Por Augusto C. Buonicore, no site da Fundação Maurício Grabois:
Raízes do Brasil constituiu-se numa das principais tentativas de explicar o Brasil. O autor procurou responder à pergunta: Existiria um “caráter nacional” distintivo dos brasileiros? Concluiu ele: “a contribuição brasileira para a civilização será a cordialidade”. É nítida nessa obra a presença da problemática (idealista) sobre a existência de um caráter nacional dos brasileiros, acima da história e das lutas de classes. Contudo, a posição de esquerda do autor levou-o a se inserir dentro de uma perspectiva avançada. Sua leitura do passado vinculou-se a tentativa de construção de um projeto de futuro, que passava pela realização da “Revolução brasileira”.
A obra Raízes do Brasil começou a ser escrita em 1927 e somente foi publicada em 1936 – quando o regime de Vargas transitava para se transformar numa ditadura e o nazi-fascismo estava em ascensão no mundo. Ela, ao lado de Retrato do Brasil e Casa Grande & Senzala, constituiu-se numa das muitas tentativas de explicar o Brasil naquelas primeiras décadas do século XX. No entanto, a posição de esquerda do autor levou-a a se inserir dentro de uma perspectiva mais avançada – a leitura do passado acabou se vinculando a uma tentativa de construção de um projeto de futuro, que passava pela realização da “Revolução brasileira”.
Sérgio Buarque, seguindo a trilha aberta por Gilberto Freyre, viu no português um povo melhor preparado para a conquista e a colonização das regiões tropicais. Para ele,“nenhum outro povo do Velho Mundo achou-se tão bem armado para se aventurar à exploração regular e intensa das terras próximas à linha equatorial, onde os homens depressa degeneram”, embora essa exploração não tivesse se processado de uma maneira metódica e racional, e sim “com desleixo e certo abandono”.
Ele criticou asperamente aqueles “detratores da ação dos portugueses no Brasil”, que prefeririam o “trunfo da experiência de colonização holandesa, convictos de que nos teria levado a melhores e mais gloriosos rumos”. Nada seria mais falso, porque as demais experiências feitas por outras nações colonizadoras fracassaram em terras tropicais. A colonização portuguesa no Brasil, segundo Sérgio Buarque, constituiu “o único esforço bem-sucedido, e em larga escala, de transplantação da cultura europeia para uma zona de clima tropical”.
Os traços que particularizariam os colonizadores portugueses seriam: o culto à personalidade, a anarquia na vida social, a inexistência de uma ética valorativa do trabalho e aos privilégios hereditários. Particularmente, as três primeiras características os diferenciavam dos povos protestantes, possuidores de um forte sentido de organização e “a moral fundada no culto ao trabalho”, que brotava espontaneamente de sua cultura.
Não teriam se naturalizado entre os colonizadores portugueses “a moderna religião do trabalho e o apreço a atividade utilitária”. Assim “uma digna ociosidade pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português (...) do que a luta insana pelo pão de cada dia (...) e assim, enquanto os povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se largamente no ponto de vista da antiguidade clássica (...) de que o ócio importa mais que o negócio”.
A contrapartida desse verdadeiro “anarquismo social” seria a constituição de um Estado forte, quase ditatorial. Dessa maneira, “a vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes igualmente peculiares. As ditaduras e o Santo Ofício parecem constituir formas tão típicas de seu caráter como a inclinação à anarquia e à desordem”.
Sérgio Buarque, a exemplo de Freyre, também notaria o papel fundamental da família patriarcal na formatação da sociedade brasileira. Mas, ao contrário do intelectual pernambucano, considerava isso um fenômeno negativo a ser superado pela própria dinâmica do desenvolvimento nacional. A família patriarcal impregnava toda a estrutura social e as relações com o poder público. Existiria “uma invasão do público pelo privado, do Estado pela Família”. Aí estariam as raízes do patrimonialismo brasileiro.
A chegada da família real portuguesa – e o desenvolvimento da cidade e da estrutura estatal – sinalizaria para uma redução do “pátrio poder” e dos valores a ele vinculados. Contudo, como não existia uma burguesia urbana independente, os funcionários acabaram sendo recrutados entre os filhos e agregados dos antigos senhores rurais – transplantando nas cidades elementos organizacionais baseados nos valores da família patriarcal rural. Para esses segmentos, não seria fácil “compreender a distância fundamental entre os domínios do privado e do público”. A própria escolha dos funcionários públicos fazia-se “de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos” e não “de acordo com as suas capacidades próprias”. Assim, estes se diferenciariam dos funcionários-burocratas típicos da estrutura dos Estados capitalistas modernos.
Sérgio Buarque de Holanda, apesar da quase louvação da colonização portuguesa, construiu uma visão bastante crítica do processo de formação da sociedade brasileira. Ele teria impossibilitado – até aquele momento – a implantação de uma efetiva democracia no país. A democracia entre nós teria sido “um lamentável mal-entendido”. Uma aristocracia rural (e semifeudal) “importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinha no Velho Mundo (...). Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós”.
A democracia racial
É lugar-comum “acusar” Gilberto Freyre de responsável pela construção de dois mitos caros aos brasileiros: o da benevolência do colonizador português e o da existência de uma democracia racial no país. Mas nunca lembramos que o próprio Sérgio Buarque deu sua contribuição para a consolidação dessas ideias errôneas entre nós. Os críticos do intelectual conservador pernambucano, geralmente, tendem a poupar o intelectual de esquerda (ou centro-esquerda) paulista.
Este último, por exemplo, afirmou que a colonização portuguesa se caracterizava pela “ausência completa, ou praticamente completa, de qualquer orgulho de raça. Ao menos do orgulho obstinado e inimigo de compromissos, que caracteriza os povos do Norte”. Em outro trecho afirmou: “Ao contrário do que sucedeu com os holandeses, o português entrou em contato íntimo e frequente com a população de cor. Mais do que nenhum outro povo da Europa, cedia com docilidade ao prestígio comunicativo dos costumes, da linguagem e das seitas dos indígenas e negros”. Isto se explicaria pelo fato de serem, “já ao tempo do descobrimento do Brasil, um povo mestiço”.
Sérgio Buarque, curiosamente, escreveu ser “exíguo o sentimento de distância entre os dominadores e a massa trabalhadora constituídas de homens de cor”, e que “o escravo das plantações e das minas não era simples manancial de energia, um carvão humano à espera de que a época industrial o substituísse pelo combustível. Com frequência as suas relações com os donos oscilavam da situação de dependência para de protegido, a até de solidário e afim. Sua influência penetrava sinuosamente o recesso doméstico, agindo como dissolvente de qualquer ideia de separação de castas ou raças, de qualquer disciplina fundada em tal separação”.
Essas afirmações não têm nenhuma ligação com a nossa realidade histórica. Não passam de visões idílicas das relações existentes entre os escravos e seus proprietários. Sérgio Buarque, como Freyre, tende a generalizar relações que podem ter existido entre alguns patrões e alguns poucos escravos domésticos para o conjunto das relações de produção escravistas. Neste caso, a ciência deu lugar a certa ideologia aristocrática.
O Homem Cordial
Sérgio Buarque, como todos os autores do seu tempo, buscou descobrir quais as características essenciais do “homem brasileiro”. Procurou responder à pergunta: Existiria um “caráter nacional” distintivo do povo brasileiro?
Em Raízes do Brasil deu uma resposta afirmativa a essa questão. Constatou: “a contribuição brasileira para a civilização será a cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informado pelo meio rural e patriarcal”.
Brasílio Sallum Jr., buscando definir a noção de “homem cordial”, escreveu: “é a tentativa de reconstrução fora do ambiente familiar, no plano societário, do mesmo tipo de sociabilidade da família patriarcal, de um tipo de sociabilidade dependente de laços comunitários. Seriam exemplos disso (...) o horror às hierarquias e a busca de intimidade no tratamento dispensado à autoridade”.
