sábado, 22 de dezembro de 2018

2018: todos ficamos a perigo

Por Wladimir Pomar, no site Correio da Cidadania:

O ano de 2018 cer­ta­mente se trans­formou num di­visor de águas no pro­cesso de de­sen­vol­vi­mento histó­rico da so­ci­e­dade bra­si­leira. Por isso é ine­vi­tável que, numa re­senha a res­peito do que acon­teceu ao longo de seus meses, seja ne­ces­sário buscar num pas­sado mais lon­gínquo as raízes desse salto his­tó­rico.

Apesar das di­fe­renças é pos­sível com­parar o sig­ni­fi­cado dos acon­te­ci­mentos mar­cantes de 2018 com os de 1937 e 1964. Em 1937 houve um golpe civil de ten­dência fas­cista apoiado pelos mi­li­tares; em 1964, em­bora nin­guém o tenha ca­rac­te­ri­zado como fas­cista, o golpe foi re­a­li­zado pelos mi­li­tares com apoio civil de cor­rentes con­ser­va­doras e re­a­ci­o­ná­rias de ten­dência ni­ti­da­mente fas­cista. Em 2018, embora a rigor não tenha ha­vido golpe idên­tico àqueles dois, é pre­ciso lem­brar tanto o golpe parlamentar an­te­ci­pado de im­pe­di­mento da pre­si­dente Dilma, em 2016, assim como a pro­posta aberta­mente fas­cista ven­ce­dora da eleição pre­si­den­cial.

Tal pro­posta talvez seja mais ra­dical do que a de 1937 e a de 1964, apesar dos re­mendos e des­men­tidos em re­lação a seus com­po­nentes mais aber­ta­mente tru­cu­lentos e as­sas­sinos. Ela contou com o apoio de cerca de 50 mi­lhões de bra­si­leiros, oriundos tanto da bur­guesia (apenas 1% da po­pu­lação, ou cerca de 2 mi­lhões de pes­soas) quanto de vá­rias fra­ções da classe média e das classes po­pu­lares. Estas úl­timas, pro­fun­da­mente des­con­tentes com o sis­tema po­lí­tico, so­cial e econô­mico vi­go­rante e, ao mesmo tempo, ig­no­rantes de quem são seus ver­da­deiros ini­migos e de como subs­ti­tuir tal sis­tema.

Ar­gu­menta-se que entre os apoi­a­dores do bol­so­na­rismo há uni­dade em torno de li­quidar o PT, eliminar os co­mu­nistas e sim­pa­ti­zantes, prender os cor­ruptos, acabar com o en­sino pre­sen­cial, instituir a cura gay e ma­te­ri­a­lizar al­gumas ou­tras pé­rolas fas­cistas. Afinal, de­pois que o di­plo­mata indi­cado para mi­nistro do ex­te­rior pro­clamou o fas­cismo hi­tle­rista como “cor­rente de es­querda”, qual­quer outra bar­ba­ri­dade ig­no­rante pode ser con­si­de­rada “na­tural”.

Nessas con­di­ções, o pro­blema do bol­so­na­rismo co­meça com o fato de que, fora al­guns mi­lhões de vo­tantes no PSL que foram vo­tantes do PT em elei­ções pas­sadas, 47 mi­lhões de bra­si­leiros vo­taram no­va­mente no PT, nos co­mu­nistas, ou em seus sim­pa­ti­zantes, e 37 mi­lhões anu­laram seu voto ou votaram em branco. Por­tanto, o campo opo­si­ci­o­nista e dos des­con­fi­ados com as pro­postas fas­cistas pode estar dis­perso e sem cla­reza quanto ao fu­turo, mas é bem mais amplo do que o dos ilu­didos com as pro­messas bol­so­na­ristas.

Por outro lado, uma ver­da­deira chusma de cor­ruptos se ban­deou para a car­reata fas­cista, a co­meçar por um dos mi­nis­tros já in­di­cado, be­ne­fi­ciário de caixa 2. Por­tanto, em­bora rei­terar a in­tenção de “limpar” o ter­ri­tório tenha sido su­fi­ci­ente para a vi­tória no se­gundo turno, talvez não seja su­fi­ci­ente para ser im­ple­men­tada. De qual­quer modo, é tal in­tenção que foi vi­to­riosa e co­loca em tensão todas as con­quistas, mesmo as apenas for­mais, da Cons­ti­tuição de 1988.

