Por Jotabê Medeiros, na revista CartaCapital:
Ao chegar, em janeiro, para ocupar o Ministério da Cultura (MinC), o ministro escolhido pelo novo presidente ou nova presidenta em outubro próximo vai topar com um cenário, no mínimo, desconfortável, cortesia dos dois anos de desgoverno da gestão Temer.
Primeiro, vai ter de desviar-se do legado de nomeações do atual ocupante do cargo, Sérgio Sá Leitão. O novo ministro vai encontrar em um dos gabinetes, por exemplo, a irmã do ex-governador Sérgio Cabral, Cláudia de Oliveira Cabral (nomeada diretora do Departamento do Sistema Nacional de Cultura em 8 de agosto por empenho pessoal do ministro Moreira Franco).
Na representação do Ministério da Cultura em São Paulo, vai se defrontar com o ex-deputado e radialista paulistano Nello Rodolpho Filho, ícone do malufismo. Haverá diretores ligados ao partido do antigo ministro Roberto Freire, o PPS de Pernambuco, caso de Renata Aparecida Pereira da Silva Araújo. Já a presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Kátia Bogéa, foi indicação pessoal do ex-presidente José Sarney.
Além do espectro político contemplado na estrutura do MinC nos últimos dois anos, sobrará para o novo ministro um miasma administrativo. Ao editar um decreto criando uma nova estrutura para o Ministério da Cultura (Decreto nº 9.411/2018), o ministro Sérgio Sá Leitão “esqueceu” de incluir em seu plano a Cinemateca Brasileira, sediada em São Paulo.
Pouco tempo antes, ele tinha repassado a gestão da instituição para uma organização social, a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp). O problema é que sobraram diversos servidores do MinC trabalhando na Cinemateca que não foram incorporados, não sabem o que será deles, a quem devem se reportar, onde efetivamente trabalham, se fazem parte de algum setor, ou se têm chefe.
Para completar o quadro de confusão, demitiu-se em 29 de junho a coordenadora-geral da Cinemateca, Olga Futemma (funcionária entre 1983 e 2013 e que tinha voltado ao cargo em 2016). Não houve nenhuma nomeação para o seu lugar.
O audiovisual deverá ser uma área minada após a saída do atual governo. Além de ter indicado maioria na direção atual da Agência Nacional de Cinema (Ancine), o escopo eminentemente técnico do setor foi solapado por questões políticas.
Isso culminou com a decisão, pelo ministério, de exigir do cineasta Kleber Mendonça Filho, dos premiados O Som ao Redor e Aquarius, a devolução de 2,2 milhões de reais dos recursos investidos no filme O Som ao Redor, sob a alegação de “irregularidades” na prestação de contas.
É filme de orçamento baixo, considerado um dos melhores dos últimos anos, representante do País em inúmeros festivais, e não há conclusão possível sobre a severidade com que é tratado senão a perseguição. Kleber Mendonça foi declarado inimigo do atual governo a partir do momento em que ele e seu elenco fizeram uma manifestação no Festival de Cannes, em 2016.
A partir dali, houve manobras para evitar a indicação de seus filmes ao Oscar e pente-fino legalista em suas contas. A vendetta é tão evidente que um cineasta tradicionalmente reservado quanto a questões polêmicas, Walter Salles, declarou sobre o imbróglio: “O questionamento que atinge o filme (O Som ao Redor) e seu diretor pode dificilmente ser dissociado de razões políticas. Estrábicas, no meu entender”.
Sombrio, alienado e apartado da classe artística, o Ministério da Cultura de Temer retrocedeu décadas em sua política republicana, mas avançou bastante na prospecção dos velhos problemas. Recentemente, o jornal Folha de S.Paulo noticiou uma autorização milionária para o musical O Fantasma da Ópera (em cartaz desde 8 de agosto no Teatro Renault) captar recursos pela Lei Rouanet, a legislação federal de incentivo por meio da renúncia fiscal.
O Fantasma da Ópera poderia buscar no mercado 28 milhões de reais com a possibilidade de desconto no Imposto de Renda para o investidor. Na verdade, a empresa T4F, produtora do musical, pediu 45 milhões de reais, mas até agora só captou 2 milhões de reais de investidores (quase todos da indústria farmacêutica).
Não há ilegalidade ou irregularidade na pretensão da T4F. O problema é que 45 milhões de reais para um único musical parece um contrassenso num país em que os recursos já são tão centralizados e seletivos. O volume de recursos aprovado para captação de um só musical é maior do que os recursos da Lei Rouanet captados por estados como Bahia (11 milhões de reais), Pernambuco (18 milhões de reais), Ceará (16 milhões de reais) e Pará (6 milhões de reais). O estado de Alagoas inteiro só conseguiu captar 38 mil reais no ano passado.
Em março de 2017, o então ministro Roberto Freire tinha editado uma portaria com mudanças na legislação de incentivo. Entre elas estava a fixação de um teto de 10 milhões de reais por projeto (até o limite de 40 milhões de reais por empresa proponente). Essa portaria durou apenas oito meses. Em novembro, caiu com nova decisão do ministro que o sucedeu, Sá Leitão, que elevou esse teto para 60 milhões de reais.
