terça-feira, 30 de outubro de 2018

Geopolítica em tempos de incerteza

Por Immanuel Wallerstein, no site Outras Palavras:

A arena mais fluida do sistema-mundo moderno, que se encontra em crise estrutural, é possivelmente a arena geopolítica. Nenhum país chega perto sequer de dominar essa arena. O último poder hegemônico, os Estados Unidos, vem há muito agindo como um gigante desamparado. É capaz de destruir, mas não de controlar a situação. Ele ainda proclama as regras que outros devem supostamente seguir. Mas pode ser - e é - ignorado. Há uma longa lista de países que agem como consideram conveniente, a despeito das pressões de outros países para agir de modo específico. Uma olhada ao redor do globo irá rapidamente confirmar a falta de habilidade dos Estados Unidos em conseguir o que desejam.

Além dos Estados Unidos, os dois países que têm maior poder militar são a Rússia e a China. Antes, eles tinham de mover-se cuidadosamente para evitar repreensões dos Estados Unidos. A retórica da Guerra Fria descrevia dois campos geopolíticos em competição. A realidade era diferente. A retórica simplesmente mascarava a relativa efetividade da hegemonia dos EUA. Agora as coisas estão virtualmente ao contrário. Os Estados Unidos precisam mover-se cuidadosamente em relação à Russia e à China para evitar perder a capacidade de obter cooperação em suas prioridades geopolíticas.

Vejamos a seguir os aliados considerados mais fortes dos Estados Unidos. Podemos polemizar sobre qual deles é ou foi, durante muito tempo, o aliado “mais próximo”. Escolha entre Grã Bretanha e Israel, ou até mesmo, dirão alguns, Arábia Saudita. Ou liste os antigos parceiros confiáveis dos Estados Unidos, tais como Japão e Coreia do Sul, Canadá, Brasil e Alemanha. Chame-os de “números dois”.

Olhe agora o comportamento de todos esses países nos últimos vinte anos. Digo “vinte” porque a nova realidade é anterior ao regime de Donald Trump, embora ele tenha sem dúvida reduzido a capacidade dos Estados Unidos em conseguir o que deseja.

Tome o caso da península coreana. Os Estados Unidos querem que a Coreia do Norte renuncie às armas nucleares. Esse é um objetivo frequentemente repetido por Washington. Era verdade quando Bush e Obama eram presidentes. Continua a ser verdade com Trump. A diferença é a maneira de tentar alcançar esse objetivo. Antes, as ações dos EUA utilizavam um grau de diplomacia juntamente com sanções. Isso refletia o entendimento de que muitas ameaças públicas dos EUA eram contraproducentes. Trump acredita na ação contrária. Vê ameaças públicas como a arma básica de seu arsenal.

Contudo, Trump oscila. Um dia ameaça a Coreia do Norte com devastação. Mas no dia seguinte faz do Japão e da Coreia do Sul seus alvos principais. Trump diz que eles estão dando apoio financeiro insuficiente para os custos gerados pela presença armada contínua dos EUA. Assim, entre as duas posições dos EUA, nem o Japão nem a Coreia do Sul têm a sensação de que serão realmente protegidos.

O Japão e a Coreia do Sul têm lidado com seus medos e incertezas de maneira oposta. O atual regime japonês tenta assegurar garantias dos EUA oferecendo total apoio público às (mutantes) táticas dos EUA. Espera dessa forma agradar suficientemente os Estados Unidos, de modo que a receber as garantias que deseja. O regime sul-coreano atual usa tática completamente diferente. Está muito claramente perseguindo relações diplomáticas mais próximas com a Coréia do Norte, contrariando o desejo dos EUA. Espera dessa forma que o regime norte-coreano responda concordando em não agravar o conflito.

Se alguma dessas abordagens táticas irá estabilizar a posição do EUA, é totalmente incerto. O certo é que os Estados Unidos não estão no comando. Tanto o Japão quanto a Coreia do Sul estão buscando silenciosamente armamentos nucleares para fortalecer sua posição, já que não podem saber o que o dia seguinte trará, em relação aos Estados Unidos. As reações geradas pela fluidez da posição dos EUA enfraquecem o avanço do poder norte-americano.

Tome ainda a situação ainda mais relevante no chamado mundo islâmico, do Magreb à Indonésia, e particularmente na Síria. Cada grande poder na região (ou que se relaciona com a região) tem um primeiro “inimigo” (ou inimigos) diferente. Para a Arábia Saudita e Israel, no momento é o Irã. Para o Irã, são os Estados Unidos. Para o Egito, é a Irmandade Muçulmana. Para a Turquia, os curdos. Para o regime do Iraque, os sunitas. Para a Itália é a Al Qaeda, que está tornando impossível controlar o fluxo de imigrantes. E assim por diante.

E para os Estados Unidos? Quem sabe? Esse é o medo essencial de todos os outros. Os Estados Unidos no momento parecem ter duas prioridades bem diferentes. Num dia, é o consentimento da Coreia do Norte aos imperativos dos EUA. No outro, vai encerrar o envolvimento dos EUA na região do Leste Asiático, ou pelo menos reduzir os gastos financeiros. O resultado é que são cada vez mais ignorados.

Poderíamos traçar cenário semelhante em outras regiões ou sub-regiões do mundo. A lição chave a tirar é que o declínio dos Estados Unidos não foi seguido por outro poder hegemônico. Ele simplesmente desdobrou-se num ziguezague caótico — a fluidez de que falamos.

Este, claro, é o grande perigo. Acidentes nucleares, ou erros, ou desvarios repentinos estão na cabeça de todo o mundo, especialmente na das forças armadas do mundo. Como lidar com esse perigo é o mais significativo debate geopolítico de curto prazo.

* Tradução de Inês Castilho.

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