segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Quando o fascismo posa de rebelde

Por João Elter Borges Miranda, no site Outras Palavras:

Numa bela canção dos anos 1970, chamada “Acorda, amor”, Chico Buarque cantava uma letra na qual milicos invadem o seu sonho e atrapalham o seu sono. “Era a dura, numa muito escuro viatura”. Desesperado, Chico acordava a parceira e contava-lhe o pesadelo. Ao longo da música, percebia-se ser realidade e não sonho.

Lembrei dessa música cheia de metáforas e meias-palavras quando dei de cara com uma passeata pró-Bolsonaro na principal avenida da cidade onde moro. Conhecida como a capital da “reaçolândia”, Ponta Grossa, interior do Paraná, é onde a sua Associação Comercial, Industrial e Empresarial, no início de outubro de 2017, publicou num importante jornal da região uma carta de apoio ao general Antonio de Hamilton Mourão, o qual na época falou na possibilidade de uma intervenção militar no Brasil. Em 2016, a mesma entidade patrocinou uma chuva de ovos sobre um cartaz do deputado federal da cidade que votou contra o impeachment de Dilma Rousseff. A entidade é a mesma que, em 2014, defendeu que beneficiários do Bolsa Família não deveriam ter direito ao voto nas eleições, pois, por conta das suas condições sociais, não teriam “bom discernimento”, o que os impediriam de ter o direito ao voto.

Mais recentemente, houve outra demonstração de reacionarismo: um vereador-pastor ameaçou prender a cantora Pabllo Vittar se ela “inventar de sair nas ruas” da cidade.

Na carreata pró-Bolsonaro que vi hoje (sábado, 22), havia várias coisas bizarras, como um caminhão do exército puxando na carroceria um monte de gente excitada sob o sol quente, entre eles um cover do Vin Diesel berrando e agitando os braços para cima, como se estivesse num ringue. Tinha um outro caminhão carregando na caçamba uma pequena Maria Fumaça, um trem provavelmente do século XIX, que apitava, fazia fumaça, seguido pelo cortejo de buzinas de carrões do ano e carros clássicos, como Landau e Puma, a maioria com bandeiras do Brasil, adesivos do Bolsonaro e motoristas e passageiros excitados; gritavam, buzinavam, um verdadeiro “carnaval do mito”. Aos montes, vi pessoas de classe média alta, com suas camisas da CBF, claro.

São, sem dúvida, a personificação do estereótipo de “reaça”, manifestando-se fervorosamente na avenida.

Pessoas como essas são, a meu ver, o “núcleo duro” do eleitorado do Bolsonaro. É a parcela de eleitores profundamente ideologizada, de extrema-direita, muito barulhenta, guiados pela “defesa da ordem” (baseada na tradição, família, prosperidade e profundamente contra as conquistas das mulheres e de minorias como LGBT+). Essa parcela, contudo, não é a maior.

O grosso dos eleitores do Bolsonaro é composto por trabalhadores que encontraram na figura desse personagem um caminho para escapar das contradições do sistema representativo; estão revoltados com a captura da pólis promovida pelo capital e querem uma saída rápida.

É gente que possui todas as razões para ter pressa, vale apontar. Afinal, hoje as pessoas morrem mais do que antes, perdem seus direitos mais do que antes. Nas periferias urbanas e rurais, aqueles que matam estão matando mais; a escalada da violência é gigantesca. Diante dessa progressiva deterioração da vida, desejam que uma mudança profunda no sistema político-institucional ocorra.

Desde as manifestações de 2013 até aqui fica cada vez mais evidente que o sistema político-institucional está em crise de hegemonia. Em todo canto é possível encontrar alguém que está com a cabeça já pelas tabelas por causa da exacerbação do preconceito classista e da amargura provocada pela consciência emergente de injustiça social. “Ao trabalhador que corre atrás do pão, é humilhação de mais que não cabe neste refrão”, captou muito bem em sua canção o rapper Criolo.

Esse legítimo desejo de reconfiguração da política e de repúdio ao que é entendido genericamente como a “velha política”, ou “realpolitik”, não se manifesta somente no Brasil; é algo que se vê no mundo todo. Desde a crise de 2008 vemos pessoas com políticas opostas e inconciliáveis irem juntas para as ruas, pois permeia todos eles um mal-estar: a revolta contra a maneira de funcionar o sistema político institucional.

Na Europa, o emblema disso foi o movimento chamado de Indignados e, nos Estados Unidos, de Ocupe Wall Street. No Oriente, a Primavera Árabe. De diferentes maneiras e abordagens, os ativistas culpavam os governos e as instituições financeiras pelo crescimento das taxas de desemprego e da desigualdade em países atingidos pela crise de 2008 – e continuam culpando. Junho de 2013, nesse sentido, é parte de uma eclosão muito maior, mundial, de insurreições contra o sistema.

