é totalmente intolerável. Há um enorme ataque a Corbyn, contra ele e o Partido Trabalhista.

Esse é o tipo de coisa que você teria visto se Sanders tivesse sido indicado, propaganda inventada, mentiras contra as quais é muito difícil de se defender.

Internacional Progressista

Há muita coisa a superar, mas o que a campanha de Sanders mostrou e o que a campanha vitoriosa de Corbyn diz é que se pode fazer muito. Sanders e Yanis Varoufakis [ex-ministro das finanças da Grécia] acabam de fazer uma declaração conjunta que é muito importante –propondo uma espécie de Internacional Progressista.

Varoufakis é um cara muito inteligente e interessante. Ele é o centro dessa nova organização política, a Diem 25 [Democracy in Europe Movement 2025], que está lançando candidatos transnacionais para o Parlamento Europeu. O que tem a ver com o que fazem Corbyn e Sanders. E a declaração de Varoufakis e Sanders dias atrás não é radical, chama para o sensato, para uma estrutura multipolar, liberal e democrática. Quer que a Europa preserve o que é bom na União Europeia e supere as suas sérias falhas; a mesma coisa no hemisfério ocidental.

A vitória de López Obrador, no México, é um outro exemplo. Assim, se você olha para o mundo, há muito ativismo, principalmente entre os jovens. É surpreendente, impressionante. E está permanecendo. Então, as bases estão aí. É preciso unir e organizar.

Com Obrador e uma vitória da esquerda no Brasil se pode formar um novo eixo progressista e, com isso, mudar o equilíbrio do mundo?

Sim. Foi mais ou menos o que aconteceu há 10 anos, com a ascensão da Unasul, Brics e, particularmente, a Celac [Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos]. A Celac é uma organização muito importante, porque excluiu os EUA e o Canadá. Foi a primeira vez na história do hemisfério que uma organização foi criada sem o colosso do Norte. Houve discussões e encontros hemisféricos, havia uma base real para isso. Mas houve uma forte reação e ela mal funciona. Mas a base está lá e pode ser recuperada.

Há espaço para a criação de uma Internacional Progressista?

É o que se precisa. É o que Varoufakis e Sanders estão apontando. É uma base. Mas essas coisas não acontecem por si só. Precisa de energia, dedicação, comprometimento. Como tudo na vida. O abolicionismo lutou por centenas de anos antes de se ter formalmente o fim da escravidão. A luta por direitos das mulheres tem centenas de anos. Essas coisas não são fáceis de conquistar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente: