Por Gilberto Maringoni
A maior proeza de Jair Bolsonaro não foi ter vencido as eleições. Foi ter imposto sua agenda para toda a disputa.
E esse – contraditoriamente – pode ser seu calcanhar de Aquiles no governo.
A mercadoria que prometeu vagamente entregar – “mudar isso que está aí” – pode não constar de seu estoque.
Esse é tema para outro artigo. Quero me deter no caminho que percorremos até aqui.
Há uma pergunta essencial a ser respondida: por que, num país de 14 milhões de desempregados, com uma recessão sem sinais claros de reversão, em processo acelerado de desindustrialização e com serviços públicos rumando para o colapso, a agenda eleitoral se voltou para uma pauta claramente moralista e despolitizada?
E mais: como alguém considerado pela direção do PT como o adversário ideal a ser batido no segundo turno teve esse poder de agenda ao longo dos últimos meses.
Talvez a chave da resposta esteja em como o próprio PT decidiu encarar o enfrentamento nas urnas.
Lula buscou controlar o leme da jornada ao se colocar como candidato até os 44 minutos do segundo tempo – ou seja, até meados de setembro, sem indicar um vice ou plano B.
Para isso, não priorizou a luta política aberta.
Condenado e encarcerado, resolveu concretizar uma ideia de duvidoso efeito prático.
A vertente traçada foi a de delegar tacitamente a direção de campanha aos seus advogados, que impetraram ações em cima de ações, numa comovente confiança no sistema jurídico brasileiro.
O caminho escolhido não foi o de questionar o governo Temer e seus representantes ocultos na campanha presidencial, mas o de mostrar Lula como vítima injusta de um processo fraudulento.
É a mais pura verdade. Mas fazer da condição do ex-presidente o centro da campanha, ao invés dos problemas concretos vividos pela maioria dos brasileiros, foi aposta de alto risco. Em lugar de um julgamento de Temer e de suas reformas regressivas, Lula chamou para si a questão. Sua tática foi transformar as eleições em um plebiscito sobre si mesmo.
Percebendo a insuficiência dessa opção, ela veio acompanhada de outra: a saudade dos bons tempos, quando o Brasil crescia e os salários idem. O país era respeitado no mundo e o futuro parecia radioso. Parte disso é verdade.
Mas saudade é um sentimento seletivo, como se sabe. Tende a ser unidimensional. Escolhemos o que lembrar e escolhemos o que esquecer. Diferentemente de olhar criticamente o passado para entender o presente – a base do estudo da História – a saudade tem os dois pés no idealismo. Assim, os pilares da campanha petista até o final do primeiro turno tinham na vitimização e na saudade suas linhas mestras. Ou seja, em sentimentos fora da política e do confronto.
Uma terceira linha de conduta foi agregada a essas vertentes. Se o centro de tudo seria Lula, faltava uma peça no quebra-cabeças. O raciocínio se tornaria redondo com o mantra “Haddad no governo, Lula no poder”, um mal ajambrado slogan retirado da campanha de Héctor Cámpora à presidência da Argentina, em 1973. Esse era o complemento para sustentar o nome de Lula como candidato até a undécima hora, transformando Fernando Haddad em mero biombo seu.
Além de desqualificar o real candidato petista, a formulação o deixou na sombra até depois de iniciada a campanha.
Haddad não participou de debates, sabatinas e entrevistas até o final de setembro.
Isso dificultou muito a fixação de seu nome e a politização da campanha.
Como subproduto, os pouco mais de dois minutos de horário televisivo que o PT dispunha no primeiro turno foram tomados pela tentativa de colar seu nome ao de Lula. Não houve nenhum ataque a Jair Bolsonaro.
Nenhum, o que é incrível .Traçados esses vetores todos, uma resultante sobressai: o PT optou por despolitizar a campanha na primeira volta, deixando uma avenida aberta para que algum aventureiro aparecesse.
Quando Jair Bolsonaro sofre o atentado em 7 de setembro, a campanha muda de rumo.
Hospitalizado e com risco de vida, ele também se torna vítima. Lula perde a primazia dessa condição.
Com isso, o ex-capitão consegue, enfim, emplacar a sua agenda como central.
Sem política, valendo-se de medos e preconceitos arraigados na população, Bolsonaro adiciona mais um ingrediente, o antipetismo. E aqui evidencia-se um antipetismo de novo tipo. Trata-se de uma repulsa popular ao partido, diferentemente de sua versão conservadora e de direita, que via na ascensão dos pobres um problema a ser vencido.
O novo antipetismo sensibilizou os órfãos do próprio PT, as vítimas da depressão de 2015-16, promovida por Dilma e Joaquim Levi.