Por isso mesmo, para en­tender 2018 é ne­ces­sário voltar mais uma vez no tempo. Há muito os se­tores fi­nan­ceiros, agrá­rios, co­mer­ciais e in­dus­triais mais con­ser­va­dores e re­a­ci­o­ná­rios da bur­guesia (que inclui po­de­rosos re­pre­sen­tantes de bur­gue­sias es­tran­geiras im­plan­tados no Brasil) vi­nham re­cla­mando que a Cons­ti­tuição con­tem­plava muitos di­reitos e poucos de­veres para as classes su­bal­ternas. Tais re­cla­ma­ções su­biram de tom à me­dida que os pe­tistas se tor­naram al­ter­na­tiva de go­verno, embora não de poder, e se em­pe­nharam em me­lhorar a si­tu­ação de vida de mi­lhões de po­bres e miserá­veis, apesar de suas po­lí­ticas con­ci­li­a­tó­rias com a bur­guesia como um todo.

Por outro lado, entre os pe­tistas e ou­tras forças po­pu­lares criou-se a ilusão de que a crise econô­mica mun­dial po­deria ser en­fren­tada prin­ci­pal­mente com a ele­vação do poder de compra dos po­bres e mise­rá­veis, tor­nando o mer­cado na­ci­onal um grande atra­tivo para os in­ves­ti­mentos ca­pi­ta­listas. Não le­varam na de­vida conta que o lucro na pro­dução de bens se man­tinha abaixo dos juros reais praticados no mer­cado na­ci­onal, o que es­ti­mu­lava a bur­guesia a se tornar cada vez menos “produtora” e cada vez mais “fi­nan­cista” ou “ren­tista”.

Nem que, além de me­didas ma­cro­e­conô­micas que in­ver­tessem a re­lação juros/lu­cros, seria ne­ces­sário um di­re­ci­o­na­mento mais eficaz dos in­ves­ti­mentos pú­blicos através de es­ta­tais pro­du­toras que de dedicassem ao pro­cesso pro­du­tivo e em­pur­rassem os se­tores a também in­vestir nesse pro­cesso.

Assim, na au­sência de uma ele­vação geral de pro­dutos e de ga­nhos, a crise co­meçou a cor­roer tanto os se­tores bur­gueses pres­si­o­nados pela ten­dência de queda de seus lu­cros, quanto os se­tores in­ter­me­diá­rios e po­pu­lares não be­ne­fi­ci­ados di­re­ta­mente pelas po­lí­ticas pú­blicas de trans­fe­rência de rendas.

As ma­ni­fes­ta­ções de 2013 foram a evi­dência mais in­ci­siva dessa mu­dança de humor não só da maior parte da classe bur­guesa, como também de se­tores con­si­de­rá­veis da pe­quena bur­guesia. Paralelamente a isso, esses se­tores pas­saram a jogar pe­sado em ações para dis­persar e des­mo­bi­lizar as novas ge­ra­ções da classe tra­ba­lha­dora e dos ex­cluídos e minar sua apre­ci­ação das re­a­li­za­ções dos go­vernos pe­tistas e do pró­prio PT.

Apro­vei­taram-se, prin­ci­pal­mente, da au­sência de uma es­tra­tégia pe­tista de com­bate à cor­rupção, mesmo após os acon­te­ci­mentos do “men­salão”, em 2005. Pu­deram, então, cons­truir “nar­ra­tivas” demo­li­doras de longo prazo sobre o “tri­plex do Gua­rujá” e ou­tras pre­tensas “cor­rup­ções”. Essas “narra­tivas” foram muito mais so­fis­ti­cadas do que aquela que, em 1989, acu­sava Lula de ser proprietário de uma “Mansão no Mo­rumbi”.

Pa­ra­le­la­mente, o PT não foi capaz de se mo­bi­lizar para limpar suas fi­leiras de pe­ne­tras tipo Pa­locci nem de en­frentar a cor­rupção não só através da me­lhoria da le­gis­lação a res­peito, mas também, e prin­ci­pal­mente, em seu as­pecto prá­tico. O campo ficou livre para que a pre­tensa cru­zada an­ti­cor­rupção se tor­nasse mo­no­po­li­zada pela Ope­ração Lava Jato.

