quarta-feira, 3 de outubro de 2018

A construção do 'mito' e o papel da mídia

Por Cynara Menezes, no blog Socialista Morena:

Um estudo feito por pesquisadores da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e publicado em agosto pela Revista da USP mostra como a mídia comercial promoveu o candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro ao dar espaço para seu discurso contra os Direitos Humanos e os LGBTs e em defesa do golpe militar, da ditadura e da tortura a seres humanos. A partir da análise de 536 matérias da Folha de S.Paulo e do Estadão durante os 30 anos de carreira do atual deputado federal do PSL, os pesquisadores chegam à conclusão que Bolsonaro se tornou conhecido, com a ajuda dos jornais, mais pelas agressões verbais do que por qualquer outra razão.

Ao longo dos anos, desde que surgiu pela primeira vez nas páginas da revista Veja, em outubro de 1987, acusado de planejar ataques a bomba a unidades militares para pressionar o governo José Sarney a aumentar o soldo, o capitão foi ficando cada vez mais centrado na defesa da ditadura e nos ataques à esquerda e aos direitos humanos e cada vez menos em melhorar as condições de vida de sua categoria.

Enquanto os ataques aos direitos humanos têm 191 citações, a defesa dos direitos dos militares, por exemplo, aparece em apenas 73. Aliás, anotam os pesquisadores, na maioria das vezes em que aparece na mídia defendendo os direitos dos militares, Bolsonaro está envolvido em atos de subversão da ordem e desrespeito à hierarquia, “comportamentos que costumam ser repudiados dentro da vida militar. Até mesmo ofensas a ministros da Defesa e do Exército foram noticiados.”
O capitão foi ficando cada vez mais centrado em defender a ditadura e atacar direitos humanos e cada vez menos em melhorar condições de vida de sua categoria.

A primeira vez que o Estadão cita Jair Bolsonaro é em outubro de 1987, numa matéria que repercute a da Veja sobre o plano dele e de outro capitão da Escola de Aperfeiçoamento do Exército, de codinome “Fábio”, de colocar bombas em quartéis. Bolsonaro teria admitido o plano em uma reunião onde criticou o ministro do Exército, Leonidas Pires Gonçalves, e disse que as bombas eram “só umas espoletas”.

Na época, o coronel da reserva Geraldo Lesbat Cavagnari, especialista em assuntos militares, afirmou ao Jornal do Brasil que as bombas faziam parte de “um movimento mais amplo, com ramificações”, articulado com a extrema-direita civil e militar para desestabilizar a transição democrática que o país vivia naquele momento. A ditadura chegara ao fim apenas dois anos antes.

Em 1992, já deputado federal, ao organizar uma “Marcha pela Dignidade Militar”, Bolsonaro chamaria o general Carlos Tinoco, ministro do Exército, de “banana, palhaço e covarde”. No mesmo ano, desafiaria novamente o superior hierárquico ao estacionar seu carro na entrada da AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras), impedindo a passagem do veículo oficial. Tinoco teve que mandar guinchar o carro de Bolsonaro. Alguns anos depois, pronuncia a célebre frase contra o presidente da República Fernando Henrique Cardoso: “Para o crime que ele (FHC) está cometendo contra o país, sua pena devia ser o fuzilamento”. Sobre o ministro da Defesa, Geraldo Quintão, disse: “canalha”, “patife”, “imoral”, “vagabundo”.

Quando Bolsonaro se dá conta de que, ao agredir verbalmente autoridades ou personagens da política, ganha imediato destaque midiático, deixa a defesa dos militares em segundo plano e passa a atacar minorias e a defender barbaridades, como a tortura e outros atentados aos direitos humanos.

“Bolsonaro soube usar a mídia. Ele se se aproveitou do modo como os seus discursos contra os direitos humanos, a favor da violência e da ditadura proporcionavam manchetes e, por conseguinte, visibilidade”, diz o coordenador do estudo, o sociólogo Leonardo Nascimento, coordenador do Laboratório de Humanidades Digitais da UFBA. “Por outro lado, Bolsonaro é uma produção social de uma parcela significativamente numerosa da população brasileira que sempre teve uma, digamos, aderência cultural a pautas relacionadas ao uso da violência e ao desrespeito às diferenças.”

As frases pinçadas no estudo dão uma mostra da virulência do candidato do PSL e a forma como este comportamento o catapultou na política nacional com a ajuda da “repercussão” na mídia.

O deputado Jair Bolsonaro (PPB-RJ) chamou o cardeal arcebispo de São Paulo d. Paulo Evaristo Arns, de “desocupado”, “vagabundo” e “megapicareta” durante discurso no plenário da Câmara. Procurado pela Folha, d. Paulo disse que não comentaria as declarações feitas em Brasília pelo deputado Jair Bolsonaro. (Folha de S. Paulo, 20 mar.1998, p.4).
Bolsonaro reagiu: “Vossa excelência tem uma tremenda cara de pau”. Aplaudido pelos funcionários, emendou: “todos os funcionários gostariam de ter um aumento apenas aparente”. Bresser ficou impassível. Respondeu às perguntas de outros dois deputados e ignorou Bolsonaro. Irritado, Bolsonaro o acusou de “sem-vergonha”. Mais uma vez, aplaudido, repetiu cinco vezes a acusação e deixou a sala. (Folha de S. Paulo, 24 mar. 1995, p.4).
“Não estou preocupado com a reação do presidente. Ele foi um traidor mesmo. E repito isso quantas vezes precisar”, foi o complemento de Jair Bolsonaro, acompanhando sua precaução de mandar a Fernando Henrique um fax com as declarações. (Folha de S. Paulo, 13 set. 1996, p.5).