Os que aceleradamente perderam empregos, oportunidades e enfrentaram uma situação econômica que se degradava aceleradamente. Os que confiaram no discurso desenvolvimentista da candidata petista naquelas eleições e viram seu contrato selado através do voto ser rompido sem explicação, com a adoção do programa de Aécio Neves para a economia. Esses formam a massa de dezenas de milhões que entraram em desespero e caíram na conversa fácil da propaganda fascista e de suas respostas simples para problemas complexos.
É preciso olhar para essas linhas de força traçadas na campanha de 2018 e que tiveram raízes fincadas nos últimos anos para que tentemos entender o que aconteceu.
Claro, há Ciro Gomes e sua vergonhosa omissão na luta, desrespeitando até mesmo seus apoiadores e correligionários.
Há também o uso criminoso do WhatsApp, que precisamos compreender mais profundamente.
Mas se não focarmos as avaliações na política e em nossas insuficiências, empurraremos o problema com a barriga para mais adiante. Podemos nos confraternizar em nossas dores e frustrações – o que deve ser feito – e fazer como os republicanos espanhóis após a dramática derrota da Guerra Civil (1936-38).
Diziam eles: “Perdemos, mas nossas canções são incomparavelmente mais belas”.
Não há dúvidas.
Não apenas nossas canções são mais belas, como reunimos o que há de melhor no mundo do trabalho, da academia – com destaque para os estudantes –, da cultura, das artes e da inteligência, enfim.
Temos ao nosso lado o mais importante líder popular de nossa História, um candidato – Fernando Haddad – que se agigantou na jornada e uma liderança de primeira grandeza, como Guilherme Boulos.
E mais do que tudo, unimos a esquerda, os democratas, parte dos liberais, dos nacionalistas e dos que lutam por um Brasil socialmente justo. Temos de cumprir um roteiro doloroso, chorar sozinhos e juntos, tomar fôlego, entender racionalmente o que aconteceu e voltar à ação.
Lamber nossas feridas está sendo duro.
Encarar a besta-fera fascista exige coesão e comunhão de propósitos. Que o exame e as avaliações desse período não nos dilacerem, mas consolidem a união pela resistência e superação. O fascismo não permanecerá.
Já vencemos no passado e venceremos no futuro.
Não estamos sozinhos. Somos milhões.
A maior proeza de Jair Bolsonaro não foi ter vencido as eleições. Foi ter imposto sua agenda para toda a disputa.
E esse – contraditoriamente – pode ser seu calcanhar de Aquiles no governo.
A mercadoria que prometeu vagamente entregar – “mudar isso que está aí” – pode não constar de seu estoque.
Esse é tema para outro artigo. Quero me deter no caminho que percorremos até aqui.
Há uma pergunta essencial a ser respondida: por que, num país de 14 milhões de desempregados, com uma recessão sem sinais claros de reversão, em processo acelerado de desindustrialização e com serviços públicos rumando para o colapso, a agenda eleitoral se voltou para uma pauta claramente moralista e despolitizada?
E mais: como alguém considerado pela direção do PT como o adversário ideal a ser batido no segundo turno teve esse poder de agenda ao longo dos últimos meses.
Talvez a chave da resposta esteja em como o próprio PT decidiu encarar o enfrentamento nas urnas.
Lula buscou controlar o leme da jornada ao se colocar como candidato até os 44 minutos do segundo tempo – ou seja, até meados de setembro, sem indicar um vice ou plano B.
Para isso, não priorizou a luta política aberta.
Condenado e encarcerado, resolveu concretizar uma ideia de duvidoso efeito prático.
A vertente traçada foi a de delegar tacitamente a direção de campanha aos seus advogados, que impetraram ações em cima de ações, numa comovente confiança no sistema jurídico brasileiro.
O caminho escolhido não foi o de questionar o governo Temer e seus representantes ocultos na campanha presidencial, mas o de mostrar Lula como vítima injusta de um processo fraudulento.
É a mais pura verdade. Mas fazer da condição do ex-presidente o centro da campanha, ao invés dos problemas concretos vividos pela maioria dos brasileiros, foi aposta de alto risco. Em lugar de um julgamento de Temer e de suas reformas regressivas, Lula chamou para si a questão. Sua tática foi transformar as eleições em um plebiscito sobre si mesmo.
Percebendo a insuficiência dessa opção, ela veio acompanhada de outra: a saudade dos bons tempos, quando o Brasil crescia e os salários idem. O país era respeitado no mundo e o futuro parecia radioso. Parte disso é verdade.