É bom aqui fazermos um alerta: o nosso autor em nenhum momento confunde a noção de cordialidade com as de bondade ou amizade, presentes no senso-comum. Ou seja, ele não procurou com o termo “cordialidade” expressar nenhum juízo de valor (positivo) sobre o caráter do povo brasileiro: “Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade (...) não abrange (...) apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade pode ser tão cordial como a amizade, nisto que um e outra nascem do coração, procedem assim da esfera do íntimo, do familiar, do privado. Pertencem efetivamente, para recorrer a termo consagrado pela moderna sociologia, ao domínio dos grupos primários, cuja unidade, segundo observa o elaborador do próprio conceito, não é somente harmonia e amor (...) a inimizade, sendo pública ou política, se chamará mais precisamente hostilidade”.
Diante da celeuma levantada em torno do “caráter cordial” do “homem brasileiro”, o autor foi obrigado a reafirmar a historicidade dessa característica. Numa carta ao poeta Cassiano Ricardo, enviada em 1948, afirmou: “quero frisar, ainda uma vez, que a própria cordialidade não me parece virtude definitiva e cabal que tenha que prevalecer independentemente das circunstâncias mutáveis de nossa existência. Acredito que, ao menos na segunda edição de meu livro, tenha deixado este ponto bastante claro, (...) o homem cordial se acha fadado provavelmente a desaparecer, onde ainda não desapareceu de todo. E às vezes receio sinceramente que já tenha gasto muita cera com esse pobre defunto”. Em outras palavras: as novas condições surgidas com a industrialização e a urbanização – ou seja, a revolução brasileira em curso – tenderiam a fazê-lo desaparecer.
Por fim, novamente, estabeleceu que a noção de “homem cordial” não pressupõe um juízo ético – positivo ou negativo. “Cabe-me dizer-lhe ainda que também não creio muito na bondade fundamental dos brasileiros. Não pretendo que sejamos melhores, ou piores, do que os outros povos”.
Dante Moreira criticaria a tese que buscava afirmar a existência de um caráter do homem (ou mulher) brasileiro assentado na noção de “cordialidade”, mesmo nos períodos colonial e monárquico, pois uma “descrição psicológica do brasileiro só poderia sustentar-se, coerentemente, se as características fossem consideradas como permanentes e válidas para todas as classes sociais”. Essas características estariam ligadas apenas, ou em grande parte, à família patriarcal brasileira. Ou seja, pautariam as relações “entre iguais, entre pessoas de classe alta, e não a relação entre superior e subordinado”, e ironizou: “os negros colocados em situação que não ameaça os brancos são tratados cordialmente. No entanto, quando os negros ameaçaram essa posição, foram tratados com crueldade: é suficiente lembrar a história do bandeirante que exibia as orelhas dos negros mortos em Palmares”.
Acredito que Sérgio Buarque concordaria com isso, pois a noção de cordialidade para ele – como constatado – não se confundia com a de bondade ou delicadeza no trato entre pessoas, especialmente de classes diferentes. Mas, de fato, em Raízes do Brasil é forte (diria mesmo, predominante) a problemática (idealista) da existência de um caráter nacional dos brasileiros. Nas palavras de Dante Moreira, os intelectuais do início do século XX continuavam presos à “ideia de características nacionais, de um passado que determina o presente”. Eram fundamentalmente essencialistas – pois existiria uma essência do homem brasileiro eterna e, portanto, nãohistórica. Posição radicalmente contestada pelos autores marxistas.
A revolução brasileira
O último capítulo do livro, intitulado A nossa revolução, é um dos mais interessantes. Nele, Sérgio Buarque analisa o processo, mais ou menos lento, de passagem do predomínio da vida rural ao predomínio do mundo urbano-industrial. Segundo ele, a “grande revolução brasileira não é um fato que se registrasse em um instante preciso: é antes um processo demorado e que vem durando pelo menos há três quartos de século” e “por certo continuaremos a testemunhar durante largo tempo, as ressonâncias últimas do lento cataclismo, cujo sentido parece ser o do aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura para a inauguração de um estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente de americano, porque seus traços se acentuam com maior rapidez em nosso hemisfério”.
Continuou: “A forma visível dessa revolução não será, talvez, a das convulsões catastróficas, que procuram transformar de um mortal golpe, e seguindo preceitos de antemão formulados, os valores longamente estabelecidos. É possível que algumas das suas fases culminantes já tenham sido ultrapassadas, sem que possamos avaliar desde já sua importância transcendente. Estaríamos assim vivendo entre dois mundos: um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz”. Essa visão da revolução burguesa no Brasil é bastante rica e instigante.
