Por Celso Amorim, na revista CartaCapital:
“A caça às bruxas não foi... mera repressão. Foi também – e com igual importância – uma oportunidade, há muito esperada, para que aqueles que se sentiam impelidos a tal pudessem expressar publicamente seu sentimento de culpa e seus pecados, sob o manto de acusações contra as vítimas.”
Essa reflexão, feita por Arthur Miller na introdução da peça O Caldeirão, mais conhecida entre nós como As Feiticeiras de Salem, em razão do roteiro cinematográfico escrito por Jean-Paul Sartre, vem inevitavelmente ao espírito nestes tempos em que toda a espécie de demônios é exorcizada para justificar atitudes que seriam incompreensíveis a partir de padrões de normalidade.
Que culpas e pecados trarão dentro de si os que professam a homofobia, a misoginia, as atitudes racistas (ainda que disfarçadas por conveniência política)?
E que temores explicam a atitude anti-intelectual e obscurantista dos que que defendem interpretações místicas da história, que pregam a volta ao passado e desprezam o progresso social e a construção do futuro.
É muito curioso que afirmações políticas, ainda que metafóricas, sejam rebatidas com recurso a ameaças, que não visam a contrapor argumentos, mas a calar o opositor, valendo-se do pretenso poder que decorre de posições de autoridade.
É como se aqueles que as pronunciam de certa forma admitissem não dispor de argumentos racionais ou mesmo de qualquer poder de persuasão, retórico que seja. Mais fácil é valer-se de mecanismos de intimidação, ainda que sem nenhum fundamento na realidade, como implicitamente admitido por seus autores, que se revelam empenhados em buscar “possíveis” equívocos e irregularidades (para não repetir aqui a expressão totalmente imprópria utilizada em um desse casos).
Esse procedimento é, aliás, o que caracteriza a caça às bruxas, levando a que muitos se tornem cúmplices, por omissão, do barbarismo, movidos pelo temor de não serem eles próprios os próximos candidatos ao “caldeirão”.
Se as “bruxas” apontam, sobretudo, para fantasmas interiores, que assombram a mente dos “caçadores”, nem por isso deixam elas de corporificar-se em seres humanos concretos, que se tornam vítimas inocentes da obsessão do grupo que se apodera dos instrumentos repressivos que o Estado oferece.
Sem dúvida, essa caçada se presta também a outros objetivos, como o de distrair a massa pouco esclarecida de problemas reais que enfrenta, como a fome, a desnutrição, a pobreza e a doença, e para os quais os “donos” ou inquilinos do poder não querem ou não sabem apresentar soluções.
E, quanto mais o sacrifício de inocentes gera novas vítimas, mais cresce o sentimento de culpa dos seus algozes. Este, para ser apaziguado, exige sempre novas arbitrariedades, em um ciclo de terror que já experimentamos em passado não muito distante.
Obviamente, como todo ciclo, este também chegará ao fim, quando a sociedade, exausta do ódio, alimentado por formas de comunicação que impossibilitam o pensamento crítico, buscar descanso em visões mais generosas do ser humano.
A questão é quanto tempo durará o ciclo da caça e quantos serão os sacrificados. Não sabemos. Mas sabemos que o silêncio ‒ forçado ou induzido ‒ é a forma preferida para encobrir as injustiças, as quais, filho do medo, o próprio silêncio alimenta.
Oxalá esses pensamentos vagos que me ocorrem nesta quadra sombria por que passa nosso país sejam meros fantasmas, que o confronto das intenções com a realidade se encarregará de dissipar. Mas nada nos garante que seja assim. E dependerá de cada um de nós não se deixar intimidar pelas ameaças, sucumbindo ao silêncio.
Só dessa forma, o espectro da ditadura, que volta a rondar essas terras – e, na verdade, toda a nossa região –, poderá ser afastado com segurança. A prazo longo, a mentira não pode sobrepor-se aos fatos, nem as ameaças garantirão quietismo e submissão permanentes.
Resta esperar que, contrariamente ao aforisma de Lorde Keynes, quando esse tempo chegar, não estejamos todos mortos, literal ou metaforicamente.
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