Mas saudade é um sentimento seletivo, como se sabe. Tende a ser unidimensional. Escolhemos o que lembrar e escolhemos o que esquecer. Diferentemente de olhar criticamente o passado para entender o presente – a base do estudo da História – a saudade tem os dois pés no idealismo. Assim, os pilares da campanha petista até o final do primeiro turno tinham na vitimização e na saudade suas linhas mestras. Ou seja, em sentimentos fora da política e do confronto.
Uma terceira linha de conduta foi agregada a essas vertentes. Se o centro de tudo seria Lula, faltava uma peça no quebra-cabeças. O raciocínio se tornaria redondo com o mantra “Haddad no governo, Lula no poder”, um mal ajambrado slogan retirado da campanha de Héctor Cámpora à presidência da Argentina, em 1973. Esse era o complemento para sustentar o nome de Lula como candidato até a undécima hora, transformando Fernando Haddad em mero biombo seu.
Além de desqualificar o real candidato petista, a formulação o deixou na sombra até depois de iniciada a campanha.
Haddad não participou de debates, sabatinas e entrevistas até o final de setembro.
Isso dificultou muito a fixação de seu nome e a politização da campanha.
Como subproduto, os pouco mais de dois minutos de horário televisivo que o PT dispunha no primeiro turno foram tomados pela tentativa de colar seu nome ao de Lula. Não houve nenhum ataque a Jair Bolsonaro.
Nenhum, o que é incrível .Traçados esses vetores todos, uma resultante sobressai: o PT optou por despolitizar a campanha na primeira volta, deixando uma avenida aberta para que algum aventureiro aparecesse.
Quando Jair Bolsonaro sofre o atentado em 7 de setembro, a campanha muda de rumo.
Hospitalizado e com risco de vida, ele também se torna vítima. Lula perde a primazia dessa condição.
Com isso, o ex-capitão consegue, enfim, emplacar a sua agenda como central.
Sem política, valendo-se de medos e preconceitos arraigados na população, Bolsonaro adiciona mais um ingrediente, o antipetismo. E aqui evidencia-se um antipetismo de novo tipo. Trata-se de uma repulsa popular ao partido, diferentemente de sua versão conservadora e de direita, que via na ascensão dos pobres um problema a ser vencido.
O novo antipetismo sensibilizou os órfãos do próprio PT, as vítimas da depressão de 2015-16, promovida por Dilma e Joaquim Levi.
Os que aceleradamente perderam empregos, oportunidades e enfrentaram uma situação econômica que se degradava aceleradamente. Os que confiaram no discurso desenvolvimentista da candidata petista naquelas eleições e viram seu contrato selado através do voto ser rompido sem explicação, com a adoção do programa de Aécio Neves para a economia. Esses formam a massa de dezenas de milhões que entraram em desespero e caíram na conversa fácil da propaganda fascista e de suas respostas simples para problemas complexos.
É preciso olhar para essas linhas de força traçadas na campanha de 2018 e que tiveram raízes fincadas nos últimos anos para que tentemos entender o que aconteceu.
Claro, há Ciro Gomes e sua vergonhosa omissão na luta, desrespeitando até mesmo seus apoiadores e correligionários.
Há também o uso criminoso do WhatsApp, que precisamos compreender mais profundamente.
Mas se não focarmos as avaliações na política e em nossas insuficiências, empurraremos o problema com a barriga para mais adiante. Podemos nos confraternizar em nossas dores e frustrações – o que deve ser feito – e fazer como os republicanos espanhóis após a dramática derrota da Guerra Civil (1936-38).
Diziam eles: “Perdemos, mas nossas canções são incomparavelmente mais belas”.
Não há dúvidas.
Não apenas nossas canções são mais belas, como reunimos o que há de melhor no mundo do trabalho, da academia – com destaque para os estudantes –, da cultura, das artes e da inteligência, enfim.
Temos ao nosso lado o mais importante líder popular de nossa História, um candidato – Fernando Haddad – que se agigantou na jornada e uma liderança de primeira grandeza, como Guilherme Boulos.
E mais do que tudo, unimos a esquerda, os democratas, parte dos liberais, dos nacionalistas e dos que lutam por um Brasil socialmente justo. Temos de cumprir um roteiro doloroso, chorar sozinhos e juntos, tomar fôlego, entender racionalmente o que aconteceu e voltar à ação.
Lamber nossas feridas está sendo duro.
Encarar a besta-fera fascista exige coesão e comunhão de propósitos. Que o exame e as avaliações desse período não nos dilacerem, mas consolidem a união pela resistência e superação. O fascismo não permanecerá.
Já vencemos no passado e venceremos no futuro.
Não estamos sozinhos. Somos milhões.
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