Na quinta-feira, O Estado de S. Paulo rasgou elogios a Jair Bolsonaro. O editorial “Disposição bem-vinda” considerou “reconfortante” o presidente eleito ter “ciência” da necessidade de uma reforma previdenciária. Poucas horas depois de o jornal ir ao ar na internet e ser entregue impresso aos assinantes, o Estadão foi barrado na primeira entrevista coletiva pós-vitória do deputado. Também foram vetados repórteres dos jornais Folha de S. Paulo, O Globo e Valor Econômico, da rádio CBN e da Empresa Brasil de Comunicação (à qual se vincula a TV Brasil, que Bolsonaro pretende extinguir ou privatizar).
A uma semana da votação do segundo turno, o então candidato discursara por celular para manifestantes aglomerados na avenida Paulista. Vociferou: “A Folha de S. Paulo é o maior fake news do Brasil. Vocês não terão mais verba publicitária do governo”; “Imprensa vendida, meus pêsames”. No dia seguinte à eleição, foi entrevistado pelo Jornal Nacional e falou mais sobre a Folha: “Por si só esse jornal se acabou. Não tem prestígio mais nenhum”.
Um assessor de imprensa de Bolsonaro emulou a truculência do chefe. Na noite de 28 de outubro, Carlos Eduardo Guimarães remeteu uma mensagem a um grupo de jornalistas. Abaixo da imagem da pesquisa boca de urna do Ibope antecipando o vencedor, insultou: “UÉ… Não tava quase empatado? Vocês são o maior engodo do Jornalismo do Brasil!!!! LIXO”. Mais tarde, desculpou-se. Seguidores do capitão hostilizaram, agrediram ou assediaram ao menos nove repórteres no domingo retrasado, denunciou a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo.
Na sexta-feira, um policial federal obrigou um cinegrafista da TV Globo a apagar imagens de Bolsonaro feitas na visita ao Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia. A PF não esclareceu o motivo da censura. Na reta final da campanha, contabiliza o repórter Ricardo Balthazar, o candidato atacou a imprensa dez vezes por semana.
Na sexta-feira, um policial federal obrigou um cinegrafista da TV Globo a apagar imagens de Bolsonaro feitas na visita ao Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia. A PF não esclareceu o motivo da censura. Na reta final da campanha, contabiliza o repórter Ricardo Balthazar, o candidato atacou a imprensa dez vezes por semana.
Jornalismo intimidado
Os vitupérios de Bolsonaro não arrefeceram quando a campanha terminou. A virulência oferece indícios de como o candidato triunfante agirá, no Planalto, com a imprensa. Ignora-se, todavia, como a imprensa se comportará em relação a ele. Para a democracia, não se trata de especulação diletante, mas de aspecto decisivo.
Se cabe ao jornalismo fiscalizar o poder, noticiando o que os poderosos conspiram para manter em segredo, a dita “harmonia entre imprensa e poder” é socialmente degradante. Nos estertores da campanha, o jornalista Janio de Freitas assinalou:
“Para a relação harmoniosa, é necessário silêncio ou complacência da imprensa sobre as falhas do poder – seja o político, o administrativo, o econômico ou privado, e o poder armado. Um certo mal-estar entre imprensa com alguma independência e o poder faz parte da relação entre críticos e criticados, que, aliás, se alternam mutuamente nos dois papéis. Jair Bolsonaro não aceita a relação em tais termos”.
Ao abordar as “agressões verbais e ameaças” do capitão, Janio advertiu sobre o “maior perigo”: a “reação intimidada da imprensa, pouco menos do que inexistente. Atitude que, na ótica de Bolsonaro e seu círculo, só pode significar o início da domesticação buscada pelo autoritarismo. Aqui e fora, sempre que a imprensa não respondeu com altivez aos ataques autoritários, sua tibieza foi debitada na conta da liberdade”.
Bolsonaro e seus partidários jogam pesado. Na quinta-feira, estimulados pelo empresário bolsonarista Luciano Hang, ensaiaram uma campanha de boicote ao PagSeguro. A empresa de pagamento online pertence ao UOL, do mesmo grupo que edita a Folha.
Bolsonaristas promovem o cancelamento de assinaturas do jornal, que deixou de veicular na primeira página os números de circulação das edições impressa e digital. Ao incluir a “Folha” no índex da publicidade federal, por desgostar de sua cobertura, Bolsonaro desafia a Constituição. A Carta estabelece, no artigo 37, o princípio da impessoalidade na administração pública. (Registro: o dinheiro consumido com publicidade do governo e de estatais é excessivo e, em parte, maroto.)
O ataque de Bolsonaro é típico de inimigos da liberdade de imprensa e da democracia. Exige contestação. O repúdio não elimina, contudo, meu lamento pela recente norma da Folha que proíbe, em texto noticioso, que se designe o campo político do futuro presidente como “extrema-direita”. Os repórteres só podem escrever “direita”.
Publicações e emissoras estrangeiras de colorações variadas, como The New York Times, Le Figaro, Financial Times, Al Jazeera, The Guardian, BBC, El País e Independent, não se atemorizam: tratam o presidente eleito como político “de extrema-direita”.
Sociedade político-editorial
O Jornal Nacional silenciou sobre a exclusão de veículos jornalísticos da coletiva de Bolsonaro (dois jornais e uma emissora de rádio alvos da restrição integram o Grupo Globo; a equipe da TV Globo foi autorizada a entrar). Poderia reportar que o entrevistado declarou não ter tomado a decisão – o deputado disse mesmo isso. Mas o JN omitiu o episódio.
Malabarismos retóricos tentam igualar quem não é igual – uma coisa é criticar a imprensa, outra é persegui-la. Ao menos desde a ditadura, um presidente eleito ou na função não fustiga tanto, em público, o jornalismo. Nem assim as coisas são contadas plenamente.
Títulos sem evasivas sobre a escalação de Sergio Moro no Ministério foram quase exclusivos de veículos estrangeiros. “Jair Bolsonaro promete alto cargo a juiz que prendeu seu rival”, titulou o londrino Times. O espanhol El País manchetou: “O juiz que encarcerou Lula da Silva aceita ser ministro da Justiça de Bolsonaro”.
O jornalismo mais influente constituiu um palanque acrítico e propagandístico de Moro nos anos recentes, comemorando a condenação do candidato favoritíssimo para derrotar Bolsonaro. Celebrou-se uma tácita sociedade político-editorial. “A imprensa ‘comprava’ tudo”, afirmou à repórter Amanda Audi uma ex-assessora do juiz.
Christianne Machiavelli quis dizer que o jornalismo reproduziu docilmente as versões oficiais da operação Lava Jato: “Talvez tenha faltado crítica da imprensa. Era tudo divulgado do jeito como era citado pelos órgãos da operação”. Bolsonaro reconheceu, sobre o desempenho de Moro: “O trabalho dele […] me ajudou a crescer, politicamente falando”.
Realidade paralela
Muito mais do que opinião, farta no mercado para todas as dietas, a informação jornalística perturba Bolsonaro. Como a reportagem de Patrícia Campos Mello sobre a compra ilícita, por empresas camaradas, de pacotes de mensagens de WhatsApp para favorecê-lo.
Já tarda uma investigação jornalística indispensável para reconstituir a campanha: em que instante um emissário de Bolsonaro convidou Moro para ministro? O general Mourão, em nova contribuição à transparência, revelou que “isso [o convite] já faz tempo, durante a campanha foi feito um contato”. Às vésperas do primeiro turno, o juiz tornou pública parte da delação de Antonio Palocci associando Lula à roubalheira na Petrobras. Forneceu matéria-prima para o previsível doping midiático-eleitoral.
Altivez jornalística não equivale a impregnar frases com palavras em caps lock, pontos de exclamação e gritos destemperados, retrucando Bolsonaro no mesmo tom. Implica sobretudo informar, descobrindo e contando o que é relevante e oculto no poder. Para impor sua realidade paralela, construída com invencionices disseminadas digitalmente, o presidente tentará fragilizar, desqualificar e no limite eliminar o jornalismo profissional que se mantiver independente dele. A caça às bruxas já está em curso.
A história ensina que às vezes a ruína sucede à relativização do autoritarismo. O golpe de 1964 foi incitado pelo conglomerado midiático dos Diários Associados, cuja decadência se acentuou com a ascensão da TV Globo. O Correio da Manhã instigou a derrubada de João Goulart e não sobreviveu à ditadura. Talvez o mais golpista dos jornais 54 anos atrás tenha sido O Estado de S. Paulo, que logo sofreu com a censura. Bolsonaro pode ser louvado em editorial, mas, se contrariado por notícia, barrará o Estadão em entrevistas coletivas.
Preservar o espírito crítico onde ele não se apagou será um dos maiores desafios do jornalismo e da democracia daqui por diante. Bem como expandir a pluralidade de vozes, reforçada nos últimos tempos pelo Intercept Brasil e outros empreendimentos jornalísticos. Bolsonaro investirá no medo. A imprensa escolherá a coragem ou a covardia.
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