A Abolição da escravidão foi, em certo sentido, um momento importante de transição entre os dois modelos: ibérico e americano – ou entre o mundo rural oligárquico e o mundo urbano industrial. O centro de toda organização social e política deixava lentamente de ter como base ou referência a família patriarcal. “Com pouco exagero pode dizer-se que tal situação não se mudou essencialmente até a Abolição. 1888 representou o marco divisório entre duas épocas; em nossa evolução nacional, essa data assumiu significado singular e incomparável”.
Apostaria sinceramente no polo da mudança, no moderno contra o arcaico. Não tem nenhuma nostalgia do passado oligárquico – como têm Oliveira Vianna e Gilberto Freyre. Se estes dois autores fizeram de suas obras momentos de resistência à modernidade capitalista, Sérgio Buarque foi seu incentivador. Nesse sentido ele é mais progressista. Talvez isso nos ajude a entender o porquê da adesão de Freyre à Aliança Renovadora Nacional (Arena) – e seu apoio ao regime militar e ao salazarismo– e a de Sérgio Buarque ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) e, depois,ao Partido dos Trabalhadores (PT).
O intelectual paulista foi um opositor à ditadura militar e, em 1969, demitiu-se da Universidade de São Paulo (USP) em protesto contra as aposentadorias compulsórias impostas pelo regime discricionário a alguns professores considerados “subversivos”. Hoje ele dá o seu nome ao Centro de Documentação e Memória da Fundação Perseu Abramo.
* Este texto compõe o ensaio Descobrindo o povo brasileiro, publicado no livro Marxismo, história e revolução brasileira: Encontros e desencontros (Editora Anita Garibaldi, 2009).
* Augusto Buonicore é historiador, mestre em Ciência Política pela Unicamp e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução, publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.
Bibliografia
AXT, Gubter; SCHÜLER, Fernando. (orgs.). Intérpretes do Brasil. Rio Grande do Sul: Artes e Ofícios, 2004.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro. São Paulo: Pioneira, 1973.
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974). São Paulo: Ática, 1985.
MOTA, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil: Um banquete no trópico. Col. 1 e 2. São Paulo: Senac, 2000.
RUY, José Carlos. Visões da História. Princípios, nº 53 e 54. São Paulo: Anita Garibaldi, 1999.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco – Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. São Paulo: Paz e Terra, 1976.
A obra Raízes do Brasil começou a ser escrita em 1927 e somente foi publicada em 1936 – quando o regime de Vargas transitava para se transformar numa ditadura e o nazi-fascismo estava em ascensão no mundo. Ela, ao lado de Retrato do Brasil e Casa Grande & Senzala, constituiu-se numa das muitas tentativas de explicar o Brasil naquelas primeiras décadas do século XX. No entanto, a posição de esquerda do autor levou-a a se inserir dentro de uma perspectiva mais avançada – a leitura do passado acabou se vinculando a uma tentativa de construção de um projeto de futuro, que passava pela realização da “Revolução brasileira”.
Sérgio Buarque, seguindo a trilha aberta por Gilberto Freyre, viu no português um povo melhor preparado para a conquista e a colonização das regiões tropicais. Para ele,“nenhum outro povo do Velho Mundo achou-se tão bem armado para se aventurar à exploração regular e intensa das terras próximas à linha equatorial, onde os homens depressa degeneram”, embora essa exploração não tivesse se processado de uma maneira metódica e racional, e sim “com desleixo e certo abandono”.
Ele criticou asperamente aqueles “detratores da ação dos portugueses no Brasil”, que prefeririam o “trunfo da experiência de colonização holandesa, convictos de que nos teria levado a melhores e mais gloriosos rumos”. Nada seria mais falso, porque as demais experiências feitas por outras nações colonizadoras fracassaram em terras tropicais. A colonização portuguesa no Brasil, segundo Sérgio Buarque, constituiu “o único esforço bem-sucedido, e em larga escala, de transplantação da cultura europeia para uma zona de clima tropical”.
