Por Marcos Pacheco, no site Outras Palavras:
A decisão de retirada dos colegas médicos cubanos da Atenção Primária em Saúde vai agravar mais ainda a já recorrente tendência de elevação das taxas de morbimortalidade infantil no Brasil. Para se ter uma ideia do que isso representa, sairão de cena mais de oito mil médicos, todos (sem exceção) atuando em comunidades rurais, ribeirinhas, quilombolas, aldeias indígenas e bairros periféricos de grandes cidades brasileiras, em cenários de alta vulnerabilidade sociossanitária.
Mas, quem são esses médicos cubanos e por que farão tanta falta?
Na condição de secretário de Estado de Políticas Públicas, por dever de ofício, participei em 2016 de uma das muitas acolhidas que fizemos aos colegas cubanos que chegaram ao Maranhão para trabalhar na nossa interlândia. A sessão de acolhimento foi realizada na Unidade Básica de Saúde do bairro Vicente Fialho, em São Luís, onde, inclusive, trabalho como médico desde 2005. Eram uns 20 colegas médicos (todos cubanos). Sentamos em círculo, sob a frondosa mangueira que sombreia a unidade e começamos uma roda de conversa.
Cada um foi falando de suas expectativas aqui no Maranhão. Identifiquei-me logo com os que iriam para a região de Barra do Corda, Arame, Itaipava, Jenipapo dos Vieiras e Fernando Falcão, todos municípios que eu conhecia muito bem; trabalhei naquela região por mais de 15 anos. Fomos trocando algumas ideias, falei-lhes da presença indígena, das etnias Tenetehara (Guajajaras) e Ramkakromeká (Canelas), que ali têm seus territórios. Meus colegas cubanos mostravam-se (estranhamente) motivados. Via-se em suas faces uma disposição pelo desafio de fazer medicina na ponta, no campo, medicina capilarizada, medicina social, medicina da atenção primária.
Enquanto conversávamos, eu perguntava-me o que levaria médicos a deixar seu país e virem trabalhar em comunidades pobres ou entre indígenas. Lugares remotos, onde normalmente só Deus e o povo estão. Que espírito missionário é esse que acorre a médicos vindo de um regime comunista, portanto, ateu. Que vocação desvairada é essa? Somente aos poucos eu fui entendendo que se tratava de um tipo específico de formação médica. São formados para servir. São preparados para fazer ‘medicina de ponta’, exercer a clínica do cuidado onde a medicina é mais necessária, onde estão os mais necessitados.
Lembrei-me da visita que fizera no ano anterior à Havana, em 2015, na companhia do então ministro da saúde, Arthur Chioro. De fato, na Escola Latino Americana de Medicina (ELAM), em Cuba, o que vemos são jovens estudantes sem nenhuma marca de aristocratização. Muitos estrangeiros, egressos de famílias simples e humildes de seus países de origem, dos vários países de toda a América Latina, muitos do Brasil; jovens egressos daqui, da escola pública, impedidos de acessar uma das concorridíssimas vagas nas faculdades de medicina do Brasil, onde disputam com jovens egressos de escolas privadas, numa concorrência francamente desigual e injusta.
E foi um desses cubanos que encontrei na zona rural de Primeira Cruz, sentado na calçada de um Posto de Saúde, no final do expediente, já sem pacientes para atender, mas, como se ainda quisesse ficar mais um pouco ali naquela “igrejinha” de sua missão. Após os cumprimentos, perguntei-lhe como estava a situação de saúde ali naquele povoado de mais de mil famílias, onde só se conseguia chegar de barco. Ele sorridentemente foi dizendo “tudo bien”. E completou: “acompanho todas as gestantes, conheço todos os meninos de até cinco anos, vejo regularmente todos os hipertensos e diabéticos daqui e estamos tratando os poucos casos de hanseníase e tuberculose que identificamos”. Perguntei-lhe sobre casos graves, ele disse: “Meu trabalho é não deixar agravar”.
Agradeci-lhe pela disponibilidade e tive, com aquele cubano, uma lição da mais pura medicina efetiva, de baixíssimo custo e de altíssima resolutividade. Lembrei da nossa Força Estadual de Saúde do Maranhão (Fesma), programa do Governo do Maranhão que busca fazer esse tipo de assistência, focada em grupos prioritários a partir de parâmetros epidemiológicos, mas fundamentada em uma consciência social crítica e em uma competência clínica solidificada. Sem aristocratização, mas, sim, com muita dedicação e opção preferencial pelos socialmente mais vulneráveis.
Para atuar nas condições de saúde em que vive uma expressiva parte da população brasileira, camponeses, ribeirinhos, indígenas, quilombolas e moradores de bairros mais periféricos nas nossas grandes metrópoles, não basta ser médico, precisa ser um vocacionado. Saber lidar e reverter condições adversas, onde pobreza extrema se mescla com uma diversidade sociocultural muito extensa. Por isso não podem ficar desassistidos, não podemos deixá-los à mercê de sua própria sorte. Espero que tenhamos aprendido um pouco dessa lição que emerge da missionária vocação de ser médico sob qualquer condição. De fato, vamos precisar de todo mundo para varrer do mundo a opressão.
