Por Valter Pomar, em seu blog:
A Carta Capital publicou, no dia 7 de novembro de 2018, uma entrevista com Ruy Fasto.
A entrevista foi feita por Marina Gama Cubas e intitula-se “Burocracia do PT vive do mito Lula. Se houver sucessor, ela morre”.
Carta Capital informa que esta entrevista faz parte de uma série, publicada entre os dias 30 de outubro e 7 de novembro, para refletir sobre “a esquerda atual e suas perspectivas para o futuro”.
Fausto considera que a vitória de Jair Bolsonaro é “um verdadeiro desastre nacional”; “uma extrema-direita muito radical e extremamente perigosa chegou ao poder no Brasil”; “57 milhões e meio de brasileiros votaram num candidato que elogia não só a ditadura militar, mas a ala extremista dessa ditadura, aquela que se opunha a qualquer abertura mais o resto: racismo, homofobia etc”.
Fausto considera que “os fatores fundamentais” que tornaram isso “possível” foram: “a utilização do tema da corrupção, o problema da violência, a orquestração desonesta em torno de temas “de sociedade", mais o uso sistemático e ilegal de certos meios ultramodernos de comunicação. Em quase tudo isto, a responsabilidade da direção do PT foi imensa”.
Não é genial?
Façamos uma lista incompleta dos que têm “imensa responsabilidade” nos “fatores fundamentais” que tornaram Bolsonaro “possível”:
Os eleitores de Bolsonaro; os que votaram branco, nulo e se abstiveram; os que se recusaram a votar e/ou a fazer campanha pelo candidato alternativo.
Os que se recusaram a punir Bolsonaro pelos crimes eleitorais e pelos crimes cometidos antes da eleição.
Os que financiaram e apoiaram a campanha de Bolsonaro.
Os que impediram Lula de ser candidato, mesmo sabendo que Bolsonaro era o segundo colocado.
Os que estimularam a extrema direita a sair às ruas, para derrubar a presidenta Dilma.
Os que legitimaram o discurso da extrema direita, nas páginas nobres de meios de comunicação tão nobres quanto.
Os que vem, desde 2005, demonizando o PT, o petismo e a esquerda.
Qual a “imensa responsabilidade” do PT em cada um destes fatores??
A opção por culpabilizar o PT por um “desastre nacional” é, no fundo, muito cômoda para ocultar a responsabilidade dos demais, inclusive do eleitorado e de próceres tucanos de que Ruy Fausto é dileto amigo.
Não é apenas cômoda; chega a ser uma opção cínica.
Pois só a palavra cinismo pode descrever a seguinte frase: “a enorme desigualdade - tema fundamental que acabou sendo mais ou menos esquecido pela esquerda, que desemboca frequentemente numa posição radical, que pode ser de esquerda, mas em certas condições - no nosso caso: vazio político, desgaste de todos os partidos, violência - pode ser de extrema direita. Foi o que aconteceu”.
Pobre esquerda brasileira.
Atacada por ameaçar a propriedade privada, atacada por esquecer da “enorme desigualdade”, atacada por Bolsonaro, culpada por ter “imensa responsabilidade” na vitória de Bolsonaro.
Claro, existe um importante grão de verdade na afirmação de Ruy Fausto: a maneira como a esquerda, especialmente o PT, tentou enfrentar o problema da desigualdade, não foi radical o suficiente para superar o problema, mas foi radical o suficiente para causar uma reação dos defensores da desigualdade social.
Reação que contou com apoio das elites, mas também de parcela dos beneficiários das políticas moderadas de combate à desigualdade.
Se a esquerda ou o PT tem alguma “imensa responsabilidade” é nisto: ter perdido o apoio de parte dos setores populares.
Reconquistar este apoio é a tarefa central do período histórico aberto em 28 de outubro de 2018.
Ruy Fausto considera que “a reorganização da esquerda já se impunha antes do 28 de outubro e agora se impõe com muito maior urgência. É preciso reconstruir o discurso da esquerda, não só na forma, mas também no seu conteúdo”.
A divergência, obviamente, está no sentido geral desta reorganização.
Ruy Fausto acha que os “os pontos principais dessa reconstrução” são “a crítica do populismo-patrimonialismo e a crítica da herança mal liquidada dos totalitarismos de esquerda”.
Por trás da linguagem empolada, está o mesmo discurso que levou parte da antiga esquerda brasileira, inclusive parte do velho Partido Comunista Brasileiro, a apostar na criação do Partido da Social Democracia Brasileira e na criação do Partido Popular Socialista, no final dos anos 1980 e durante os anos 1990.
Dito de outro jeito: o que Ruy Fausto propõe para a “reorganização da esquerda” pós 28 de outubro é um cardápio velho e conhecido, cardápio que produziu uma centro-esquerda social-liberal que –diferente do PT – foi varrida nas eleições de 2018.