Os traços que particularizariam os colonizadores portugueses seriam: o culto à personalidade, a anarquia na vida social, a inexistência de uma ética valorativa do trabalho e aos privilégios hereditários. Particularmente, as três primeiras características os diferenciavam dos povos protestantes, possuidores de um forte sentido de organização e “a moral fundada no culto ao trabalho”, que brotava espontaneamente de sua cultura.
Não teriam se naturalizado entre os colonizadores portugueses “a moderna religião do trabalho e o apreço a atividade utilitária”. Assim “uma digna ociosidade pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português (...) do que a luta insana pelo pão de cada dia (...) e assim, enquanto os povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se largamente no ponto de vista da antiguidade clássica (...) de que o ócio importa mais que o negócio”.
A contrapartida desse verdadeiro “anarquismo social” seria a constituição de um Estado forte, quase ditatorial. Dessa maneira, “a vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes igualmente peculiares. As ditaduras e o Santo Ofício parecem constituir formas tão típicas de seu caráter como a inclinação à anarquia e à desordem”.
Sérgio Buarque, a exemplo de Freyre, também notaria o papel fundamental da família patriarcal na formatação da sociedade brasileira. Mas, ao contrário do intelectual pernambucano, considerava isso um fenômeno negativo a ser superado pela própria dinâmica do desenvolvimento nacional. A família patriarcal impregnava toda a estrutura social e as relações com o poder público. Existiria “uma invasão do público pelo privado, do Estado pela Família”. Aí estariam as raízes do patrimonialismo brasileiro.
A chegada da família real portuguesa – e o desenvolvimento da cidade e da estrutura estatal – sinalizaria para uma redução do “pátrio poder” e dos valores a ele vinculados. Contudo, como não existia uma burguesia urbana independente, os funcionários acabaram sendo recrutados entre os filhos e agregados dos antigos senhores rurais – transplantando nas cidades elementos organizacionais baseados nos valores da família patriarcal rural. Para esses segmentos, não seria fácil “compreender a distância fundamental entre os domínios do privado e do público”. A própria escolha dos funcionários públicos fazia-se “de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos” e não “de acordo com as suas capacidades próprias”. Assim, estes se diferenciariam dos funcionários-burocratas típicos da estrutura dos Estados capitalistas modernos.
Sérgio Buarque de Holanda, apesar da quase louvação da colonização portuguesa, construiu uma visão bastante crítica do processo de formação da sociedade brasileira. Ele teria impossibilitado – até aquele momento – a implantação de uma efetiva democracia no país. A democracia entre nós teria sido “um lamentável mal-entendido”. Uma aristocracia rural (e semifeudal) “importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinha no Velho Mundo (...). Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós”.
A democracia racial
É lugar-comum “acusar” Gilberto Freyre de responsável pela construção de dois mitos caros aos brasileiros: o da benevolência do colonizador português e o da existência de uma democracia racial no país. Mas nunca lembramos que o próprio Sérgio Buarque deu sua contribuição para a consolidação dessas ideias errôneas entre nós. Os críticos do intelectual conservador pernambucano, geralmente, tendem a poupar o intelectual de esquerda (ou centro-esquerda) paulista.
Este último, por exemplo, afirmou que a colonização portuguesa se caracterizava pela “ausência completa, ou praticamente completa, de qualquer orgulho de raça. Ao menos do orgulho obstinado e inimigo de compromissos, que caracteriza os povos do Norte”. Em outro trecho afirmou: “Ao contrário do que sucedeu com os holandeses, o português entrou em contato íntimo e frequente com a população de cor. Mais do que nenhum outro povo da Europa, cedia com docilidade ao prestígio comunicativo dos costumes, da linguagem e das seitas dos indígenas e negros”. Isto se explicaria pelo fato de serem, “já ao tempo do descobrimento do Brasil, um povo mestiço”.
Sérgio Buarque, curiosamente, escreveu ser “exíguo o sentimento de distância entre os dominadores e a massa trabalhadora constituídas de homens de cor”, e que “o escravo das plantações e das minas não era simples manancial de energia, um carvão humano à espera de que a época industrial o substituísse pelo combustível. Com frequência as suas relações com os donos oscilavam da situação de dependência para de protegido, a até de solidário e afim. Sua influência penetrava sinuosamente o recesso doméstico, agindo como dissolvente de qualquer ideia de separação de castas ou raças, de qualquer disciplina fundada em tal separação”.
Essas afirmações não têm nenhuma ligação com a nossa realidade histórica. Não passam de visões idílicas das relações existentes entre os escravos e seus proprietários. Sérgio Buarque, como Freyre, tende a generalizar relações que podem ter existido entre alguns patrões e alguns poucos escravos domésticos para o conjunto das relações de produção escravistas. Neste caso, a ciência deu lugar a certa ideologia aristocrática.
O Homem Cordial
Sérgio Buarque, como todos os autores do seu tempo, buscou descobrir quais as características essenciais do “homem brasileiro”. Procurou responder à pergunta: Existiria um “caráter nacional” distintivo do povo brasileiro?
Em Raízes do Brasil deu uma resposta afirmativa a essa questão. Constatou: “a contribuição brasileira para a civilização será a cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informado pelo meio rural e patriarcal”.
Brasílio Sallum Jr., buscando definir a noção de “homem cordial”, escreveu: “é a tentativa de reconstrução fora do ambiente familiar, no plano societário, do mesmo tipo de sociabilidade da família patriarcal, de um tipo de sociabilidade dependente de laços comunitários. Seriam exemplos disso (...) o horror às hierarquias e a busca de intimidade no tratamento dispensado à autoridade”.
É bom aqui fazermos um alerta: o nosso autor em nenhum momento confunde a noção de cordialidade com as de bondade ou amizade, presentes no senso-comum. Ou seja, ele não procurou com o termo “cordialidade” expressar nenhum juízo de valor (positivo) sobre o caráter do povo brasileiro: “Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade (...) não abrange (...) apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade pode ser tão cordial como a amizade, nisto que um e outra nascem do coração, procedem assim da esfera do íntimo, do familiar, do privado. Pertencem efetivamente, para recorrer a termo consagrado pela moderna sociologia, ao domínio dos grupos primários, cuja unidade, segundo observa o elaborador do próprio conceito, não é somente harmonia e amor (...) a inimizade, sendo pública ou política, se chamará mais precisamente hostilidade”.
Diante da celeuma levantada em torno do “caráter cordial” do “homem brasileiro”, o autor foi obrigado a reafirmar a historicidade dessa característica. Numa carta ao poeta Cassiano Ricardo, enviada em 1948, afirmou: “quero frisar, ainda uma vez, que a própria cordialidade não me parece virtude definitiva e cabal que tenha que prevalecer independentemente das circunstâncias mutáveis de nossa existência. Acredito que, ao menos na segunda edição de meu livro, tenha deixado este ponto bastante claro, (...) o homem cordial se acha fadado provavelmente a desaparecer, onde ainda não desapareceu de todo. E às vezes receio sinceramente que já tenha gasto muita cera com esse pobre defunto”. Em outras palavras: as novas condições surgidas com a industrialização e a urbanização – ou seja, a revolução brasileira em curso – tenderiam a fazê-lo desaparecer.
Por fim, novamente, estabeleceu que a noção de “homem cordial” não pressupõe um juízo ético – positivo ou negativo. “Cabe-me dizer-lhe ainda que também não creio muito na bondade fundamental dos brasileiros. Não pretendo que sejamos melhores, ou piores, do que os outros povos”.
Dante Moreira criticaria a tese que buscava afirmar a existência de um caráter do homem (ou mulher) brasileiro assentado na noção de “cordialidade”, mesmo nos períodos colonial e monárquico, pois uma “descrição psicológica do brasileiro só poderia sustentar-se, coerentemente, se as características fossem consideradas como permanentes e válidas para todas as classes sociais”. Essas características estariam ligadas apenas, ou em grande parte, à família patriarcal brasileira. Ou seja, pautariam as relações “entre iguais, entre pessoas de classe alta, e não a relação entre superior e subordinado”, e ironizou: “os negros colocados em situação que não ameaça os brancos são tratados cordialmente. No entanto, quando os negros ameaçaram essa posição, foram tratados com crueldade: é suficiente lembrar a história do bandeirante que exibia as orelhas dos negros mortos em Palmares”.