Essa miríade de problemas deverá se aprofundar com um exame responsável no cartel de “realizações” da atual gestão. No dia 18 de junho, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou ao Ministério da Cultura que todos os projetos na área do audiovisual tenham as prestações de contas submetidas a integral análise, “sem a adoção do expediente de análise por amostragem”, e que sejam examinadas as prestações de contas de todos os projetos audiovisuais destinatários dos recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).
O TCU tomou essa medida para evitar suspender os editais do programa Audiovisual Gera Futuro, de 1,2 bilhão de reais, levado a cabo pela gestão de Sá Leitão.
A decisão do TCU atendeu a pedido da Secretaria de Controle Externo do Estado do Rio de Janeiro (Secex), que teme irregularidades nas prestações de contas e possíveis danos ao Erário. A Secex anteviu os problemas nas potenciais contratações a toque de caixa decorrentes do lançamento de editais pelo MinC, por intermédio da sua Secretaria do Audiovisual (SAV).
A Ancine, que tem 400 servidores em seu quadro efetivo, informou que possui um passivo de 3 mil processos para analisar contas e não pode interromper suas ações regulares para dar conta só disso – recentemente, o atual presidente da Ancine, Christian de Castro, teve de realocar emergencialmente 30 servidores para as áreas de fomento e prestação de contas.
Em meio a esse cenário, o ministro Sá Leitão prossegue em sua cruzada internacionalizante. Tinha passagem marcada para o sábado 18 para sua 12ª viagem internacional em 12 meses de gestão, com destino ao Reino Unido.
Suas viagens já chamam atenção até do governo que integra, não exatamente habituado a fiscalizar seus integrantes. Entre 16 e 20 de julho, o Diário Oficial chegou a anunciar o afastamento do ministro, “sem ônus”, para “tratar de assuntos particulares”.
Curioso que, no mesmo dia, outro despacho autorizava o diretor de Promoção Internacional do MinC, Adam Jayme de Oliveira Muniz, a acompanhar o ministro “nas atividades de divulgação de Niterói como cidade do audiovisual junto aos estúdios e agências de talentos” de Los Angeles. Pouco tempo depois, foi corrigido o anúncio: o ministro se afastaria com “ônus parcial” para as atividades em Hollywood.
Ou seja, mesmo estando a serviço do Estado brasileiro, ele (ou algum anfitrião) arcaria com parte das suas despesas. Das duas, uma: ou a agenda era desimportante ou os negócios particulares do ministro permaneciam no foco da viagem. Talvez essa seja uma viagem da qual o País demore para achar o caminho de retorno.
Primeiro, vai ter de desviar-se do legado de nomeações do atual ocupante do cargo, Sérgio Sá Leitão. O novo ministro vai encontrar em um dos gabinetes, por exemplo, a irmã do ex-governador Sérgio Cabral, Cláudia de Oliveira Cabral (nomeada diretora do Departamento do Sistema Nacional de Cultura em 8 de agosto por empenho pessoal do ministro Moreira Franco).
Na representação do Ministério da Cultura em São Paulo, vai se defrontar com o ex-deputado e radialista paulistano Nello Rodolpho Filho, ícone do malufismo. Haverá diretores ligados ao partido do antigo ministro Roberto Freire, o PPS de Pernambuco, caso de Renata Aparecida Pereira da Silva Araújo. Já a presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Kátia Bogéa, foi indicação pessoal do ex-presidente José Sarney.
Além do espectro político contemplado na estrutura do MinC nos últimos dois anos, sobrará para o novo ministro um miasma administrativo. Ao editar um decreto criando uma nova estrutura para o Ministério da Cultura (Decreto nº 9.411/2018), o ministro Sérgio Sá Leitão “esqueceu” de incluir em seu plano a Cinemateca Brasileira, sediada em São Paulo.
Pouco tempo antes, ele tinha repassado a gestão da instituição para uma organização social, a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp). O problema é que sobraram diversos servidores do MinC trabalhando na Cinemateca que não foram incorporados, não sabem o que será deles, a quem devem se reportar, onde efetivamente trabalham, se fazem parte de algum setor, ou se têm chefe.
Para completar o quadro de confusão, demitiu-se em 29 de junho a coordenadora-geral da Cinemateca, Olga Futemma (funcionária entre 1983 e 2013 e que tinha voltado ao cargo em 2016). Não houve nenhuma nomeação para o seu lugar.
O audiovisual deverá ser uma área minada após a saída do atual governo. Além de ter indicado maioria na direção atual da Agência Nacional de Cinema (Ancine), o escopo eminentemente técnico do setor foi solapado por questões políticas.
Isso culminou com a decisão, pelo ministério, de exigir do cineasta Kleber Mendonça Filho, dos premiados O Som ao Redor e Aquarius, a devolução de 2,2 milhões de reais dos recursos investidos no filme O Som ao Redor, sob a alegação de “irregularidades” na prestação de contas.