Ruy Fausto destaca o tema da “corrupção”.
Ele reconhece que este tema não é “o único e talvez nem o mais importante - o problema da desigualdade o supera sob muitos aspectos. Mas sem repensar o tema da corrupção, ao contrário do que pretendem certas sociologias fáceis, a esquerda não tem futuro”.
Evidente que o tema da corrupção tem centralidade, mas é preciso explicar que centralidade e qual corrupção.
O tema da corrupção fez parte da pauta da direita em 1954, em 1964 e novamente agora.
Fausto considera este “detalhe” em sua abordagem?
Por outro lado, a corrupção (desviar dinheiro público para finalidades privadas) é parte essencial da dinâmica capitalista há séculos, se acentuando nos períodos de hegemonia do capital financeiro, que extrai a maior parte de seus ganhos da tributação direta e indireta da sociedade.
Desta corrupção quer Fausto falar?
Ruy Fausto também destaca a “exigência de uma recusa radical de todo autoritarismo, seja ele de direita ou de esquerda. A esquerda brasileira, como parte da esquerda mundial, continua confusa em matéria de liberdade e de democracia. Há muito autoritarismo difuso, que nos atrapalha”.
Novamente, trata-se de uma afirmação cínica.
A esquerda brasileira, especialmente o PT, foi vítima de um golpe parlamentar, midiático e judicial. Um impeachment sem crime de responsabilidade. A condenação, a prisão e a interdição de seu principal líder. Uma campanha eleitoral baseada na mentira e na violência.
E vem Fausto falar em “autoritarismo difuso” na/da esquerda???
Na verdade, quem está “confuso” em matéria de “liberdade e de democracia” é quem imaginava que seria possível usar a extrema direita para tirar o PT, depois seria possível eleger um tucano de punhos de renda para presidir o país.
Estes estão “confusos”.
O verdadeiro problema da esquerda brasileira neste terreno não é a confusão, mas a timidez com que enfrentou as tarefas democráticas, dentre as quais punir os crimes e criminosos da ditadura militar, destruir a ditadura que o oligopólio empresarial da mídia mantém por sobre a comunicação de massas, colocar as forças armadas sob efetivo controle civil, desmilitarizar as polícias, quebrar o domínio do dinheiro sobre os processos eleitorais, ter controle social sobre o sistema judiciário etc etc.
Mas todas as vezes que a esquerda brasileira insinuou fazer isso, “gente de bem” berrava: autoritarismo!!!
Assim, para enfrentar as discussões propostas por Ruy Fausto, é preciso, como ele mesmo diz, “dar o nome aos bois”.
Pois falas genéricas não esclarecem o que de fato esteve, está e estará em jogo.
Dar nome aos bois é algo que Fausto busca fazer, quando responde a pergunta sobre “os principais equívocos do PT e de Fernando Haddad na eleição”.
Segundo Fausto, “a responsabilidade da direção do PT em tudo isso foi enorme. O lançamento da candidatura Lula foi um erro, como declarei sucessivas vezes em entrevistas e artigos. Não quero dizer com isso que não se devesse defender Lula, mas isso não implicava na necessidade de lançá-lo como candidato. Lula tinha e, em parte ainda tem, grande prestígio, mas já teve dois mandatos como presidente”.
Que eu saiba, Fausto não é nem nunca foi filiado ao PT.
Sendo assim, o uso da palavra “erro” é no mínimo curioso.
Lançar Lula teria sido um erro do ponto de vista de quem?
Do ponto de vista de Lula? Do ponto de vista do PT? Do ponto de vista dos concorrentes e adversários do PT?
Como Fausto, há inúmeras pessoas que opinam sobre “os erros” do PT, sem deixar claro de qual lugar falam.
E como não existe Olimpo neutro a partir do qual se possa julgar os erros dos outros, a verdade é que estas pessoas consideram que foi um erro porque resultou na derrota da opção que elas achavam a mais adequada.
Opção que, via de regra, não envolvia qualquer protagonismo do PT.
Ruy Fausto diz que Lula “candidato era o símbolo da continuidade, e a bandeira da continuidade era, no caso, perigosa. Além do que, talvez a coisa mais importante: se o prestígio de Lula era grande, a rejeição do nome dele era tão grande quanto…”.
Novamente, o cinismo se faz presente.
Lula liderou todas as pesquisas de opinião, apesar de perseguido, apesar de condenado, apesar de preso.
Todas as pesquisas indicavam que ele seria eleito presidente, no primeiro ou no segundo turno, derrotando a todos os concorrentes, Bolsonaro inclusive.
Foi por isso, aliás, que o TSE o impediu de ser candidato.
Portanto, não é verdade que a direção do PT simplesmente “esqueceu“ esse “elemento fundamental”.
A verdade é que a direção do PT tentou até o limite garantir a candidatura de Lula.
Entre outros motivos, porque – para usar os termos de Fausto – não estamos “confusos” em termos de liberdade e democracia.
Diferente dos que acham normal a interdição de Lula.
Ruy Fausto acrescenta o “fato de que, desde o início, se sabia que a candidatura de Lula dificilmente obteria registro legal”.
Esta frase envolve um tema de importância capital: o “fato” de que “dificilmente” vencerá, é argumento para alguém de esquerda desista de batalhas essenciais?
Claro que havia os iludidos, mas uma parte importante do PT sabia que dificilmente Lula obteria registro legal.
Mas a luta pelo registro era parte importante da batalha democrática; e, também, era parte importante da acumulação de forças necessária para o caso do PT ser obrigado a substituir Lula por outra candidatura.
Pois quem quer que viesse a substituir Lula, só teria chance de ir ao segundo turno e vencer, se recebesse parte importante dos votos de quem desejava votar em Lula.
Esta tese foi comprovada nas eleições de 2018.
Portanto, Ruy Fausto está certo quando diz que a “ênfase em sua candidatura não é inocente”; mas está absolutamente equivocado quando diz que “a burocracia do partido vive do mito Lula. Ela sabe que se ele tiver um sucessor, principalmente se for um bom sucessor, ela está morta”.
Primeiro, porque Lula não é um mito. O candidato chamado de “mito” nesta campanha é outro.
Lula é a principal liderança viva da esquerda brasileira, tendo conquistado esta condição nas lutas políticas e sociais dos anos 1970, 1980, 1990 e durante seus dois governos.
Por isso, ilude-se quem acha que Lula terá um “sucessor”.
Lula não sucedeu Prestes, não sucedeu Brizola, não sucedeu Vargas. Lula é produto de circunstâncias históricas que não se repetirão. Pode ser que outras circunstâncias históricas gerem outras lideranças que cumpram papel similar ao que Lula cumpre hoje. Mas não será um “sucessor”.
Aliás, o uso da palavra “sucessor” , assim como da palavra “mito”, tem um significado implícito muito negativo, motivo adicional para serem rejeitados, ao menos para quem defende o papel positivo de Lula para as lutas da classe trabalhadora.
Isto posto, será verdade que “a burocracia do partido vive do mito Lula”?
Será verdade que esta “burocracia” sabe “que se ele tiver um sucessor, principalmente se for um bom sucessor, ela está morta”.
Fausto não é do PT e não sei o quanto ele conhece da vida interna do PT. A partir do meu ponto de vista, acho que há camadas de má interpretação na afirmação dele.
O PT tem dezenas de milhares de dirigentes, parlamentares, governantes e intelectuais, que se alinham em torno de diferentes posições programáticas, táticas e estratégicas.
É um absurdo enquadrar esta diversidade numa única palavra (“burocracia”); é outro absurdo achar que a relação deste mundo de gente com Lula tem um único propósito (a auto-sobrevivência da burocracia); e é bizarro acreditar que seria isto que impediria o surgimento de um “sucessor” para Lula (desconhecendo a impossibilidade de fazê-lo).
Além de um problema de interpretação, a análise de Fausto incorre em desinformação pura e simples.
Ele diz que “a candidatura Haddad, até onde sei, foi apoiada essencialmente por Lula. A grande maioria do partido não o queria como candidato. Quando, afinal, não houve alternativa, e Lula se pronunciou pela candidatura do professor, a direção do partido adiou, o quanto deu, a troca de candidato. Gleisi Hoffmann humilhou Haddad o quanto pode”.
Os fatos são outros. A grande maioria do Partido queria Lula como candidato. No dia 5 de agosto, Lula indicou e a direção do Partido aprovou, quase que por unanimidade, o nome de Haddad para ser candidato a vice de Lula. E no dia 11 de setembro, Lula e a direção do Partido substituíram Lula por Haddad. Não houve nenhum tipo de “adiamento” contra Haddad, o que houve foi uma tentativa “até o limite” de fazer de Lula o candidato.
Já a afirmação segundo a qual “Gleisi Hoffmann humilhou Haddad o quanto pode” não entra na categoria desinformação, entra na categoria “campanha orquestrada e mentirosa contra a presidenta do PT”.
Campanha motivada pelo fato dela ter sido a principal expoente de todos e todas que defendiam manter a candidatura de Lula “até o limite”.
Pois, como lembra Ruy Fausto, havia quem defendesse “a possibilidade de lançar a chapa Ciro/Haddad, desejada pelos dois, mas vetada pela direção do partido, por Lula inclusive”.
Ruy não é do PT, mas poderia ao menos ser gentil com os fatos: não foi a direção, mas a imensa maioria da base e do eleitorado do Partido quem “vetava” uma candidatura Ciro/Haddad.