Acredito que Sérgio Buarque concordaria com isso, pois a noção de cordialidade para ele – como constatado – não se confundia com a de bondade ou delicadeza no trato entre pessoas, especialmente de classes diferentes. Mas, de fato, em Raízes do Brasil é forte (diria mesmo, predominante) a problemática (idealista) da existência de um caráter nacional dos brasileiros. Nas palavras de Dante Moreira, os intelectuais do início do século XX continuavam presos à “ideia de características nacionais, de um passado que determina o presente”. Eram fundamentalmente essencialistas – pois existiria uma essência do homem brasileiro eterna e, portanto, nãohistórica. Posição radicalmente contestada pelos autores marxistas.
A revolução brasileira
O último capítulo do livro, intitulado A nossa revolução, é um dos mais interessantes. Nele, Sérgio Buarque analisa o processo, mais ou menos lento, de passagem do predomínio da vida rural ao predomínio do mundo urbano-industrial. Segundo ele, a “grande revolução brasileira não é um fato que se registrasse em um instante preciso: é antes um processo demorado e que vem durando pelo menos há três quartos de século” e “por certo continuaremos a testemunhar durante largo tempo, as ressonâncias últimas do lento cataclismo, cujo sentido parece ser o do aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura para a inauguração de um estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente de americano, porque seus traços se acentuam com maior rapidez em nosso hemisfério”.
Continuou: “A forma visível dessa revolução não será, talvez, a das convulsões catastróficas, que procuram transformar de um mortal golpe, e seguindo preceitos de antemão formulados, os valores longamente estabelecidos. É possível que algumas das suas fases culminantes já tenham sido ultrapassadas, sem que possamos avaliar desde já sua importância transcendente. Estaríamos assim vivendo entre dois mundos: um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz”. Essa visão da revolução burguesa no Brasil é bastante rica e instigante.
A Abolição da escravidão foi, em certo sentido, um momento importante de transição entre os dois modelos: ibérico e americano – ou entre o mundo rural oligárquico e o mundo urbano industrial. O centro de toda organização social e política deixava lentamente de ter como base ou referência a família patriarcal. “Com pouco exagero pode dizer-se que tal situação não se mudou essencialmente até a Abolição. 1888 representou o marco divisório entre duas épocas; em nossa evolução nacional, essa data assumiu significado singular e incomparável”.
Apostaria sinceramente no polo da mudança, no moderno contra o arcaico. Não tem nenhuma nostalgia do passado oligárquico – como têm Oliveira Vianna e Gilberto Freyre. Se estes dois autores fizeram de suas obras momentos de resistência à modernidade capitalista, Sérgio Buarque foi seu incentivador. Nesse sentido ele é mais progressista. Talvez isso nos ajude a entender o porquê da adesão de Freyre à Aliança Renovadora Nacional (Arena) – e seu apoio ao regime militar e ao salazarismo– e a de Sérgio Buarque ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) e, depois,ao Partido dos Trabalhadores (PT).
O intelectual paulista foi um opositor à ditadura militar e, em 1969, demitiu-se da Universidade de São Paulo (USP) em protesto contra as aposentadorias compulsórias impostas pelo regime discricionário a alguns professores considerados “subversivos”. Hoje ele dá o seu nome ao Centro de Documentação e Memória da Fundação Perseu Abramo.
* Este texto compõe o ensaio Descobrindo o povo brasileiro, publicado no livro Marxismo, história e revolução brasileira: Encontros e desencontros (Editora Anita Garibaldi, 2009).
* Augusto Buonicore é historiador, mestre em Ciência Política pela Unicamp e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução, publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.
Bibliografia
AXT, Gubter; SCHÜLER, Fernando. (orgs.). Intérpretes do Brasil. Rio Grande do Sul: Artes e Ofícios, 2004.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro. São Paulo: Pioneira, 1973.
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974). São Paulo: Ática, 1985.
MOTA, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil: Um banquete no trópico. Col. 1 e 2. São Paulo: Senac, 2000.
RUY, José Carlos. Visões da História. Princípios, nº 53 e 54. São Paulo: Anita Garibaldi, 1999.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco – Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. São Paulo: Paz e Terra, 1976.
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