A decisão de retirada dos colegas médicos cubanos da Atenção Primária em Saúde vai agravar mais ainda a já recorrente tendência de elevação das taxas de morbimortalidade infantil no Brasil. Para se ter uma ideia do que isso representa, sairão de cena mais de oito mil médicos, todos (sem exceção) atuando em comunidades rurais, ribeirinhas, quilombolas, aldeias indígenas e bairros periféricos de grandes cidades brasileiras, em cenários de alta vulnerabilidade sociossanitária.
Mas, quem são esses médicos cubanos e por que farão tanta falta?
Na condição de secretário de Estado de Políticas Públicas, por dever de ofício, participei em 2016 de uma das muitas acolhidas que fizemos aos colegas cubanos que chegaram ao Maranhão para trabalhar na nossa interlândia. A sessão de acolhimento foi realizada na Unidade Básica de Saúde do bairro Vicente Fialho, em São Luís, onde, inclusive, trabalho como médico desde 2005. Eram uns 20 colegas médicos (todos cubanos). Sentamos em círculo, sob a frondosa mangueira que sombreia a unidade e começamos uma roda de conversa.
Cada um foi falando de suas expectativas aqui no Maranhão. Identifiquei-me logo com os que iriam para a região de Barra do Corda, Arame, Itaipava, Jenipapo dos Vieiras e Fernando Falcão, todos municípios que eu conhecia muito bem; trabalhei naquela região por mais de 15 anos. Fomos trocando algumas ideias, falei-lhes da presença indígena, das etnias Tenetehara (Guajajaras) e Ramkakromeká (Canelas), que ali têm seus territórios. Meus colegas cubanos mostravam-se (estranhamente) motivados. Via-se em suas faces uma disposição pelo desafio de fazer medicina na ponta, no campo, medicina capilarizada, medicina social, medicina da atenção primária.
Enquanto conversávamos, eu perguntava-me o que levaria médicos a deixar seu país e virem trabalhar em comunidades pobres ou entre indígenas. Lugares remotos, onde normalmente só Deus e o povo estão. Que espírito missionário é esse que acorre a médicos vindo de um regime comunista, portanto, ateu. Que vocação desvairada é essa? Somente aos poucos eu fui entendendo que se tratava de um tipo específico de formação médica. São formados para servir. São preparados para fazer ‘medicina de ponta’, exercer a clínica do cuidado onde a medicina é mais necessária, onde estão os mais necessitados.
Lembrei-me da visita que fizera no ano anterior à Havana, em 2015, na companhia do então ministro da saúde, Arthur Chioro. De fato, na Escola Latino Americana de Medicina (ELAM), em Cuba, o que vemos são jovens estudantes sem nenhuma marca de aristocratização. Muitos estrangeiros, egressos de famílias simples e humildes de seus países de origem, dos vários países de toda a América Latina, muitos do Brasil; jovens egressos daqui, da escola pública, impedidos de acessar uma das concorridíssimas vagas nas faculdades de medicina do Brasil, onde disputam com jovens egressos de escolas privadas, numa concorrência francamente desigual e injusta.
E foi um desses cubanos que encontrei na zona rural de Primeira Cruz, sentado na calçada de um Posto de Saúde, no final do expediente, já sem pacientes para atender, mas, como se ainda quisesse ficar mais um pouco ali naquela “igrejinha” de sua missão. Após os cumprimentos, perguntei-lhe como estava a situação de saúde ali naquele povoado de mais de mil famílias, onde só se conseguia chegar de barco. Ele sorridentemente foi dizendo “tudo bien”. E completou: “acompanho todas as gestantes, conheço todos os meninos de até cinco anos, vejo regularmente todos os hipertensos e diabéticos daqui e estamos tratando os poucos casos de hanseníase e tuberculose que identificamos”. Perguntei-lhe sobre casos graves, ele disse: “Meu trabalho é não deixar agravar”.
Agradeci-lhe pela disponibilidade e tive, com aquele cubano, uma lição da mais pura medicina efetiva, de baixíssimo custo e de altíssima resolutividade. Lembrei da nossa Força Estadual de Saúde do Maranhão (Fesma), programa do Governo do Maranhão que busca fazer esse tipo de assistência, focada em grupos prioritários a partir de parâmetros epidemiológicos, mas fundamentada em uma consciência social crítica e em uma competência clínica solidificada. Sem aristocratização, mas, sim, com muita dedicação e opção preferencial pelos socialmente mais vulneráveis.
Para atuar nas condições de saúde em que vive uma expressiva parte da população brasileira, camponeses, ribeirinhos, indígenas, quilombolas e moradores de bairros mais periféricos nas nossas grandes metrópoles, não basta ser médico, precisa ser um vocacionado. Saber lidar e reverter condições adversas, onde pobreza extrema se mescla com uma diversidade sociocultural muito extensa. Por isso não podem ficar desassistidos, não podemos deixá-los à mercê de sua própria sorte. Espero que tenhamos aprendido um pouco dessa lição que emerge da missionária vocação de ser médico sob qualquer condição. De fato, vamos precisar de todo mundo para varrer do mundo a opressão.
* Marcos Pacheco é médico sanitarista, secretário de Estado de Políticas Públicas, bacharel em direito, mestre e doutor em Políticas Públicas e professor universitário.
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