Um “veto” por diversas razões, algumas das quais ficaram claras no segundo turno.
Fausto afirma que “lançado pelo partido, Haddad foi literalmente amarrado. O mote "Haddad = Lula" foi uma faca de dois gumes, um verdadeiro bumerangue, que levou votos a Haddad por parte dos admiradores de Lula, mas tirou os de todos aqueles que o rejeitavam”.
Não é preciso ser filósofo, para perceber que este raciocínio move-se num mundo paralelo. Pois no mundo real, foi graças ao voto dos “admiradores de Lula” que Haddad conseguiu ir ao segundo turno e quase vencer as eleições.
O problema todo é que Ruy Fausto acha que Bolsonaro é um desastre, mas acha que o PT é o grande responsável pelo desastre, e por isso sua grande preocupação é criticar o PT.
Assim, Haddad é um bom candidato, apesar do PT. Acertou, mas teria acertado mais se o PT tivesse deixado. E assim por diante. Até que, por deslizamento conceitual, ele passa a tratar do futuro do Haddad, como se o PT (e Lula) fossem detalhes incômodos.
Notem as frases: “Haddad era um candidato muito bom. Muito melhor que a direção do PT. Claramente anticorrupção. Claramente democrático. O partido o transformou num "poste", o que ajudou muito o adversário. Haddad virou um candidato “fraco“, coisa grave na situação atual. As ambiguidades de dirigentes do partido sobre esses três pontos serviram bem à oposição”.
Podemos discutir longamente sobre os aspectos positivos e negativos da pessoa física de Haddad como candidato. Mas é impossível explicar a performance eleitoral de Haddad, se desconsiderarmos (ou considerarmos como algo negativo) o papel de Lula e do PT.
Ruy Fausto afirma que “a direção do PT chegou à irresponsabilidade de poupar Bolsonaro (o que nem Ciro, nem Boulos fizeram, e nem mesmo Alckmin), porque muito “habilmente“ se convenceu de que Bolsonaro seria o adversário mais fraco no segundo turno. Mesmo que houvesse supostas razões para acreditar nisso, um partido político de esquerda responsável tem de pesar muito bem o que representa um adversário em termos de perigo para a democracia e, portanto, também para a sua própria sobrevivência”.
Esta questão acima envolve uma discussão muito interessante, e muito necessária, até porque muita gente acredita nesta versão torta.
Quem “poupou” Bolsonaro? O PT ou quem tirou Lula da disputa, quando Bolsonaro estava em segundo lugar?
Quem enfrentou Bolsonaro na disputa pelos votos populares? Foi Ciro, foi Alckmin? Ou terá sido, de fato, a candidatura do PT?
Depois que fomos forçados a substituir Lula por Haddad, o que contribuía mais para enfrentar Bolsonaro era, exatamente, fazer Haddad herdar a maior parte dos votos de Lula. Isto era a maneira prática, não de laboratório, de enfrentar Bolsonaro.
E quem achava que era mais fácil enfrentar Bolsonaro no segundo turno? O PT ou aquelas candidaturas (como Alckmin) que usaram grande parte do seu tempo para atacar o PT? Ou que tratavam Bolsonaro e o PT como se fossem igualmente negativos?
Ademais, vamos lembrar que o PT foi impedido de participar de vários debates presidenciais do primeiro turno.
Enfim, a narrativa adotada por Ruy Fausto é engenharia de obra mal-feita.
São os golpistas que devem responder por Bolsonaro, não o PT.
Isto não quer dizer que o PT não deva reconhecer pelo menos dois erros importantes:
a) especialmente depois da facada, quando ficou claro a consolidação do eleitorado de Bolsonaro e que ele iria para o segundo turno, deveríamos ter iniciado imediatamente uma dura campanha de desconstrução de Bolsonaro;
b) não bastava carimbar Bolsonaro como fascista, racista, homofóbico, misógino, antidemocrático, golpista. Era preciso enfatizar o caráter ultraliberal, antipopular, antissocial, anti-classe trabalhadora de suas propostas.
Curiosa mas compreensivelmente, Ruy Fausto é duro contra o PT, mas “passa o pano” em Ciro.
O cidadão, que não participou da campanha no segundo turno, que não declarou voto explicito em Haddad, que continua atacando mais o PT do que Bolsonaro, recebe de Fausto a seguinte reprimenda: “teve bom papel na campanha, mas deu uma “mancada” final tomando uma posição neutra – o PT tem muita culpa nessa história”.
Ou seja, mesmo a “mancada” de Ciro é “muito culpa” do PT. Tudo é culpa do PT. Sempre.
A questão é: será possível “resistir” e derrotar Bolsonaro sem o PT? Essa questão banal parece estar muito além da filosofia de Fausto.