Além disso, a ten­ta­tiva de vencer a crise econô­mica através de um ajuste fiscal de ca­ráter ne­o­li­beral, como pro­je­tado pelo go­verno Dilma, jogou no campo da opo­sição ao PT, ou na imo­bi­li­dade po­lí­tica, novos se­tores po­pu­lares e de­mo­crá­ticos di­versos. O que en­fra­queceu so­bre­ma­neira a ca­pa­ci­dade de mo­bi­li­zação po­pular para o en­fren­ta­mento do golpe do im­pe­a­ch­ment, da prisão de Lula e de seu impe­di­mento como can­di­dato à pre­si­dência. E es­ti­mulou se­tores cen­tristas não só a se apre­sen­tarem como “es­querda de­mo­crá­tica”, lan­çando can­di­datos pre­si­den­ciais na es­pe­rança de atrair os vo­tantes lu­listas, mas também a cul­parem o PT pelas vo­ta­ções mir­radas que ob­ti­veram.

Nessas con­di­ções, tornou-se re­a­li­dade a vi­tória elei­toral de um fas­cista. Ele não es­conde suas in­ten­ções, apesar dos re­cuos que tem sido obri­gado a re­a­lizar. Afinal, não pode es­pantar pre­ma­tu­ra­mente muitos dos que o apoi­aram su­pondo que re­al­mente lu­tará “contra o sis­tema”, “contra a cor­rupção”, “contra o atraso”, e “pelo Brasil”. Mas, para que atenda o que dispõe a classe do­mi­nante, Bol­so­naro terá re­al­mente que se em­pe­nhar em tirar de cir­cu­lação o PT, os co­mu­nistas e mi­lhões que não são uma coisa nem outra, mas querem um Brasil in­de­pen­dente, de­mo­crá­tico e prós­pero.

De qual­quer modo, a vi­tória elei­toral gran­jeou le­gi­ti­mi­dade e le­ga­li­dade aos ob­je­tivos fas­cistas. Em vista disso, co­me­terão um grande erro todos os que su­pu­serem que tais ob­je­tivos foram apenas propaganda elei­toral. Para ser mais pre­ciso, é con­ve­ni­ente re­lem­brar que quem venceu as elei­ções de 2018 foi uma vasta co­li­gação so­cial e po­lí­tica, na­ci­onal e in­ter­na­ci­onal. Ela tem na ca­beça quase todo o em­pre­sa­riado na­ci­onal, assim como o es­tran­geiro aqui ins­ta­lado, com des­taque para as fra­ções finan­ceira e agrária dessa bur­guesia. Também par­ti­cipa dela a classe média alta com­posta de pe­quenos e mé­dios em­pre­sá­rios e de em­pre­gados civis e pú­blicos de altos sa­lá­rios.

Convém des­tacar que, in­frin­gindo a Cons­ti­tuição, não fi­caram fora da co­li­gação ven­ce­dora vá­rias insti­tui­ções es­ta­tais ju­di­ciá­rias, po­li­ciais e mi­li­tares. E nunca é de­mais re­lem­brar o que muitos comen­ta­ristas têm acen­tuado: tudo in­dica, como em vá­rios mo­mentos do pas­sado, que a CIA, o famoso ser­viço de in­te­li­gência dos Es­tados Unidos, não só não ficou neutra no pro­cesso, como ajudou na di­vul­gação in­tensa das fake news pro­du­zidas no ex­te­rior.

Nessas con­di­ções, 2018 tornou-se um ano em que todos fi­camos a pe­rigo. Os di­reitos de­mo­crá­ticos, tanto os efe­tivos quanto os for­mais, cons­tantes da Cons­ti­tuição de 1988, podem ser jo­gados no ralo. Afinal, quando um pre­si­dente eleito con­si­dera “na­tural” eli­minar “uns 30 mil”, um go­ver­nador eleito con­si­dera “ju­ri­di­ca­mente legal” um ati­rador de elite eli­minar “ban­didos ar­mados à dis­tância”, e um ge­neral co­tado para uma pasta mi­nis­te­rial con­si­dera que di­reitos hu­manos são apenas para “hu­manos di­reitos”, sub­ver­tendo não só a Cons­ti­tuição Fe­deral, mas também a Carta das Na­ções Unidas e a com­pre­ensão mun­dial a res­peito, o alerta deve ser total. Re­al­mente, fi­camos todos a pe­rigo.

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