“Sou a favor, sim, de uma ditadura, de um regime de exceção, desde que este Congresso Nacional dê mais um passo rumo ao abismo, que no meu entender está muito próximo. Perguntaria: na atual democracia, temos como resolver os problemas nacionais?”. (Câmara dos Deputados, 1993).

O desrespeito à hierarquia misturado à homofobia rendeu espaço na mídia a Bolsonaro até mesmo quando ele insinuou que os ex-presidentes Lula e FHC são gays, em pleno exercício do cargo.

Na terça-feira, o deputado Jair Bolsonaro (PPB-RJ), capitão da reserva do Exército, colocou a foto de FHC segurando a bandeira gay na porta de seu gabinete, com a frase “Eu já sabia…”. Questionado, Bolsonaro não quis revelar como termina a frase. “O objetivo é tirar sarro”, disse, sem conter a risada. “Não vou combater nem discriminar, mas, se eu ver (sic) dois homens se beijando na rua, vou bater”. (Folha de S. Paulo, 19 mai. 2002, p. C9)
“Todo mundo apenas fala do gay, já reparou? Do homossexual ativo ninguém fala, apenas dos boiolas. Senhor presidente (Severino), temos de começar a desmascarar este governo: se a corrupção existe nesta Casa, quem a pratica, o homossexual ativo, é o presidente Lula”, disse. “Temos de começar um movimento para desbancar o presidente da República. Não queremos homossexual passivo nem ativo neste governo”. (O Estado de S. Paulo, 24 jun. 2005, p. A9).

Em 2010, o deputado também questionaria, do plenário da Câmara, se a presidenta Dilma de homossexual. “Se seu negócio é amor com homossexual, assuma.”

“As matérias sobre insultos e/ou agressões sempre acarretaram uma maior frequência de notícias nos jornais além de, consequentemente, uma maior visibilidade de Jair Bolsonaro em relação aos leitores. Ao longo dos 30 anos de matérias, as agressões verbais compõem uma parte considerável da imagem pública do deputado”, diz o estudo. “As polêmicas desencadeadas por insultos terminam por alimentar a visibilidade, parecendo forjar uma espécie de ‘estilo’ que se tornou uma das marcas mais características da imagem pública do deputado.”

Nos anos mais recentes, o próprio Bolsonaro reconhece que a apologia à tortura e ao uso da violência é uma de suas bandeiras que mais atraem votos. Daí seus numerosos ataques aos sem-terra, aos povos indígenas e às comunidades tradicionais, como os quilombolas.

Bolsonaro defende a atuação da Polícia Militar do Pará no massacre de sem-terra em Eldorado do Carajás, em abril de 96. No episódio morreram 19 sem-terra, classificados pelo deputado como “desocupados que estavam desrespeitando a lei”. Nenhum PM morreu.  (Folha de S. Paulo, 13 mar. 1998, p. 10).

Não por acaso, a pauta contra os direitos humanos começa a ganhar total prioridade na vida pública de Bolsonaro justamente após a posse da ex-guerrilheira Dilma Rousseff na presidência, em 2011. Um dos maiores impulsionadores do deputado é o programa CQC, da TV Bandeirantes, que coloca no ar em abril daquele ano as declarações dele sobre a cantora Preta Gil, onde Bolsonaro afirma que se um filho seu namorasse com uma negra seria “promiscuidade”. Os jornais dedicam páginas e páginas ao assunto, supostamente “repercutindo” suas declarações, durante o mês inteiro.

Novo pico no noticiário acontece quando o governo Dilma lança um material de combate à homofobia nas escolas que Bolsonaro logo apelidou de “kit gay”. A Folha de S.Paulo deu uma matéria de página inteira com o deputado destilando ignorância sobre o material didático. A partir daí, são inúmeros, dizem os pesquisadores, os exemplos dos posicionamentos públicos de Bolsonaro contra os direitos humanos e, em especial, contra os cidadãos LGBTs. Consequentemente, o espaço que ganha na mídia explode, com mais um ápice após a reeleição da petista.


CITAÇÕES DE BOLSONARO NO ESTADÃO E FOLHA AO LONGO DOS ANOS


Outro de seus “destaques” naquele ano de 2014 tampouco foi algum dos 172 projetos que apresentou como parlamentar em 26 anos de Congresso (dos quais só aprovaria dois), mas a famigerada frase dita à deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) de que não a estupraria porque ela “não merece”. Quando, em 1º de abril, o golpe militar completou 50 anos, Bolsonaro colocou uma faixa no plenário em defesa da ditadura, com os dizeres: “Parabéns militares 31 de março de 64. Graças a vocês o Brasil não é Cuba”.

O pior, de acordo com os dados da pesquisa, é que se criou entre a mídia comercial e Bolsonaro um círculo vicioso, em que quanto mais o deputado falava barbaridades, mais ganhava espaço e dava visibilidade à sua agenda. Com isso, alcançou ao setor da população simpático à ditadura e contrário aos direitos humanos, que encontrou seu porta-voz e resolveu sair do armário.

“Parece haver um elo curioso e perverso entre determinadas agendas políticas, declarações polêmicas e a visibilidade midiática do deputado. Ao canalizar os anseios sociais contrários às políticas de direitos humanos (atacando LGBTs, quilombolas, mulheres etc.) e, também, fomentando o extermínio de criminosos, o deputado vai ao encontro de uma parcela significativa da população”, conclui o estudo. “A defesa recorrente e aberta, década após década, da ditadura e do uso da violência, sempre associada a sucessivas vitórias eleitorais e jurídicas, tudo isso parece extrapolar a questão de um singular deputado e vem ao encontro de aspectos estruturais particulares de uma sociedade.”

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