A Carta Capital publicou, no dia 7 de novembro de 2018, uma entrevista com Ruy Fasto.
A entrevista foi feita por Marina Gama Cubas e intitula-se “Burocracia do PT vive do mito Lula. Se houver sucessor, ela morre”.
Carta Capital informa que esta entrevista faz parte de uma série, publicada entre os dias 30 de outubro e 7 de novembro, para refletir sobre “a esquerda atual e suas perspectivas para o futuro”.
Fausto considera que a vitória de Jair Bolsonaro é “um verdadeiro desastre nacional”; “uma extrema-direita muito radical e extremamente perigosa chegou ao poder no Brasil”; “57 milhões e meio de brasileiros votaram num candidato que elogia não só a ditadura militar, mas a ala extremista dessa ditadura, aquela que se opunha a qualquer abertura mais o resto: racismo, homofobia etc”.
Fausto considera que “os fatores fundamentais” que tornaram isso “possível” foram: “a utilização do tema da corrupção, o problema da violência, a orquestração desonesta em torno de temas “de sociedade", mais o uso sistemático e ilegal de certos meios ultramodernos de comunicação. Em quase tudo isto, a responsabilidade da direção do PT foi imensa”.
Não é genial?
Façamos uma lista incompleta dos que têm “imensa responsabilidade” nos “fatores fundamentais” que tornaram Bolsonaro “possível”:
Os eleitores de Bolsonaro; os que votaram branco, nulo e se abstiveram; os que se recusaram a votar e/ou a fazer campanha pelo candidato alternativo.
Os que se recusaram a punir Bolsonaro pelos crimes eleitorais e pelos crimes cometidos antes da eleição.
Os que financiaram e apoiaram a campanha de Bolsonaro.
Os que impediram Lula de ser candidato, mesmo sabendo que Bolsonaro era o segundo colocado.
Os que estimularam a extrema direita a sair às ruas, para derrubar a presidenta Dilma.
Os que legitimaram o discurso da extrema direita, nas páginas nobres de meios de comunicação tão nobres quanto.
Os que vem, desde 2005, demonizando o PT, o petismo e a esquerda.
Qual a “imensa responsabilidade” do PT em cada um destes fatores??
A opção por culpabilizar o PT por um “desastre nacional” é, no fundo, muito cômoda para ocultar a responsabilidade dos demais, inclusive do eleitorado e de próceres tucanos de que Ruy Fausto é dileto amigo.
Não é apenas cômoda; chega a ser uma opção cínica.
Pois só a palavra cinismo pode descrever a seguinte frase: “a enorme desigualdade - tema fundamental que acabou sendo mais ou menos esquecido pela esquerda, que desemboca frequentemente numa posição radical, que pode ser de esquerda, mas em certas condições - no nosso caso: vazio político, desgaste de todos os partidos, violência - pode ser de extrema direita. Foi o que aconteceu”.
Pobre esquerda brasileira.
Atacada por ameaçar a propriedade privada, atacada por esquecer da “enorme desigualdade”, atacada por Bolsonaro, culpada por ter “imensa responsabilidade” na vitória de Bolsonaro.
Claro, existe um importante grão de verdade na afirmação de Ruy Fausto: a maneira como a esquerda, especialmente o PT, tentou enfrentar o problema da desigualdade, não foi radical o suficiente para superar o problema, mas foi radical o suficiente para causar uma reação dos defensores da desigualdade social.
Reação que contou com apoio das elites, mas também de parcela dos beneficiários das políticas moderadas de combate à desigualdade.
Se a esquerda ou o PT tem alguma “imensa responsabilidade” é nisto: ter perdido o apoio de parte dos setores populares.
Reconquistar este apoio é a tarefa central do período histórico aberto em 28 de outubro de 2018.
Ruy Fausto considera que “a reorganização da esquerda já se impunha antes do 28 de outubro e agora se impõe com muito maior urgência. É preciso reconstruir o discurso da esquerda, não só na forma, mas também no seu conteúdo”.
A divergência, obviamente, está no sentido geral desta reorganização.
Ruy Fausto acha que os “os pontos principais dessa reconstrução” são “a crítica do populismo-patrimonialismo e a crítica da herança mal liquidada dos totalitarismos de esquerda”.
Por trás da linguagem empolada, está o mesmo discurso que levou parte da antiga esquerda brasileira, inclusive parte do velho Partido Comunista Brasileiro, a apostar na criação do Partido da Social Democracia Brasileira e na criação do Partido Popular Socialista, no final dos anos 1980 e durante os anos 1990.
Dito de outro jeito: o que Ruy Fausto propõe para a “reorganização da esquerda” pós 28 de outubro é um cardápio velho e conhecido, cardápio que produziu uma centro-esquerda social-liberal que –diferente do PT – foi varrida nas eleições de 2018.
Ruy Fausto destaca o tema da “corrupção”.
Ele reconhece que este tema não é “o único e talvez nem o mais importante - o problema da desigualdade o supera sob muitos aspectos. Mas sem repensar o tema da corrupção, ao contrário do que pretendem certas sociologias fáceis, a esquerda não tem futuro”.
Evidente que o tema da corrupção tem centralidade, mas é preciso explicar que centralidade e qual corrupção.
O tema da corrupção fez parte da pauta da direita em 1954, em 1964 e novamente agora.
Fausto considera este “detalhe” em sua abordagem?
Por outro lado, a corrupção (desviar dinheiro público para finalidades privadas) é parte essencial da dinâmica capitalista há séculos, se acentuando nos períodos de hegemonia do capital financeiro, que extrai a maior parte de seus ganhos da tributação direta e indireta da sociedade.
Desta corrupção quer Fausto falar?
Ruy Fausto também destaca a “exigência de uma recusa radical de todo autoritarismo, seja ele de direita ou de esquerda. A esquerda brasileira, como parte da esquerda mundial, continua confusa em matéria de liberdade e de democracia. Há muito autoritarismo difuso, que nos atrapalha”.
Novamente, trata-se de uma afirmação cínica.
A esquerda brasileira, especialmente o PT, foi vítima de um golpe parlamentar, midiático e judicial. Um impeachment sem crime de responsabilidade. A condenação, a prisão e a interdição de seu principal líder. Uma campanha eleitoral baseada na mentira e na violência.
E vem Fausto falar em “autoritarismo difuso” na/da esquerda???
Na verdade, quem está “confuso” em matéria de “liberdade e de democracia” é quem imaginava que seria possível usar a extrema direita para tirar o PT, depois seria possível eleger um tucano de punhos de renda para presidir o país.
Estes estão “confusos”.
O verdadeiro problema da esquerda brasileira neste terreno não é a confusão, mas a timidez com que enfrentou as tarefas democráticas, dentre as quais punir os crimes e criminosos da ditadura militar, destruir a ditadura que o oligopólio empresarial da mídia mantém por sobre a comunicação de massas, colocar as forças armadas sob efetivo controle civil, desmilitarizar as polícias, quebrar o domínio do dinheiro sobre os processos eleitorais, ter controle social sobre o sistema judiciário etc etc.
Mas todas as vezes que a esquerda brasileira insinuou fazer isso, “gente de bem” berrava: autoritarismo!!!
Assim, para enfrentar as discussões propostas por Ruy Fausto, é preciso, como ele mesmo diz, “dar o nome aos bois”.
Pois falas genéricas não esclarecem o que de fato esteve, está e estará em jogo.
Dar nome aos bois é algo que Fausto busca fazer, quando responde a pergunta sobre “os principais equívocos do PT e de Fernando Haddad na eleição”.
Segundo Fausto, “a responsabilidade da direção do PT em tudo isso foi enorme. O lançamento da candidatura Lula foi um erro, como declarei sucessivas vezes em entrevistas e artigos. Não quero dizer com isso que não se devesse defender Lula, mas isso não implicava na necessidade de lançá-lo como candidato. Lula tinha e, em parte ainda tem, grande prestígio, mas já teve dois mandatos como presidente”.
Que eu saiba, Fausto não é nem nunca foi filiado ao PT.
Sendo assim, o uso da palavra “erro” é no mínimo curioso.
Lançar Lula teria sido um erro do ponto de vista de quem?
Do ponto de vista de Lula? Do ponto de vista do PT? Do ponto de vista dos concorrentes e adversários do PT?
Como Fausto, há inúmeras pessoas que opinam sobre “os erros” do PT, sem deixar claro de qual lugar falam.
E como não existe Olimpo neutro a partir do qual se possa julgar os erros dos outros, a verdade é que estas pessoas consideram que foi um erro porque resultou na derrota da opção que elas achavam a mais adequada.
Opção que, via de regra, não envolvia qualquer protagonismo do PT.
Ruy Fausto diz que Lula “candidato era o símbolo da continuidade, e a bandeira da continuidade era, no caso, perigosa. Além do que, talvez a coisa mais importante: se o prestígio de Lula era grande, a rejeição do nome dele era tão grande quanto…”.
Novamente, o cinismo se faz presente.
Lula liderou todas as pesquisas de opinião, apesar de perseguido, apesar de condenado, apesar de preso.
Todas as pesquisas indicavam que ele seria eleito presidente, no primeiro ou no segundo turno, derrotando a todos os concorrentes, Bolsonaro inclusive.
Foi por isso, aliás, que o TSE o impediu de ser candidato.
Portanto, não é verdade que a direção do PT simplesmente “esqueceu“ esse “elemento fundamental”.