É filme de orçamento baixo, considerado um dos melhores dos últimos anos, representante do País em inúmeros festivais, e não há conclusão possível sobre a severidade com que é tratado senão a perseguição. Kleber Mendonça foi declarado inimigo do atual governo a partir do momento em que ele e seu elenco fizeram uma manifestação no Festival de Cannes, em 2016.
A partir dali, houve manobras para evitar a indicação de seus filmes ao Oscar e pente-fino legalista em suas contas. A vendetta é tão evidente que um cineasta tradicionalmente reservado quanto a questões polêmicas, Walter Salles, declarou sobre o imbróglio: “O questionamento que atinge o filme (O Som ao Redor) e seu diretor pode dificilmente ser dissociado de razões políticas. Estrábicas, no meu entender”.
Sombrio, alienado e apartado da classe artística, o Ministério da Cultura de Temer retrocedeu décadas em sua política republicana, mas avançou bastante na prospecção dos velhos problemas. Recentemente, o jornal Folha de S.Paulo noticiou uma autorização milionária para o musical O Fantasma da Ópera (em cartaz desde 8 de agosto no Teatro Renault) captar recursos pela Lei Rouanet, a legislação federal de incentivo por meio da renúncia fiscal.
O Fantasma da Ópera poderia buscar no mercado 28 milhões de reais com a possibilidade de desconto no Imposto de Renda para o investidor. Na verdade, a empresa T4F, produtora do musical, pediu 45 milhões de reais, mas até agora só captou 2 milhões de reais de investidores (quase todos da indústria farmacêutica).
Não há ilegalidade ou irregularidade na pretensão da T4F. O problema é que 45 milhões de reais para um único musical parece um contrassenso num país em que os recursos já são tão centralizados e seletivos. O volume de recursos aprovado para captação de um só musical é maior do que os recursos da Lei Rouanet captados por estados como Bahia (11 milhões de reais), Pernambuco (18 milhões de reais), Ceará (16 milhões de reais) e Pará (6 milhões de reais). O estado de Alagoas inteiro só conseguiu captar 38 mil reais no ano passado.
Em março de 2017, o então ministro Roberto Freire tinha editado uma portaria com mudanças na legislação de incentivo. Entre elas estava a fixação de um teto de 10 milhões de reais por projeto (até o limite de 40 milhões de reais por empresa proponente). Essa portaria durou apenas oito meses. Em novembro, caiu com nova decisão do ministro que o sucedeu, Sá Leitão, que elevou esse teto para 60 milhões de reais.
Essa miríade de problemas deverá se aprofundar com um exame responsável no cartel de “realizações” da atual gestão. No dia 18 de junho, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou ao Ministério da Cultura que todos os projetos na área do audiovisual tenham as prestações de contas submetidas a integral análise, “sem a adoção do expediente de análise por amostragem”, e que sejam examinadas as prestações de contas de todos os projetos audiovisuais destinatários dos recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).
O TCU tomou essa medida para evitar suspender os editais do programa Audiovisual Gera Futuro, de 1,2 bilhão de reais, levado a cabo pela gestão de Sá Leitão.
A decisão do TCU atendeu a pedido da Secretaria de Controle Externo do Estado do Rio de Janeiro (Secex), que teme irregularidades nas prestações de contas e possíveis danos ao Erário. A Secex anteviu os problemas nas potenciais contratações a toque de caixa decorrentes do lançamento de editais pelo MinC, por intermédio da sua Secretaria do Audiovisual (SAV).
A Ancine, que tem 400 servidores em seu quadro efetivo, informou que possui um passivo de 3 mil processos para analisar contas e não pode interromper suas ações regulares para dar conta só disso – recentemente, o atual presidente da Ancine, Christian de Castro, teve de realocar emergencialmente 30 servidores para as áreas de fomento e prestação de contas.
Em meio a esse cenário, o ministro Sá Leitão prossegue em sua cruzada internacionalizante. Tinha passagem marcada para o sábado 18 para sua 12ª viagem internacional em 12 meses de gestão, com destino ao Reino Unido.
Suas viagens já chamam atenção até do governo que integra, não exatamente habituado a fiscalizar seus integrantes. Entre 16 e 20 de julho, o Diário Oficial chegou a anunciar o afastamento do ministro, “sem ônus”, para “tratar de assuntos particulares”.
Curioso que, no mesmo dia, outro despacho autorizava o diretor de Promoção Internacional do MinC, Adam Jayme de Oliveira Muniz, a acompanhar o ministro “nas atividades de divulgação de Niterói como cidade do audiovisual junto aos estúdios e agências de talentos” de Los Angeles. Pouco tempo depois, foi corrigido o anúncio: o ministro se afastaria com “ônus parcial” para as atividades em Hollywood.
Ou seja, mesmo estando a serviço do Estado brasileiro, ele (ou algum anfitrião) arcaria com parte das suas despesas. Das duas, uma: ou a agenda era desimportante ou os negócios particulares do ministro permaneciam no foco da viagem. Talvez essa seja uma viagem da qual o País demore para achar o caminho de retorno.
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