Ou seja, do país das calças bege aos Emirados Árabes Unidos, da terra do Tio Sam à terra do sol nascente, um abismo separa a população e o sistema político. Trata-se, portanto, de um fenômeno geral de esgotamento da legitimidade do sistema político institucional.

Estamos, portanto, vivenciando uma crise de hegemonia desse sistema, e não uma “crise de representação”, como alguns dizem por aí. Não se trata, também, de antipolítica, pois a população ainda entende a política (não a “realpolitik”) como um meio de transformação do país, mesmo que, na prática, isso significa apoiar fascistas.

O povo tem colocado em ação direta contra os governos a potência da revolta social, anticapitalista em instinto, embora não ainda em consciência. Esse fenômeno de crise de hegemonia do sistema político-institucional está, portanto, completamente atrelado e imbricado à própria crise do sistema capitalista. É por isso que se trata de um fenômeno global, porque todo o planeta foi englobado (ou, melhor dizendo, engolido) pelo sistema capitalista.

Crise político-institucional e crise capitalista são, assim, faces diferentes da mesma moeda, imbricadas. Dentre outras razões, isso acontece porque o Estado, enquanto instituição-mor da política representativa, está inteiramente atrelado ao Capital, na condição de “funcionário exemplar” deste.

A grande mídia compartilha ad nauseam inverdades de que o regime ultraliberal, ou, como esses litores da burguersia gostam de chamar, o “neoliberalismo”, trata-se de um arcabouço programático e teórico político-econômico que se formou a partir do ressurgimento e ressignificação das ideias derivadas do capitalismo laissez-faire, expressão símbolo do liberalismo, segundo o qual o mercado deve funcionar livremente sob a égide da mão-invisível. Assim, na “era neoliberal”, o Estado teria um papel ínfimo. Ora, isso não passa de conversa para boi dormir, já que no ultraliberalismo o Estado tem sim papel primordial de garantir que os interesses do capital estejam sempre em primeiro lugar. O capital faz isso através de lobbies que realizam por todos os meios possíveis, incluindo a corrupção, a reprivatização não-oficial do aparelho estatal.

Diante das constantes crises econômicas cíclicas, tão rápidas e profundas que até parece estarmos vivendo uma única crise desde 2008, as grandes corporações necessitam intensificar as relações de exploração e opressão para manter as suas margens de lucro, usando para isso obviamente o aparelho estatal, através da retirada de direitos, repressão a manifestações, dentre outros meios.

A população, obviamente, resiste a esses retrocessos, como vimos na série de manifestações na última década. O capital, diante disso, precisa reorganizar o bloco no poder de maneira brutal, de forma que seja aplacado o avanço da organização dos “de baixo”. Essa reorganização pode significar rupturas institucionais, como golpes; e/ou também através da eleição, para o cargo mais alto do Estado, de um personagem fascista que defenderá os pressupostos econômicos ultraliberais até o fim.

Trump nos Estados Unidos, Bolsonaro no Brasil, Le Pen na França, o Partido (de extrema-direita) Nacional Britânico (BNP), o partido (também de extrema-direita) Alternativa para Alemanha (AfD), são alguns exemplos de expressões de anti-sistema conservadores. São grupos que conseguem capilarizar o sentimento anti-sistema político da população, mas que, na prática, defendem o mesmo sistema opressor contra o qual se manifestam, na retórica. Combatem em seus discursos os corruptos e corruptores, mas, na prática, não só defendem esses mesmos corruptos e corruptores, como também são parte do grupo. Trazem consigo, entre outras coisas, o componente carismático – phonie, como todo fascismo.

Tendo em vista que o fascismo é o capital na sua expressão mais descarada, o núcleo duro do eleitorado do Bolsonaro, que sai às ruas com estampa do rosto dele, chamando-o de “mito” e se posicionando, no espectro ideológico, na extrema-direita, é consequentemente uma crescente, ativa e barulhenta base de massa de defesa das pautas do grande capital. Mesmo não sendo controladas pela burguesia, as manifestações desse núcleo duro servem, ao defender a eleição do Bolsonaro, como mais um instrumento de legitimação da ofensiva ultraliberal.

Bolsonaro, um verdadeiro oportunista, aproveita-se muito bem disso. “Vou mudar tudo isso aí”, diz ele sempre. Isso é recorrente no discurso do Bolsonaro porque é pela perspectiva da ruptura que os movimentos fascistas contemporâneos organizam-se, como afirmou o historiador Lucas Patschiki, em sua dissertação de mestrado intitulada “Os litores da nossa burguesia: o Mídia Sem Máscara em Atuação Partidária (2002-2011)”.