A verdade é que a direção do PT tentou até o limite garantir a candidatura de Lula.
Entre outros motivos, porque – para usar os termos de Fausto – não estamos “confusos” em termos de liberdade e democracia.
Diferente dos que acham normal a interdição de Lula.
Ruy Fausto acrescenta o “fato de que, desde o início, se sabia que a candidatura de Lula dificilmente obteria registro legal”.
Esta frase envolve um tema de importância capital: o “fato” de que “dificilmente” vencerá, é argumento para alguém de esquerda desista de batalhas essenciais?
Claro que havia os iludidos, mas uma parte importante do PT sabia que dificilmente Lula obteria registro legal.
Mas a luta pelo registro era parte importante da batalha democrática; e, também, era parte importante da acumulação de forças necessária para o caso do PT ser obrigado a substituir Lula por outra candidatura.
Pois quem quer que viesse a substituir Lula, só teria chance de ir ao segundo turno e vencer, se recebesse parte importante dos votos de quem desejava votar em Lula.
Esta tese foi comprovada nas eleições de 2018.
Portanto, Ruy Fausto está certo quando diz que a “ênfase em sua candidatura não é inocente”; mas está absolutamente equivocado quando diz que “a burocracia do partido vive do mito Lula. Ela sabe que se ele tiver um sucessor, principalmente se for um bom sucessor, ela está morta”.
Primeiro, porque Lula não é um mito. O candidato chamado de “mito” nesta campanha é outro.
Lula é a principal liderança viva da esquerda brasileira, tendo conquistado esta condição nas lutas políticas e sociais dos anos 1970, 1980, 1990 e durante seus dois governos.
Por isso, ilude-se quem acha que Lula terá um “sucessor”.
Lula não sucedeu Prestes, não sucedeu Brizola, não sucedeu Vargas. Lula é produto de circunstâncias históricas que não se repetirão. Pode ser que outras circunstâncias históricas gerem outras lideranças que cumpram papel similar ao que Lula cumpre hoje. Mas não será um “sucessor”.
Aliás, o uso da palavra “sucessor” , assim como da palavra “mito”, tem um significado implícito muito negativo, motivo adicional para serem rejeitados, ao menos para quem defende o papel positivo de Lula para as lutas da classe trabalhadora.
Isto posto, será verdade que “a burocracia do partido vive do mito Lula”?
Será verdade que esta “burocracia” sabe “que se ele tiver um sucessor, principalmente se for um bom sucessor, ela está morta”.
Fausto não é do PT e não sei o quanto ele conhece da vida interna do PT. A partir do meu ponto de vista, acho que há camadas de má interpretação na afirmação dele.
O PT tem dezenas de milhares de dirigentes, parlamentares, governantes e intelectuais, que se alinham em torno de diferentes posições programáticas, táticas e estratégicas.
É um absurdo enquadrar esta diversidade numa única palavra (“burocracia”); é outro absurdo achar que a relação deste mundo de gente com Lula tem um único propósito (a auto-sobrevivência da burocracia); e é bizarro acreditar que seria isto que impediria o surgimento de um “sucessor” para Lula (desconhecendo a impossibilidade de fazê-lo).
Além de um problema de interpretação, a análise de Fausto incorre em desinformação pura e simples.
Ele diz que “a candidatura Haddad, até onde sei, foi apoiada essencialmente por Lula. A grande maioria do partido não o queria como candidato. Quando, afinal, não houve alternativa, e Lula se pronunciou pela candidatura do professor, a direção do partido adiou, o quanto deu, a troca de candidato. Gleisi Hoffmann humilhou Haddad o quanto pode”.
Os fatos são outros. A grande maioria do Partido queria Lula como candidato. No dia 5 de agosto, Lula indicou e a direção do Partido aprovou, quase que por unanimidade, o nome de Haddad para ser candidato a vice de Lula. E no dia 11 de setembro, Lula e a direção do Partido substituíram Lula por Haddad. Não houve nenhum tipo de “adiamento” contra Haddad, o que houve foi uma tentativa “até o limite” de fazer de Lula o candidato.
Já a afirmação segundo a qual “Gleisi Hoffmann humilhou Haddad o quanto pode” não entra na categoria desinformação, entra na categoria “campanha orquestrada e mentirosa contra a presidenta do PT”.
Campanha motivada pelo fato dela ter sido a principal expoente de todos e todas que defendiam manter a candidatura de Lula “até o limite”.
Pois, como lembra Ruy Fausto, havia quem defendesse “a possibilidade de lançar a chapa Ciro/Haddad, desejada pelos dois, mas vetada pela direção do partido, por Lula inclusive”.
Ruy não é do PT, mas poderia ao menos ser gentil com os fatos: não foi a direção, mas a imensa maioria da base e do eleitorado do Partido quem “vetava” uma candidatura Ciro/Haddad.
Um “veto” por diversas razões, algumas das quais ficaram claras no segundo turno.
Fausto afirma que “lançado pelo partido, Haddad foi literalmente amarrado. O mote "Haddad = Lula" foi uma faca de dois gumes, um verdadeiro bumerangue, que levou votos a Haddad por parte dos admiradores de Lula, mas tirou os de todos aqueles que o rejeitavam”.
Não é preciso ser filósofo, para perceber que este raciocínio move-se num mundo paralelo. Pois no mundo real, foi graças ao voto dos “admiradores de Lula” que Haddad conseguiu ir ao segundo turno e quase vencer as eleições.
O problema todo é que Ruy Fausto acha que Bolsonaro é um desastre, mas acha que o PT é o grande responsável pelo desastre, e por isso sua grande preocupação é criticar o PT.
Assim, Haddad é um bom candidato, apesar do PT. Acertou, mas teria acertado mais se o PT tivesse deixado. E assim por diante. Até que, por deslizamento conceitual, ele passa a tratar do futuro do Haddad, como se o PT (e Lula) fossem detalhes incômodos.
Notem as frases: “Haddad era um candidato muito bom. Muito melhor que a direção do PT. Claramente anticorrupção. Claramente democrático. O partido o transformou num "poste", o que ajudou muito o adversário. Haddad virou um candidato “fraco“, coisa grave na situação atual. As ambiguidades de dirigentes do partido sobre esses três pontos serviram bem à oposição”.
Podemos discutir longamente sobre os aspectos positivos e negativos da pessoa física de Haddad como candidato. Mas é impossível explicar a performance eleitoral de Haddad, se desconsiderarmos (ou considerarmos como algo negativo) o papel de Lula e do PT.
Ruy Fausto afirma que “a direção do PT chegou à irresponsabilidade de poupar Bolsonaro (o que nem Ciro, nem Boulos fizeram, e nem mesmo Alckmin), porque muito “habilmente“ se convenceu de que Bolsonaro seria o adversário mais fraco no segundo turno. Mesmo que houvesse supostas razões para acreditar nisso, um partido político de esquerda responsável tem de pesar muito bem o que representa um adversário em termos de perigo para a democracia e, portanto, também para a sua própria sobrevivência”.
Esta questão acima envolve uma discussão muito interessante, e muito necessária, até porque muita gente acredita nesta versão torta.
Quem “poupou” Bolsonaro? O PT ou quem tirou Lula da disputa, quando Bolsonaro estava em segundo lugar?
Quem enfrentou Bolsonaro na disputa pelos votos populares? Foi Ciro, foi Alckmin? Ou terá sido, de fato, a candidatura do PT?
Depois que fomos forçados a substituir Lula por Haddad, o que contribuía mais para enfrentar Bolsonaro era, exatamente, fazer Haddad herdar a maior parte dos votos de Lula. Isto era a maneira prática, não de laboratório, de enfrentar Bolsonaro.
E quem achava que era mais fácil enfrentar Bolsonaro no segundo turno? O PT ou aquelas candidaturas (como Alckmin) que usaram grande parte do seu tempo para atacar o PT? Ou que tratavam Bolsonaro e o PT como se fossem igualmente negativos?
Ademais, vamos lembrar que o PT foi impedido de participar de vários debates presidenciais do primeiro turno.
Enfim, a narrativa adotada por Ruy Fausto é engenharia de obra mal-feita.
São os golpistas que devem responder por Bolsonaro, não o PT.
Isto não quer dizer que o PT não deva reconhecer pelo menos dois erros importantes:
a) especialmente depois da facada, quando ficou claro a consolidação do eleitorado de Bolsonaro e que ele iria para o segundo turno, deveríamos ter iniciado imediatamente uma dura campanha de desconstrução de Bolsonaro;
b) não bastava carimbar Bolsonaro como fascista, racista, homofóbico, misógino, antidemocrático, golpista. Era preciso enfatizar o caráter ultraliberal, antipopular, antissocial, anti-classe trabalhadora de suas propostas.
Curiosa mas compreensivelmente, Ruy Fausto é duro contra o PT, mas “passa o pano” em Ciro.
O cidadão, que não participou da campanha no segundo turno, que não declarou voto explicito em Haddad, que continua atacando mais o PT do que Bolsonaro, recebe de Fausto a seguinte reprimenda: “teve bom papel na campanha, mas deu uma “mancada” final tomando uma posição neutra – o PT tem muita culpa nessa história”.
Ou seja, mesmo a “mancada” de Ciro é “muito culpa” do PT. Tudo é culpa do PT. Sempre.
A questão é: será possível “resistir” e derrotar Bolsonaro sem o PT? Essa questão banal parece estar muito além da filosofia de Fausto.
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