sexta-feira, 23 de novembro de 2018

O pseudodilema obtuso na política externa

Por Marcelo Zero, no blog Viomundo:

E continua, impávido anão, o FEBEAPÁ sobre política externa no país.

Não bastassem as trapalhadas sem fim da armada Bolsoleone e de seu chanceler inquisidor, agora surge na imprensa, aqui e acolá, a percuciente “tese” de que o Brasil “terá” necessariamente de escolher entre alinhar-se à China ou aos EUA, em sua política externa.

De onde surgiu essa “coisa”, não sei. Só sei que se trata de um pseudodilema de evidente obtusidade.

O Brasil, até mesmo por suas dimensões geográficas, demográficas e econômicas, não tem de “alinhar-se” à China, aos EUA, à Europa ou a qualquer outro grande ator mundial. E, muito menos, curvar-se à estultice alheia.

O Brasil tem de alinhar-se a si mesmo.

Com efeito, os melhores momentos da nossa diplomacia foram aqueles nos quais o Brasil procurou afirmar seus vastos e diversos interesses próprios de forma autônoma e pragmática no cenário mundial.

Até mesmo na ditadura militar, que o capitão eleito tanto admira, isso ocorreu. Em pleno governo Geisel, o Brasil foi o primeiro país do mundo a reconhecer o governo marxista do MPLA, em Angola.

Eram Geisel e seu chanceler, Azeredo da Silveira, criptomarxistas?

Tinham-se alinhado secretamente a Moscou? Não, claro que não. Não eram nada disso, mas também não eram asnos ideológicos.

O Brasil tomou aquela decisão porque, sob a perspectiva dos interesses próprios do país, era conveniente uma aproximação à África que saia do colonialismo, especialmente à África portuguesa.

Até hoje, tal decisão rende dividendos positivos para o Brasil, em seu relacionamento com o continente africanos.

O ponto mais alto dessa afirmação soberana e racional dos interesses próprios do Brasil no cenário mundial foi o da política externa “ativa e altiva”, implantada ao longo dos governos do PT.

Com efeito, ao contrário do que afirmam os néscios de plantão, essa política externa não teve nada de “ideológica” (no sentido vulgar do termo), de “terceiro mundista”, e, muito menos, de “bolivariana”, “comunista” e esses outros fantasmas que habitam a cabeça oca de seus críticos ignaros e dos saudosistas da Guerra Fria.

Na época, o Brasil não se “alinhou” a ninguém.

Apenas procurou diversificar suas parcerias e propugnar seus interesses próprios em todos os cantos do globo. Mantivemos excelentes relações com China, Rússia, Índia, países árabes, países africanos, países latino-americanos etc.

Porém, não descuidamos das nossas relações tradicionais com os EUA, Europa, Japão e outros.

Lula tinha uma excelente relação com o conservador Bush, assim como teve com o também conservador Sarkozy.

Tal independência, baseada na diversificação das parcerias, permitiu e permite que exportemos muitas commodities para a China, muita carne e alimentos para os países árabes, muitos produtos manufaturados para América Latina, muitos aviões para os EUA, muito de tudo para a Europa, etc.

Da mesma forma, tal política externa racional e pragmática permitiu ao Brasil exportar serviços de ponta para a África e a América Latina, atividade que foi destruída pela Lava Jato. O Brasil, na época, se tornou um grande protagonista mundial, respeitado por todos.

Agora, entretanto, a palavra de ordem ou da Ordem dos Templários tupiniquim é alinhar-se incondicionalmente ao novo Messias do Ocidente.

De fato, a política externa que se descortina com a armada Bolsoleone e seu chanceler pré-moderno é uma não-política, uma renúncia a uma política externa própria.

Trata-se, na realidade, de total capitulação a uma fantasia ideológica imposta por gente que provoca risos de escárnio em setores acadêmicos sérios, inclusive nos EUA.

Gente paranoica, que acha que o “Ocidente” estaria em perigo devido à ascensão da China e outros atores internacionais e à expansão do que eles denominam de “marxismo cultural”, que minaria os valores cristãos e familiares. Seria quase uma política tomista. Uma cruzada fundamentalista contra os infiéis.

A total desconexão dessa fantasia com os interesses objetivos do Brasil fica clara com o vai e volta das decisões e declarações anunciadas antes do governo tomar posse, as quais já provocam prejuízos substanciais ao país.

A tese do pseudodilema obtuso se insere também numa visão estreita e paranoica do cenário mundial.

É claro que há um embate geoeconômico entre China e EUA, assim como há também um embate geopolítico entre EUA e Rússia, por exemplo.

Isso está explicitado na nova doutrina estratégica norte-americana. Mas o Brasil não pode “escolher um lado” nesses embates.

O pressuposto desse pseudodilema é o de que o Brasil não pode inserir-se no cenário internacional sem se tornar satélite de uma superpotência. Isso significa dizer que não podemos ter política externa autônoma ou relativamente autônoma. Significa dizer, no fundo, que não podemos ser um país realmente soberano.

É um profundo equívoco. Ao contrário do afirma essa “tese”, os grandes conflitos de interesses no cenário mundial podem significar oportunidades para que o Brasil defenda seus interesses próprios de forma mais efetiva.

A China está deixando de importar soja dos EUA. Isso cria a oportunidade para que o Brasil exporte mais soja para a China.

As restrições de Trump contra a China também podem criar oportunidades para que o Brasil ocupe nichos dos quais estava excluído.

Entretanto, para se aproveitar essas oportunidades, é necessário ter racionalidade e pragmatismo, algo que passa longe de gente pré-iluminista.

Com o golpe e, agora, com a ascensão do neofascismo fundamentalista cristão no Brasil, caímos muito baixo em política externa.

E o pior ainda está por vir, com a guerra interna e externa que a armada Bolsoleone quer promover.

Razão tinham os antigos gregos quando afirmavam que aqueles a quem os deuses querem destruir primeiro enlouquecem.

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