Jovem e brilhante professor/pesquisador, Patschiki aponta que o fascismo nasce junto com o imperialismo e que essa onda traz consigo a prerrogativa de aceitar os pressupostos econômicos ultraliberais. O objetivo principal, além de implementar a série de contrarreformas que retiram direitos, rifando os avanços históricos arduamente conquistados pela classe trabalhadora, é a quebra completa da organização dessa mesma classe nos limites estatais-nacionais. Em muitos momentos de crise econômica do sistema capitalista, como a intensa e profunda que vivemos na atualidade, o fascismo se apresenta, não raro pela ruptura institucional, como o capital na sua forma mais selvagem para não deixar que nada nem ninguém atrapalhe ou interrompa o processo de implementação do programa ultraliberal. O Brasil, enquanto um país que se insere na lógica capitalista na condição de capitalismo dependente, não foge disso, evidentemente.

Nesse sentido, um e terrível governo Bolsonaro-Mourão significaria não só a continuação do programa de austeridade e retrocesso visto no governo Temer, como também a intensificação e radicalização do regresso. Vivenciaríamos no país a maior perseguição e violência contra as mulheres, minorias (indígenas, quilombolas, etc), dentre outros; além disso, um possível governo Bolsonaro-Mourão, que provavelmente teria como ministro da Fazenda o economista Paulo Guedes, nome conhecido por seus posicionamentos ultraliberais, diminuiria drasticamente a participação dos salários na renda nacional, restringiria os investimentos sociais, promoveria a concentração de capital e renda entre poucos grupos e reduziria a qualidade de vida e segurança do trabalhador.

Portanto, Bolsonaro é alguém que se coloca como subversivo ao sistema, mas que na realidade é lacaio, uma marionete, desse mesmo sistema; paradoxalmente, trata-se de um subversivo sem subversão, um anti-sistema conservador. Como mostrou matéria recente publicada no jornal O Globo, o partido de Bolsonaro foi o mais “fiel” a Temer. Os deputados do PSL votaram com o governo mais até do que o próprio MDB do presidente.

A eleição dele significaria, assim, um decreto de morte para muita gente. E tudo indica que nas próximas semanas as cruzadas dos “profissionais (e amadores) da violência” se tornarão cada vez mais frequentes nas ruas de bytes e de asfalto Brasil afora – em novas e ferozes versões. Com a chegada do dia das votações, a temperatura da campanha sobe intensamente e a liberdade ideológica e de expressão determinada pela Constituição está sendo ainda mais solapada na prática do dia a dia.

Cabe à esquerda denunciar esses falsos subversivos e apresentar alternativas viáveis e plausíveis para a crise. É um trabalho árduo, que também significará, no Brasil, a defesa do resultado da eleição. Quero dizer, nessa época de semi-legalidade instaurada pelo golpe de 2016 em que estamos afundados, corremos o risco das eleições serem desrespeitadas outra vez e um novo golpe, de caráter militar, ser perpetrado. Vimos isso em 2015 quando, provocadas pela grande mídia e estimulada pelos psdbistas, a alta classe média seguiu para as ruas, com o objetivo de se manifestar contra o “erro” das urnas de 2014.

Por isso, quem subir a rampa do Planalto for um candidato de centro-esquerda, teremos duas tarefas primordiais: defender esse novo governo de uma intervenção militar e lutar para que as nossas pautas sejam atendidas, como a revogação das contrarreformas promovidas pelo governo Temer.

Afinal, o grande capital não golpeou o Estado brasileiro em 2016 para agora, somente dois anos depois, permitir que um programa político-econômico progressista seja implementado. Reforço isso porque muitos creem que, com a eleição de um candidato de centro-esquerda, a partir de 2019 vivenciaríamos no país um novo movimento de avanços sociais. Ledo engano. O golpismo, que não começou com a queda de Dilma, não terminará tão cedo, infelizmente.

Não vejo outro meio para fortalecimento da luta contra isso que não passe pela unidade. Unidos encontraremos respostas para transcendermos as aporias de nossa realidade atual; teremos mais forças para lutar contra a corrupção que permeia partidos, ideologias, poderes, instituições; teremos força para lutar contra o fascismo; e vislumbraremos mundos novos e infinitas possibilidades de renovação do sistema político e fortalecimento da democracia.

Só assim, com a sociedade participando do processo político, unida, pautando-se pelo diálogo camarada, que “Acorda, amor” não se tornará realidade, com fascistas comandando o país.

* João Elter Borges Miranda é professor de história, trabalha na rede básica de ensino paranaense e milita na Frente Povo Sem Medo, Frente Ampla Antifascista e Intersindical.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente: