sexta-feira, 14 de setembro de 2018

O que querem as brasileiras?

Por Rosane Borges, na revista CartaCapital:

Tal como incêndios florestais, o movimento “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro” se espalhou rapidamente na internet, preenchendo todos os espaços das redes sociais de tal forma que alcançou 1,5 milhão de participantes, com adesão de dez mil mulheres por minuto.

Como se tornou comum nas reivindicações dos nossos tempos, o movimento transborda as fronteiras dos espaços digitais e reclama acolhida nos ambientes materiais. Em várias cidades, a exemplo de São Paulo e Rio de Janeiro, vêm sendo convocadas manifestações que se mostram, até o momento, com densidade para barrar a ida do candidato de extrema-direita ao segundo turno.

Segundo pesquisas, a rejeição a Jair Bolsonaro, do PSL, só cresce desde junho. Com 34% nesse período, a reprovação só vem aumentando, chegando nos últimos dias aos 49% de recusa do voto feminino. Entre as mais jovens (16 e 24 anos) a desaprovação chega ao patamar dos 64%, contra 37% entre as mais velhas (acima de 60). Esses números compõem a faixa de contenção que impede a ida de Bolsonaro ao segundo turno, uma vez que nós, mulheres, representamos 52 porcento do eleitorado.

Mais do que cálculo eleitoral, recusa à antipolítica
Irrefutavelmente, as mulheres se levantam em todo o mundo. Lembremos de similar manifestação que ocorreu nos EUA com a "Marcha das Mulheres contra Donald Trump", realizada em duas edições. Caso queiramos recuar ainda mais no calendário, verificaremos como a participação das mulheres foi determinante em situações-limite que ameaçam pôr o mundo e a vida em xeque (guerras, genocídios, fome, chacinas).

Nos momentos em que a barbárie se insinua, a voz feminina, que nunca se calou, parece ser escutada por aqueles que sistematicamente fazem ouvidos moucos ao que dizem as mulheres. A feminista e escritora Joana Burigo lamenta o fato de sermos lembradas “em momentos que parece ser tarde demais, característica de sociedades e psiques patriarcais”. Para os analistas políticos de plantão, por exemplo, deve-se prestar atenção à mobilização ruidosa do “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro” porque o nosso voto decide eleições.

Porém, mais do que apenas uma questão de cálculo eleitoral, o que já se mostra de grande monta, há algo mais que se deixa entrever na aliança coletiva. Para além de tentar quebrar a ponta do iceberg representada pela candidatura de Jair Bolsonaro-Mourão, tem-se, com o movimento, a defesa intransigente da vida em suas múltiplas formas e a recusa em pactuar com a cultura anti-política que se instala em boa parte do mundo.

Quando mulheres de vários matizes (no grupo coexistem mulheres muito jovens com outras em idade provecta) resolvem se unir contra uma candidatura que anuncia, entre outras coisas, a destituição dos gêneros subalternizados, não hegemônicos (mulheres, lésbicas, gays, pessoas trans, travestis), elas põem em circulação outra gramática política, tornam visíveis propostas que proclamam o advento de um novo tempo, bloqueiam programas que flertam com politicas da morte, seja ela real ou simbólica.

O movimento “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro” é a reação mais corajosa e bela contra o fascismo em nossas plagas. Circulando feito pão quente, ganha adesão de quem pressente a regressão que se avizinha da vida nacional, cuja força vulcânica ameaça demolir as pedras restantes de uma base democratizante e emancipatória, que resistiram ao golpe de 2016.

O fascismo, que depende de “clamores emocionais, antirracionais, fundados em promessas másculas de renovação do vigor nacional”, como lembra o cientista político Mark Bray, não prosperou por meio de revoluções, mas chegou ao poder por vias legais:

A marcha de Mussolini em Roma foi só uma encenação com o ob­jetivo de legitimar o convite anterior para que ele for­masse um governo. O Putsch de Munique de Hitler, em 1923, fracassou completamente. Sua ascensão final ao poder veio quando o presidente Hindenburg o nomeou chanceler. A lei que lhe concedeu plenos poderes foi aprovada pelo parlamento. Historicamente, contudo, o fascismo não precisou derrubar portões para ganhar acesso aos centros do poder. Bastou con­vencer os porteiros a deixá-lo entrar.

Insiste Bray, no entanto, que não devemos subestimar as insurreições fascistas, uma vez que a estratégia da tensão ou dos “lobos solitários” são provas do perigo con­creto da insurreição fascista violenta. (no último domingo, na avenida Paulista, um grupo de apoio a Bolsonaro, que exalava força máscula, se manifestou, provocando medo e apreensão em quem assistia à performance nada fofa dos participantes).

Tornou-se proverbial a clássica pergunta de Freud, “O que quer uma mulher?” que vem recebendo respostas enviesadas e sexistas. Pode-se reatualizá-la para o caso em tela respondendo que as brasileiras querem mudar a rota da história presente, pois conseguem avistar que no tronco Bolsonaro-Mourão florescem muito mais coisas do que a concordância com a desigualdade salarial entre gêneros ou a subserviência das esposas aos seus “excelentes” maridos. Simpatizo com a frase de Vonnegut: “da beirada se pode ver todo tipo de coisa que não se pode ver do centro. Grandes coisas, inimagináveis, as pessoas na borda veem primeiro”.

Pois bem, as mulheres brasileiras, ao que tudo indica, estão vendo primeiro, das bordas, que as declarações intoleráveis de Bolsonaro e seu vice, possuem um lastro social que disputa os horizontes da existência. Por isso lutamos tanto para que os porteiros não lhes abram as portas palacianas, como também nos insurgimos para interceptar formas violentas de manifestação que ameaçam perseguir e extinguir vidas que se fazem fora do receituário dos “cidadãos de bem”.

E essa tarefa árdua e corajosa transcende as eleições. É preciso permanecer na luta pela destruição fascista, mesmo com a derrota certeira de Bolsonaro. O front, nos ensina o movimento “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro”, tem nas eleições uma de suas principais motivações, mas se estende para além delas. O Brasil e o mundo devem mais essa às mulheres.

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